O futuro pós-coronavírus já está em disputa
Como impedir que o capitalismo, que já nos roubou o presente, nos roube também o amanhã?

Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?
Ninguém
 se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo
 disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida 
ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, 
fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o 
fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade 
cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da 
vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento 
do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar
 uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.
As
 grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do 
que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas 
por Donald Trump
 na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos 
efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem 
lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco 
elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área 
social.
Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima
 e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses 
segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no 
mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no 
essencial é um truque antigo.
Com o vírus, descobrimos 
que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o 
número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar 
radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em menos de três meses
 em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas
 práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por 
outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.
A tarefa
 é inadiável. Se não fizermos isso, o mundo pós-coronavírus será ainda 
mais brutal e o colapso climático se aprofundará. Para o extermínio da 
natureza não há nem jamais haverá vacina. Nosso futuro depende de 
enterrar o sistema capitalista que exauriu o planeta
 e nos trouxe até o tempo das pandemias. E para isso também não serve o 
comunismo que explorou, destruiu vidas, corroeu a natureza e oprimiu os 
corpos. Precisamos encontrar outros caminhos. E rápido. Muitos dizem que
 é ingênuo. Outros dizem que é impossível. O que é ingênuo é sentar na 
cadeira de pregos que se tornou o presente e esperar os efeitos da 
brutal superexploração da natureza (terminar de) deformar a face do 
planeta. Impossível é seguirmos vivendo como temos vivido.
O isolamento físico
 tem que ser usado para produzir pensamento social e para atuar 
coletivamente, em rede. Este artigo, dividido em duas partes, é uma 
colaboração para o debate do futuro que precisa ser travado no presente.
 Agora.
1) No Brasil, todos os caminhos levam ao neoliberalismo
O presente, no Brasil, é uma armadilha. Temos um antipresidente – e a antipresidência é um conceito criado pelo bolsonarismo
 – que faz oposição ao seu próprio governo. A técnica ficou clara desde o
 início do mandato, mas ganhou contornos dramáticos na pandemia, quando Jair Bolsonaro abriu guerra contra seu próprio ministro da Saúde.
 A negação da realidade, como método de manutenção do poder, tem vários 
efeitos sobre a população. Um deles é ocupar o noticiário e sequestrar o
 debate.
Em vez de debater a ameaça mais urgente, estamos travando o falso debate lançado contra os brasileiros por Bolsonaro: isolamento ou não isolamento, ou saúde versus economia.
 É o que acontece quando se elege um homem que, no passado, planejou 
explodir bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. As 
bombas de Bolsonaro hoje são de desinformação, visam ao caos e também 
podem matar.
O problema é ainda maior porque a negação da
 realidade também produz realidade. Neste caso, não só a de colocar a 
população em risco, mas também a de fazer acreditar que há oposição 
real. Essa ilusão que cresce no Brasil, até por desespero, pode 
comprometer o futuro de forma irreversível.
Se Jair 
Bolsonaro (sem partido) renunciar, o que parece bastante improvável no 
momento, ou se for impedido, o que também ainda parece distante, quem 
assume é o vice. Hamilton Mourão
 é um general quatro estrelas da reserva que até a eleição era 
considerado golpista, devido a várias declarações públicas. Ainda na 
campanha, chegou a dizer, em entrevista à GloboNews, que em “caso de 
anarquia” um presidente pode dar um “autogolpe” com “o emprego das 
forças armadas”. Comparado a Bolsonaro, até um pitbull torna-se 
“moderado”. É o que vem acontecendo com Mourão, como escrevi mais de um ano atrás.
O terceiro na hierarquia é Rodrigo Maia
 (DEM). Além de indiciado pela Polícia Federal por corrupção, o 
presidente da Câmara dos Deputados é totalmente identificado com o 
neoliberalismo que nos trouxe até a situação atual e com as forças mais 
conservadoras do país, com exceção (por enquanto) dos evangélicos de 
resultados. O que tornou Maia um exemplo de moderação e competência para
 o que chamam de “mercado” foi realizar a reforma previdenciária que, se
 era necessária, claramente o modelo aprovado não foi nem o melhor nem o
 mais justo para os trabalhadores, que tiveram suas vidas ainda mais 
precarizadas. Maia, a quem até o advento do bolsonanorismo parte dos 
brasileiros preferia ver pelas costas (ou na cadeia), tornou-se uma 
espécie de oráculo do bom senso, o que mostra o nível do abismo em se 
encontra o Brasil.
