quinta-feira, 31 de outubro de 2019

ROBERT FISK, SOBRE AS REVOLTAS NO ORIENTE MÉDIO


 Do Independent. Creio que a análise do Fisk se encaixa um pouco também no que vem ocorrendo no Chile.


As novas revoluções do Oriente Médio não são as mesmas, mas todas compartilham este defeito fatal

Eles não têm liderança, nenhum rosto reconhecível de integridade. E - a maior tragédia de todas - eles não parecem interessados ​​em encontrar


Robert Fisk
em Beirute

Revoluções são como eletricidade. Um choque elétrico do tipo mais inesperado. As vítimas pensam na hora que deve ser uma poderosa picada de vespa. Então eles percebem que toda a casa em que vivem foi eletrocutada.

Eles reagem com uivos de dor, prometem se mudar de casa ou refazer a rede elétrica de todo o local, para proteger os ocupantes. Mas uma vez que eles percebem que a eletricidade pode ser domada - ainda que implacavelmente - e, o mais importante de tudo, que ela não tem elemento de controle, elas começam a relaxar. Era só uma conexão defeituosa, dizem eles para si mesmos. Alguns eletricistas resolutos e bem treinados podem lidar com esse surto de energia fora de ordem.

É o que está acontecendo no Iraque, Líbano e na Argélia. Em Bagdá e Kerbala, em Beirute e na cidade de Argel - e, mais uma vez, em miniatura e brevemente, no Cairo. Os jovens e os instruídos exigiram o fim não apenas da corrupção, mas do sectarismo, do confessionalismo, dos governos da máfia religiosa de imensa riqueza, arrogância e poder.


Mas todos eles cometeram o mesmo erro que milhões de egípcios cometeram em 2011: eles não têm liderança, nenhum rosto reconhecível de integridade. E - a maior tragédia de todas - eles não parecem interessados ​​em encontrar algum.

Derrube o regime, o governo, os mestres da fraude, os centros de poder cancerosos: esse é o único clamor deles. Os manifestantes libaneses, às centenas de milhares, estão exigindo uma nova constituição, o fim do sistema confessional de governo - e a abjeção da pobreza. Eles estão absolutamente certos; mas então eles param. Os trapaceiros devem sair, para sempre. Se esses homens - pois são todos homens, é claro - são nepotistas, roubam ou se baseiam no poder armado, sua partida é suficiente para aqueles que devem herdar o futuro do Líbano.

É como se os revolucionários de Beirute, Bagdá e Argel fossem puros demais para mergulhar seus dedos na cola do poder político, sua bondade divina demais para ser contaminada pela sujeira da política, suas demandas espirituais demais para serem tocadas pelo trabalho árduo cotidiano. da governança futura, que eles acreditam que apenas sua coragem garantirá a vitória.

Isso não faz sentido. Sem liderança, eles serão esmagados.

As elites e reis que governam o mundo árabe têm garras afiadas. Oferecerão concessões irrisórias: um fim prometido à corrupção, a abolição dos impostos recentemente impostos, algumas renúncias ministeriais. Eles também vão elogiar os revolucionários. Eles os descreverão como “a verdadeira voz do povo” e “verdadeiros patriotas” - embora, se os revolucionários persistirem, venham a ser chamados de “antipatrióticos” e, inevitavelmente, traidores que estão fazendo o trabalho de “potências estrangeiras”. O governo que renuncia até oferecerá novas eleições - com, é claro, os mesmos rostos antigos e infames saindo e retornando ao carrossel confessional quando a votação for realizada.