E então temos os novos candidatos a estadistas, na figura dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. João Doria (PSDB) e Wilson Witzel
 (PSC). Doria, o gerente privatizador, e Witzel, defensor da violência 
policial nas favelas. Até ontem, ambos eram unha e carne com Bolsonaro. 
Ou vogal e consoante, no caso de Doria,
 que se elegeu como “Bolsodoria”. Para conter a pandemia, eles apenas 
seguem em seus estados as orientações sanitárias internacionais, mas, 
como fazer o óbvio é fazer o oposto do que Bolsonaro prega, despontam 
como defensores do povo contra o bolsovírus. Têm os olhos grudados na 
eleição presidencial de 2022.
Bolsonaro presta um grande 
serviço aos ex-melhores amigos. Em São Paulo, especialmente, ele livra 
Doria de explicar o pouco investimento na rede de saúde pública pelo seu
 partido, que comanda o Estado há mais de 25 anos. Na ponta, é essa 
falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai resultar em mortes por coronavírus.
Em
 todo o país, o falso debate eclipsa o verdadeiro debate. A pandemia 
tornou explícita a importância do estatuto público da saúde. E revelou 
toda a monstruosidade da PEC-95, a do teto dos gastos públicos do governo de Michel Temer
 (MDB), típica política neoliberal de Estado mínimo, que tirou bilhões 
da saúde. Grande parte desta conta está sendo paga agora. Com vidas.
No
 atestado de óbito, as vítimas terão “morte por coronavírus”. Mas, em 
parte dos casos, o que as terá matado é a precarização da saúde pública,
 o aumento da desigualdade e da miséria nos últimos anos, a falta de 
investimento em saneamento e moradia digna. E, finalmente, o fato de que
 há uma parte da população que segue exposta ao vírus porque não lhes é permitido parar de trabalhar.
A imagem da armadilha em que o Brasil está enfiado é a do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ao afrontar o chefe e tomar medidas óbvias na pandemia,
 Mandetta se tornou o novo herói nacional. Todos os erros, como demorar a
 providenciar testes, máscaras e outros equipamentos de proteção, são 
perdoados. Principal opositor de seu ministro, Bolsonaro também presta 
um grande serviço a ele. E a seu próprio governo, já que, qualquer que 
seja o resultado, pode ser atribuído ou distanciado do governo. Essa é a
 esperteza de abarcar a situação e a oposição.
Vejamos 
quem é o novo herói nacional, hoje adulado e apoiado por todos os campos
 ideológicos. Mandetta, conhecido defensor dos ruralistas, na saúde se 
manifestou frontalmente contra o programa Mais Médicos
 e militou contra o aborto. Também já lamentou a fragmentação das 
famílias causadas pela Lei do Divórcio. Dilma Rousseff demarcou muito 
menos terras indígenas que seus antecessores, uma das razões porque 
recebe severas críticas de indígenas e ativistas do meio ambiente. Ainda
 assim, Mandetta achou que a presidenta exagerava. “A presidente está 
dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu 
querer mal ao Brasil no agronegócio", discursou no plenário, em 2016. No
 ano seguinte, foi um crítico feroz da Carne Fraca, operação da Polícia 
Federal que investigou as irregularidades nos frigoríficos.
O
 novo herói brasileiro aponta onde está o Brasil. Cada um conclua. A 
oposição real, como já se tornou explícito, é fraca. E não consegue 
mostrar qual é a sua grande diferença, muito menos convencer a população
 de que é diferente. Enroscada com Lula e com o PT, ou brigando com Lula
 e com o PT, a esquerda deixou de disputar o país.
 Acha que disputa, é claro, mas ninguém liga. O desempenho mais sólido é
 o do Psol, mas o partido ecoa apenas num número pequeno de brasileiros.
Isso
 não significa dizer que a esquerda seria uma solução, na medida em que 
parte significativa da esquerda brasileira segue cimentada no século 20,
 totalmente alienada das grandes questões atuais, como a crise climática
 e a destruição da vida natural no planeta. Quem fez oposição de fato, 
no Brasil pré-pandemia dos últimos anos, foram grupos identitários: 
mulheres, jovens, negros e indígenas. A oposição é política, mas não tem
 partidos políticos como protagonistas. E ainda é preciso ter partidos 
políticos para fazer a disputa do futuro.
Assim, no 
período pós-pandemia, ou mesmo durante a pandemia, já que não se sabe se
 ela acaba, todos os caminhos levam à direita neoliberal. Este é o 
buraco diante do Brasil. É também o buraco em muitos países – grande 
parte deles atolados na crise das democracias ocidentais, alguns às 
voltas com os déspotas eleitos.
O Brasil tem, portanto, dois gigantescos desafios. O primeiro é impedir que o vírus mate milhares de brasileiros. Não há dúvida de que serão os mais pobres que morrerão mais. Os que não têm casas compatíveis com o isolamento; os que têm sido obrigados pelos patrões a trabalhar; os que foram demitidos;
 os que vivem de bicos, na informalidade, e já não conseguem trabalhar. 
Os que não vão conseguir se alimentar com os 600 reais que o governo 
está oferecendo. Os que não têm esgoto, não têm água e logo não terão 
também comida. Os que ficarem doentes e não encontrarem vagas na rede 
pública de saúde, sabotada nos últimos anos em nome da privatização e do
 lobby dos planos privados de saúde.
O auxílio emergencial de 600 reais para os informais
 é mais uma prova do buraco paradoxalmente grande – e ao mesmo tempo 
claustrofóbico – em que o país está enfiado. Diante dos 200 reais 
inicialmente propostos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de 
repente 600 reais passaram a soar com notas de decência. O valor, porém,
 é totalmente indecente. Ninguém vive no Brasil com dignidade mínima com
 600 reais. Para a outra metade dos trabalhadores, a que têm carteira 
assinada, o governo permitiu cortes de jornada e de salários.
Para
 quem se enrosca com o significado de neoliberal, é isso. Vale a pena 
pesquisar para encontrar definições mais sofisticadas e completas. Em um
 parágrafo, o que pode ser dito é que os neoliberais acreditam que o 
Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula.
 Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores
 e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar, 
flexibilizar – estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba 
então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os 
trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras 
espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez 
menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e 
autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as 
razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é 
“empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer 
continuar a ser.
No estágio neoliberal do capitalismo 
todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo – e 
submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de
 consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas, 
preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda 
permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para 
consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer 
outra identidade, você é consumidor.
É neste sistema que o
 planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que
 espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus 
corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, 
consumindo seu corpo e seu tempo, se consumir. E é assim que os humanos 
se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo 
cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis 
fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta.
Pressionadas
 pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá 
mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles 
que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição,
 como já fizeram no passado, para continuar no controle. Têm muita 
chance de conseguir.
No Brasil, Bolsonaro fez o serviço 
de esticar tanto os limites, que tornou todas as forças conservadoras ao
 seu redor aceitáveis. Não sei o quanto ele percebe que este é o seu 
principal papel. O fato é que o executa brilhantemente. Cada vez que se 
comporta como um maníaco, faz figuras que até ontem causariam arrepios 
despontarem como estadistas. Antes dele, um Mourão na presidência era 
inimaginável depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Antes dele, 
Rodrigo Maia era só mais um representante tradicionalíssimo de um 
Congresso marcado por corrupção e fisiologia. Antes dele, Doria e 
Witzel, cada um no seu estilo, jamais receberiam aplausos de parte da 
esquerda ou afagos de Lula. Antes dele, Mandetta era um político 
preocupado em apoiar projetos corporativos de setores da saúde e fazer 
lobby para ruralistas. Graças a Bolsonaro e à incompetência da oposição 
real, todos eles nos lideram.
É assim que vai ser, então?
O
 Brasil tem dois enfrentamentos urgentes para fazer: a disputa do 
presente, que é o novo coronavírus, e a disputa do futuro, que se dá 
também agora, no presente.
Enfrentar uma pandemia num 
país em que desigualdade e pobreza extrema aumentaram nos últimos anos 
pelas políticas neoliberais é um imenso desafio. Mas talvez seja ainda 
maior o desafio de imaginar um futuro que não seja a volta de uma 
normalidade que só era normal para os privilegiados de sempre. Na 
armadilha que se tornou o país, todos os caminhos levam ao mesmo lugar. 
Os personagens que disputam o presente e o futuro dentro da estrutura do
 Estado são no fundo todos iguais – ou pelo menos muito parecidos.
Como aprender com o coronavírus a criar um futuro que não seja mais aniquilação?
Parece
 quase impossível quando todas as saídas estão barradas pelas tropas 
neoliberais. Elas já se organizam para chicotear a população após a 
pandemia, com o imperativo de produzir para poder superar a recessão e 
retomar o dogma do crescimento. Já tivemos indícios de que o coronavírus
 será usado para impor perdas de direitos e de liberdades. A China, com 
seu comunismo capitalista (sim, isso é possível), ampliou ainda mais sua
 vigilância despótica sobre a população. É apenas um sinal do que está 
por vir.