Nem todas essas novas revoluções são iguais. Na Argélia, uma classe recém-educada (e desempregada) ficou cansada e sem esperança sob a pseudo-democracia do exército. Eles se livraram do comatoso Abdelaziz Bouteflika, apenas para serem confrontados por um novo líder do exército e pela famosa promessa de eleições em dezembro (no mesmo dia, por acaso, que a versão de Downtown Street de um líder elitista de Toytown, na Downing Street, pretende dividir o povo britânico. ) (trata-se do primeiro ministro britânico Boris Johnson, N. T.) - uma oferta absurda, uma vez que o novo presidente eleito continuará aninhado nos braços dos generais corruptos cujas contas bancárias estão atualmente ativas na França e na Suíça.

A Argélia é de propriedade do exército. É o que no Oriente Médio às vezes chamo de "econmil": uma economia praticamente embutida no quartel, um complexo econômico-militar, o que significa que o patriotismo e a riqueza pessoal são considerados pela liderança como indivisíveis. Seus oponentes são pobres. Eles querem comida em seu país imensamente lucrativo e encharcado de óleo. Mas não é assim que os generais veem as coisas. Quando as pessoas exigem mudanças, elas estão tentando tomar o dinheiro do exército.

O sistema é muito semelhante ao exército de al-Sisi no Egito - outro "econmil", com seu controle de imóveis, shopping centers e bancos. Os EUA pagam mais de 50% do orçamento de defesa do Egito, mas os tanques e jatos de combate do país não devem ser usados ​​contra os inimigos tradicionais do Egito. O dever deles é proteger Israel, esmagar o islamismo, manter "estabilidade" para os aliados da América e para seus investimentos. Os milhões de manifestantes de 2011, desiludidos pelos meses rasos e assustadores de Morsi, estavam prontos para serem infantilizados pelo exército. Eles não tinham líderes para avisá-los de sua loucura.

Os jornalistas de televisão do Egito, tão corajosos nas linhas de frente, reapareceram no dia do golpe de Sisi, apresentando seus shows em trajes militares. A oposição se tornou "terrorista" - que é do que os políticos iraquianos e libaneses estão começando a chamar de jovens opositores políticos - e os poucos revolucionários recém-nomeados que poderiam ter criado um novo Egito foram rapidamente jogados na escuridão do complexo penitenciário de Tora.

Quando centenas de homens e mulheres egípcios infinitamente corajosos ousaram recriar seus protestos no Cairo este mês, foram arrebatados das ruas.

E quem são os novos líderes no Iraque? Não sabemos nada sobre isso. Assim, as massas cansadas, pobres e amontoadas que desejam possuir seu próprio país e tirá-lo dos pomposos ministros que administraram mal o seu patrimônio agora são tratadas como um risco à segurança, uma multidão, uma multidão anárquica (com certeza, no lugar dos habituais “agentes estrangeiros”) e cujas demandas devem agora ser abatidas com fogo vivo.

O Iraque deu mais mártires em sua atual revolução - 200 e aumentando - do que outras nações árabes. E agora as milícias chegaram para suprimi-las; 18 manifestantes xiitas assassinados em Karbala foram vítimas de uma milícia xiita - sua procedência iraniana, muito divulgada no oeste, ainda não é clara - provando que aqueles que estavam preparados para lutar e morrer contra a ocupação americana do Iraque ainda estão preparados para matar seus correligionários para esmagar uma revolução iraquiana.

No Líbano, esse fenômeno é menos sangrento, mas potencialmente ainda mais vergonhoso.

Quando centenas de milhares de manifestantes no centro de Beirute são atacados por gangues de membros do Hezbollah pertencentes a Sayed Hassan Nasrallah, isto marcou talvez o primeiro ato verdadeiramente vergonhoso cometido no Líbano por esses homens corajosos - combatentes que realmente expulsaram o exército israelense do Líbano. em 2000. Os "heróis" do sul estavam preparados para atacar seus companheiros libaneses, a fim de preservar seu poder político ao lado dos velhos corruptos e ricos de Beirute. Nasrallah deveria ter se alinhado com esses jovens libaneses e palestinos que se juntaram a eles e ficaram firmemente ao lado do "povo". Isso teria sido um ato político profundo e histórico.