Em breve, pode apostar, os governos vão pedir o 
sacrifício de todos, que nunca é o de todos, mas o dos de sempre. 
Prestem atenção ao significado que será dado à palavra “retomada” – e 
pensem no que será retomado. A pandemia é nova. Os métodos dos que 
trouxeram o planeta até este estado de coisas, não.
Parece
 impossível disputar o futuro nessas condições. Mas tudo o que temos é 
encontrar um caminho para minar a criatura chamada capitalismo, que no 
nosso tempo se expressa pelo neoliberalismo, e impedir que se regenere. 
Mais do que nunca, hoje lutamos pela vida.
2) Temos que barrar os senhores do mundo antes de eles conseguirem dar o golpe (mais uma vez)
Há
 tempos os pensadores ocidentais não se empenhavam tanto em interpretar 
um momento. Faz todo o sentido. Nada é – ou foi – maior do que essa 
pandemia como ameaça global capaz de mudar tudo em um segundo. Inclusive
 o olhar dos humanos sobre si mesmos, ao descobrir a espécie, esta que 
sempre se considerou dona do planeta, ameaçada por um ser microscópico. 
Já existe pelo menos um livro com coletânea de artigos de filósofos 
sobre o coronavírus e seus efeitos. Há uma diferença, porém. Há os 
pensadores que compreenderam a crise climática e há os que seguem às 
voltas com dilemas do século 20, como grande parte da esquerda mundial, e
 que não foram afetados pelas angústias da época atual.
Entre
 os pensadores conectados com a emergência do clima, o francês Bruno 
Latour é o autor de uma das melhores contribuições para pensar o momento
 já como ação. O texto foi traduzido
 pela filósofa brasileira Déborah Danowski, outra pensadora relevante 
sobre o contexto atual. Em sua análise, Latour assim define a lição 
posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a
 mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de 
semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema 
econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou 
redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre
 a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o 
argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era 
capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”.
E
 aponta o risco: “Qualquer motorista sabe que, para ter alguma chance de
 se salvar fazendo uma rápida manobra no volante, sem sair da estrada, é
 melhor primeiro desacelerar... Infelizmente, não são só os ecologistas 
que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma 
grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os 
adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século 20, inventaram
 a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma 
excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que
 resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é 
uma oportunidade boa demais de se livrar do resto do Estado social, da 
rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação 
contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrar de toda essa 
gente em excesso que atulha o planeta. (...) Os adeptos da globalização 
são perigosos porque eles sabem que perderam, sabem que a negação das 
mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há 
mais nenhuma chance de conciliar seu ‘desenvolvimento’ com os vários 
‘envelopes’ do planeta com os quais a economia terá que se haver mais 
cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo 
para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, 
para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus 
filhos”.
Antes que alguém levante a balela do 
desenvolvimento “sustentável” como a panaceia capaz de colocar o 
capitalismo de novo nos trilhos, vale escutar outro pensador, este 
indígena. Autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), Ailton Krenak
 provocou ódio e ranger de dentes tempos atrás, ao afirmar que 
“sustentabilidade era vaidade pessoal”. Toda corporação, incluindo as 
mais destrutivas, tem hoje um gerente de sustentabilidade. Faz parte da 
capacidade de cooptação e adaptação do capitalismo. Sempre uma cretinice
 a mais.
Em março, já com a pandemia atravessando o 
globo, Krenak assim explicou na abertura da Mostra Internacional de 
Teatro de São Paulo, ao falar sobre perspectivas anticoloniais: “Nós 
vivemos precariamente uma relação de consumir o que a mãe natureza nos 
proporciona. E nós sempre fizemos um uso do que a nossa mãe nos 
proporciona da maneira mais folgada possível. Até que um dia nós nos 
constituímos numa constelação tão imensa de gente que consome tudo, que a
 nossa mãe natureza falou: peraí, vocês estão a fim de acabar geral com 
tudo que pode existir, aqui, como equilíbrio e como possibilidade 
daquilo que é fluxo da vida? Vocês vão esquadrinhar a produção da vida e
 decidir quantos pedaços de vida cada um pode obter? E, nessa 
desigualdade escandalosa, vocês vão sair por aí administrando a água, o 
oxigênio, a comida, o solo? E então [a natureza] começou a botar limites
 à nossa ambição.