Em vez disso, Nasrallah alertou para a "guerra civil" - a horrível alternativa usada pelos Sadats, Mubaraks e outros ditadores para manter seu povo empobrecido com medo. Poder e privilégio - seu poder e privilégio - eram mais importantes, no final, para aqueles cujos irmãos lutavam e morriam pela liberdade contra o poder de ocupação israelense.

Portanto, a pergunta agora está sendo feita, por mais injusta que seja, se a existência do Hezbollah tem sido mais sobre autopreservação política do que libertação.

Eu não penso assim. O Hezbollah é uma das poucas milícias que têm alguma integridade no Líbano. Mas, a menos que Nasrallah diga ao seu povo para ficar ao lado dos libaneses de todas as seitas, em vez de atacá-los, o Hezbollah terá dificuldade em tirar a vergonha dos últimos dias.

Revolucionários, especialmente do tipo armado, pretendem defender todo o seu povo, não aceitam ordens de homens corruptos, o braço militar de um governo decadente da classe média, alguns dos quais de fato têm membros que são leais a potências estrangeiras.  O Hezbollah - e seu aliado local Amal, é controlado (é claro) pelo presidente do parlamento, Nabih Berri - trabalhando para os xiitas do sul do Líbano, alguns dos quais agora estão se opondo a suas táticas? Ou para a Síria? Ou para o Irã? O que aconteceu com o "muqawama", o justamente lendário movimento de resistência à agressão de Israel?

Agora, eu sei, os manifestantes de Beirute estão debatendo quem podem ser seus líderes. Esse é o antigo problema. Aqueles fora do país não fazem parte da luta. Aqueles que poderiam - na Europa, talvez, no velho leste europeu - ter sido a espinha dorsal intelectual de uma verdadeira revolução política no Líbano, são tocados de perto pelo sectarismo do governo.

Em um mundo diferente, em uma era diferente, há um homem que poderia ter se tornado o líder mais carismático dos "novos" libaneses: Walid Jumblatt, o líder druso. Ele é corajoso, carismático no sentido mais literal da palavra, um verdadeiro intelectual, um socialista por natureza (embora viva parte de seu tempo em um magnífico castelo em Moukhtara, nas montanhas Chouf). Uma vez eu o chamei de o maior niilista do mundo.

Mas, como líder druso, ele representa apenas 6% do povo libanês - veja como um sistema sectário define suas ambições em porcentagens? - e como líder revolucionário em um novo Líbano, ele seria inevitavelmente acusado de tentar manter o poder político para sua seita e não para seu povo.

Esse é o verdadeiro câncer do confessionalismo. Você não pode "curar" a doença do sectarismo. Essa é a tragédia do Líbano. Mas deve haver liderança para que os manifestantes do Líbano sobrevivam à sua luta. Caso contrário, eles serão divididos. E eles vão falhar.

É o que o Hezbollah e Amal estão tentando fazer agora. Se eles podem derrotar os manifestantes, afastar mulheres e crianças, transformar os manifestantes na infame "multidão" e "plebeia", afugentam os xiitas de seus irmãos e irmãs no centro de Beirute, então as autoridades - apesar da admirável contenção do exército neste mês - terão o mandato de esmagar a violência. E isso será o fim de outra vela brilhante de oportunidade para acabar com a maldição inerente da história libanesa.

Talvez os manifestantes libaneses devam ter um momento para usar seus celulares para refletir um pouco sobre Hollywood. Na versão cinematográfica do Dr. Zhivago, os foliões em uma boate desprezível de Moscou ficam em silêncio ao ouvir a batida e o canto de manifestantes bolcheviques nas ruas cobertas de neve do lado de fora. Entre os convidados está Viktor Komarovsky (interpretado por Rod Steiger); nenhum revolucionário, nenhum intelectua,l ele.