Mais informações sobre a crise do coronavírus
Uma
 maneira que os humanos fizeram para administrar isso foi criando a 
ideia, por exemplo, de que existe um meio ambiente e que esse universo é
 uma coisa que você pode gerenciar. E dentro desse meio ambiente alguns 
fluxos vitais podem ser medidos, avaliados e habilitados, alguns deles 
inclusive com selos de sustentabilidade.
Se você tirar 
água do aquífero Guarani, por exemplo, uma água de muito boa qualidade, e
 se você engarrafar direitinho, você é uma empresa sustentável. Mas quem
 disse que tirar água do aquífero Guarani é sustentável? Você pratica 
uma violência na origem e recebe um selo sustentável no caminho. E assim
 com a madeira. Isso é uma sacanagem, não tem esse papo de água 
sustentável e não tem esse papo de madeira sustentável”.
Diz
 então a verdade terrível, que é também o ponto de partida de qualquer 
proposta para o futuro que formos capazes de esboçar: “Nós somos uma 
civilização insustentável, nós somos insustentáveis. Como é que então 
vamos produzir alguma coisa em equilíbrio?”.
Este é o desafio.
Assim que novo coronavírus der uma brecha, os profetas do neoliberalismo começarão a sua pregação:
 “É preciso produzir e crescer!”. Não há dogma maior na economia do que o
 do crescimento. Milhares de economistas perderão seu emprego no ramo da
 astrologia econômica caso o dogma do crescimento seja desmascarado. 
Crescer é o imperativo de todo país. Quem não lembra do “fazer o bolo da
 economia crescer para então repartir o bolo” que o ministro da ditadura
 e astrólogo econômico maior do Brasil, Delfim Netto, repetia no regime 
de exceção? Mais tarde, com a expansão do neoliberalismo, nem isso. 
Bastava que os mais pobres soubessem que, se o país crescesse, alguma 
coisinha poderia eventualmente sobrar pra eles.
O dogma 
do crescimento é construído sobre uma mentira: a possibilidade de 
explorar infinitamente os recursos de um planeta com recursos finitos. 
Bastam dois neurônios para entender que não é possível. E aí vem o outro
 dogma, o da sustentabilidade, como se fosse possível tornar sustentável
 o que, em sua estrutura, é insustentável.
O que o dogma 
do crescimento faz é proteger os privilégios dos muito ricos: o problema
 deixa de ser a distribuição igualitária das riquezas existentes e passa
 a ser o crescimento insuficiente, que não permite garantir o suficiente
 para todos. O imperativo de crescer é repetido à exaustão para encobrir
 a injustiça estrutural: a desigualdade na distribuição de riquezas. 
Carregando seu corpo exaurido, mesmo o pobre passa a acreditar que sua 
miséria é provocada por falta de crescimento. Sem reparar que nos 
momentos em que o tal bolo cresceu, as fatias se tornaram maiores para 
os que já eram donos do bolo e sobrou para ele, quando muito, a farofa 
da cobertura.
No Brasil, o 1% mais rico concentra quase 
um terço da renda (28,3%), o que dá ao país o título de vice-campeão 
mundial em desigualdade, segundo o último Relatório de Desenvolvimento 
Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil só perde para o 
Catar – e apenas por 0,7%. Cinco bilionários brasileiros concentram a 
mesma riqueza que a metade mais pobre do país, segundo estudo da 
organização não-governamental britânica Oxfam, publicado em 2018. Cinco 
pessoas concentram a mesma renda que 100 milhões de brasileiros. Este é o
 problema. Não é por falta de exploração da natureza que o país é 
tremendamente desigual. Ao contrário. O esgotamento dos suportes de vida
 do planeta é um dos principais geradores de pobreza e de desigualdade.
O
 dogma do crescimento, que faz as engrenagens do capitalismo girar, foi 
determinante para produzir a emergência climática. O que a emergência 
climática torna explícito é que já não será possível “crescer”. É 
necessário mudar radicalmente o modo de vida porque, como diz a jovem Greta Thunberg,
 “nossa casa está em chamas”. Diante do superaquecimento global e da 
perda de ecossistemas vitais, realmente imperativo é distribuir as 
riquezas existentes.