Komarovsky é talvez a figura mais interessante e credível do filme, um cínico perigoso e corrupto que passará sem esforço de empresário burguês para ministro bolchevique enquanto a revolução esmaga os exércitos czaristas que governaram a Rússia por gerações. Mas na boate - ciente de que os bolcheviques são ingênuos e sem liderança - Komarovsky se inclina para a janela e diz em voz alta: "Sem dúvida, eles cantarão afinados depois da revolução".

A plateia da boate ri. Em seguida, os manifestantes são abatidos pelos sabres da cavalaria do czar.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O NOVO GOVERNO ARGENTINO E A PESQUISA CIENTÍFICA

Saiu no Science

Alberto Fernández
 
NATACHA PISARENKO/AP PHOTO

Argentine scientists rally behind favorite in Sunday’s presidential election

Thousands of Argentine scientists are hoping the man expected to be the country’s next president will reverse deep cuts to research imposed by the conservative government of President Mauricio Macri. But the first priority for Alberto Fernández, the front-runner in Sunday’s election, will almost certainly be Argentina’s crumbling economy. And it’s not clear when—or how effectively—the concerns of scientists will be addressed.
Fernández, a 60-year-old lawyer and political insider, worked for former President Nestor Kirchner and, for a short time, under Cristina Fernández de Kirchner after she succeeded her husband in 2007. Despite a decadeslong rift between Fernández and Cristina Kirchner, she is now his running mate, and the presidential candidate is expected to continue her brand of populism, whose roots go back almost 70 years to the rule of Juan Peron. Polls show Fernández leading Macri by a wide margin; Fernández will gain the presidency if he captures more than 45% of the vote in a six-person field, or wins 40% of the vote and leads by at least 10 percentage points.
Kirchner won the support of many scientists by creating Argentina’s first Ministry of Science. She also increased the number of student scholarships and pledged to create more jobs within the National Scientific and Technical Research Council (CONICET). Elected in November 2015, Macri eliminated the science ministry and cut new CONICET jobs to less than one-third the level that Kirchner had targeted by this year. Other cuts have left research labs struggling to cover basic services such as routine maintenance and the cost of electricity and security.
Almost 11,000 self-identified members of the scientific community have signed their names to a pro-Fernández statement of support created by Science and Technology Argentina (CyTA), an advocacy group formed in 2016 to oppose Macri’s policies pertaining to science and research.
“Four years of cuts combined with a very, very aggressive discourse against scientific work—especially against the social sciences—would be stopped with the government change,” says Rolando González-José, a biologist at the National Patagonian Center in Puerto Madryn and a member of CyTA.
But although Fernández and Kirchner have voiced strong support for “the development of knowledge” and increased funding for research, the ticket is not without its problems. Kirchner faces corruption charges, including accusations that she solicited bribes and manipulated financial data during her time in office. And voters are split on which leader—Macri or Kirchner—deserves more blame for Argentina’s current economic crisis, which has sent the value of the peso plunging and inflation soaring.
Argentine biologist Marina Simian was so desperate under Macri’s cuts that she famously turned to a local version of the game show Who Wants to be a Millionaire to buy reagents for her lab’s cancer research at the National University of San Martin. Still, she plans to vote for Macri because she worries that a Fernández-Kirchner victory would mean a more authoritarian and less transparent government. And although Simian has criticized Macri’s view of science, she says scientists were protesting low salaries and a dearth of grants long before Macri took office.
“We didn’t go from heaven to hell in 4 years,” she says. “We were in hell, and then we fell into a worse hell.”
Mario Pecheny, a political science researcher at the University of Buenos Aires and vice president of scientific affairs at CONICET, expects Fernández will be hard-pressed to deliver on his promises, given the country’s economic woes. But he thinks a Fernández victory will be a positive step for research.
“I’m not completely sure that the new government will do whatever we want them to,” he says. “But I think it will be much more friendly to science.”

terça-feira, 22 de outubro de 2019

CRISES DO CLIMA, NOVAS TECNOLOGIAS E O SIGNIFICADO DE SER HUMANO

Do Intercept

BILL MCKIBBEN SOBRE COMO AS CRIMES CLIMÁTICAS E AS NOVAS TECNOLOGIAS MUDARÃO O QUE SIGNIFICA SER HUMANO


October 19 2019, 7:00 a.m.
A raça humana está chegando ao fim? A pergunta em si pode parecer hiperbólica - ou como um retrocesso ao arrebatamento e apocalipse. No entanto, há razões para acreditar que esses medos não são mais tão exagerados. A ameaça das mudanças climáticas está forçando milhões em todo o mundo a enfrentar realisticamente um futuro em que suas vidas, no mínimo, parecem radicalmente piores do que são hoje. Ao mesmo tempo, tecnologias emergentes de engenharia genética e inteligência artificial estão dando a uma pequena elite tecnocrática o poder de alterar radicalmente o homo sapiens até o ponto em que a espécie não se assemelha mais a si mesma. Seja por colapso ecológico ou mudança tecnológica, os seres humanos estão se aproximando rapidamente de um precipício perigoso.

As ameaças que enfrentamos hoje não são exageradas. Eles são reais, visíveis e potencialmente iminentes. Eles também são objeto de um livro recente de Bill McKibben, intitulado “Falter: o jogo humano começou a se destacar?” McKibben é ambientalista e autor, além de fundador do 350.org, um grupo de campanha que trabalha para reduzir as emissões de carbono. Seu livro fornece uma análise empírica e sóbria das razões pelas quais a raça humana pode estar chegando aos estágios finais.

McKibben falou com o The Intercept sobre o livro. A entrevista foi editada e condensada para maior clareza.

Você pode explicar o que você quer dizer com "jogo humano"?

Eu estava procurando uma frase para descrever a totalidade de tudo o que fazemos como seres humanos. Você também pode chamá-lo de civilização humana ou projeto humano. Mas "jogo" parece ser um termo mais apropriado. Não porque é trivial, mas porque, como qualquer outro jogo, ele realmente não tem um objetivo fora de si. O único objetivo é continuar a jogar, e espera-se,  jogar bem. Jogar bem o jogo humano pode ser descrito como viver com dignidade e garantir que outros possam viver com dignidade também.

Existem ameaças muito sérias agora enfrentando o jogo humano. Questões básicas de sobrevivência e identidade humanas estão sendo realisticamente questionadas. Ficou claro que a mudança climática está diminuindo drasticamente o tamanho do tabuleiro em que o jogo é jogado. Ao mesmo tempo, algumas tecnologias emergentes ameaçam a ideia de que os seres humanos como espécie ainda estarão por aí para brincar no futuro.

Você poderia resumir brevemente as implicações das mudanças climáticas para o futuro da civilização humana, como atualmente a entendemos?

A mudança climática é de longe a maior coisa que os humanos já conseguiram fazer neste planeta. Alterou a química da atmosfera de maneiras fundamentais, elevou a temperatura do planeta acima de 1 grau Celsius, derreteu metade do gelo do verão no Ártico e tornou os oceanos 30% mais ácidos. Estamos vendo incêndios florestais incontroláveis ​​em todo o mundo, juntamente com níveis recordes de seca e inundação. Em alguns lugares, as temperaturas médias diárias já estão ficando muito quentes para que os seres humanos trabalhem durante o dia.

As pessoas estão planejando deixar grandes cidades e áreas costeiras baixas, onde seus ancestrais vivem há milhares de anos. Mesmo em países ricos como os Estados Unidos, infraestrutura crítica está sendo prejudicada. Vimos isso recentemente com o desligamento da energia elétrica em grande parte da Califórnia devido ao risco de incêndio. Foi o que fizemos com apenas 1 grau Celsius de aquecimento acima dos níveis pré-industriais. Já está se tornando difícil viver em grandes partes do planeta. Em nossa trajetória atual, estamos caminhando para 3 ou 4 graus de aquecimento. Nesse nível, simplesmente não teremos uma civilização como temos hoje.