É esse conteúdo explosivo que faz 
com que as grandes corporações que dominam o planeta apoiem 
negacionistas do clima como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com esses déspotas eleitos disseminando mentiras e distraindo o mundo com falsos problemas,
 elas ganham tempo. Já sabem que não dá mais para seguir, mas farão o 
impossível para ganhar o máximo enquanto for possível. Guardadas as 
proporções, é como a indústria do cigarro: negou os malefícios por 
décadas, contra todas as pesquisas científicas, e ganhou dinheiro 
produzindo câncer enquanto deu. Ainda hoje, contabiliza cifras 
bilionárias.
O desafio que nossa geração tem pela frente é
 imenso. E será duro. Muito duro. Como a crise climática se desenrola 
num outro tempo, o encontro com a realidade era sempre adiado pela 
maioria, apesar dos gritos dos cientistas e dos jovens. Os negacionistas
 foram eleitos porque grande parte da população mundial quer continuar 
negando o inegável junto com eles. Então o vírus escancara a realidade. 
Dele não dá para fugir, já que fugir é morrer.
O que 
temos hoje é uma janela de realidade, o momento em que todos, 
absolutamente todos, são obrigados a se encontrar com a verdade. É por 
isso que Bolsonaro se tornou ainda mais pirotécnico. Para manter o poder
 ele precisa falsificar a realidade. Vinha conseguindo, e o vírus 
arrancou de uma vez essa possibilidade. Diz então que “o vírus não é 
tudo isso que dizem”. Porque, apavorado, sabe que o vírus é muito mais. 
Diante da verdade da morte, nenhuma mentira vinga.
Bruno Latour assim anuncia o impasse
 da janela aberta pelo coronavírus: “Se a oportunidade serve para eles, 
serve para nós também. Se tudo para, tudo pode ser recolocado em 
questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo 
contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de 
ano. À exigência do bom senso: ‘Retomemos a produção o mais rápido 
possível’, temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’. A última
 coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.
Para que possamos seguir esse debate, reproduzo aqui as perguntas que ele lança para cada um e para o coletivo:
“Aproveitemos
 a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um 
inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas 
que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às 
seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:
1) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?
2)
 Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / 
perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão /
 substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / 
pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas 
listadas na pergunta 1).
3) Que medidas você sugere para 
facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores 
/empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas 
atividades que você está suprimindo?
4) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5)
 Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna 
outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / 
pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis.
 (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na 
pergunta 4).
6) Que medidas você sugere para ajudar os 
trabalhadores / empregados /agentes / empresários a adquirir as 
capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver
 / criar esta atividade?
Acrescento à lista uma pergunta 
minha. Não há nada que as grandes corporações que controlam o planeta, 
assim como os políticos neoliberais que os representam nas várias 
instâncias do Estado, temam mais do que a desobediência civil. No 
Brasil, as esmolas que concedem para que os mais pobres sobrevivam à 
pandemia têm por objetivo estancar a possibilidade do “caos social” ou 
de uma “convulsão social”. Ou seja: o povo nas ruas e já sem nada a 
perder.
Desde o final de 2018, o movimento que mais 
balançou a “normalidade” que os senhores do mundo tanto prezam foi a 
desobediência civil dos adolescentes, que se recusaram a ir para a escola a cada sexta-feira.
 No ato da greve escolar, eles denunciavam que os adultos roubaram o seu
 futuro ao não fazer o necessário para conter o colapso climático. Sem 
futuro, para que estudar? Como são crianças e adolescentes, esta era a 
desobediência civil disponível. E como funcionou.
Assim, a minha pergunta é: qual poderia ser a melhor ação de desobediência civil neste momento?
No
 Brasil de Bolsonaro, sabemos que nossa principal desobediência civil é 
sobreviver. Mas, para além de nos mantermos vivos, como podemos 
desobedecer aos produtores de morte para criarmos um futuro onde 
possamos existir com todos os outros?
Encerro com Ailton 
Krenak, porque acho que as melhores ideias virão dos pensadores 
indígenas, daqueles que sabem como viver sem esgotar o planeta e sem 
produzir iniquidades. Ele diz: “O próprio enunciado de alguma coisa que 
virá depois anima nosso sentido de viver. É a ideia de adiar o fim do 
mundo. Nós adiamos o fim de cada mundo, a cada dia, exatamente criando 
um desejo de verdade de nos encontrarmos amanhã, no final do dia, no ano
 que vem. Esses mundos encapsulados uns nos outros que nos desafiam a 
pensar um possível encontro das nossas existências – é um desafio 
maravilhoso”.
Vamos?
Eliane Brum é
 escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de 
Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum



 
 
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