Como o principal culpado pelas mudanças climáticas continua sendo o setor de combustíveis fósseis, que medidas práticas podem ser tomadas para controlar suas atividades? E, como também compartilham um planeta com todos os outros, qual é exatamente o plano deles para um futuro de distopia climática?

Já fizemos esforços para desinvestir e interromper a construção de oleodutos, mas a próxima área crucial é a de finanças: focando nos bancos e gerentes de ativos que lhes dão dinheiro para fazer o que fazem. Tornou-se muito claro que o único objetivo da indústria de combustíveis fósseis é proteger seu modelo de negócios a todo custo, mesmo ao custo do planeta. Grandes empresas de petróleo como a Exxon sabiam da conexão entre as emissões de carbono e as mudanças climáticas nos anos 80. Eles sabiam e acreditavam no que estava por vir. Em vez de ajustar racionalmente seu comportamento para evitá-lo, eles investiram milhões em lobby e desinformação para garantir que o mundo não faria nada para fazê-los mudar ou interromper suas atividades.

"Assim como há muito tínhamos dado por garantida a estabilidade do planeta, também temos dado por garantida a estabilidade da espécie humana".

Na medida em que qualquer empresa de combustíveis fósseis pensa o longo prazo - e não está claro que ainda o faça - eles sabem que seus dias estão contados. Os custos de energia renovável estão despencando, e o que a indústria está lutando agora é apenas continuar por mais algumas décadas. O objetivo deles é garantir que ainda queimemos muito petróleo e gás em 10 ou 20 anos, em vez de tratar de sair dessas coisas o mais rápido possível.

A outra grande ameaça que você identifica é representada por tecnologias como engenharia genética. Você pode explicar a ameaça que eles representam para a identidade e o propósito humanos?

Assim como há muito tomamos por garantida a estabilidade do planeta, da mesma forma tomamos por garantida a estabilidade da espécie humana. Existem agora tecnologias emergentes que põem em questão suposições muito fundamentais sobre o que significa ser um ser humano. Tomemos, por exemplo, tecnologias de engenharia genética como o CRISPR. Elas já estão entrando em vigor, como vimos recentemente na China, onde um par de gêmeos nasceu após ter seus genes modificados no embrião. Não vejo nenhum problema em usar a edição de genes para ajudar pessoas existentes com doenças existentes. Isso é muito diferente, no entanto, dos embriões de engenharia genética com modificações especializadas.

Digamos, por exemplo, que um casal expectante decida projetar seu novo filho para ter um certo equilíbrio hormonal destinado a melhorar seu humor. Essa criança pode chegar à adolescência um dia e se sentir muito feliz sem nenhuma explicação específica do motivo. Eles estão se apaixonando? Ou são apenas as especificações de engenharia genética deles? Em breve, os seres humanos poderão ser projetados com toda uma gama de novas especificações que modificam seus pensamentos, sentimentos e habilidades. Penso que essa perspectiva - que não é exagerada hoje em dia - será um ataque devastador às coisas mais vitais do ser humano. Isso colocará em questão ideias básicas sobre quem somos e como pensamos sobre nós mesmos.

Há também a implicação de acelerar a mudança tecnológica na tecnologia de engenharia genética. Após modificar o primeiro filho, esses mesmos pais podem voltar cinco anos depois para a clínica para fazer alterações no segundo filho. Enquanto isso, a tecnologia avançou e agora você pode obter uma nova série de atualizações e ajustes. O que isso significa para o primeiro filho? Isso os torna o iPhone 6: obsoleto. Essa é uma ideia muito nova para os seres humanos. Um dos recursos padrão da tecnologia é a obsolescência. Uma situação em que você está rapidamente tornando as pessoas obsoletas me parece errada.

"No momento, essas tecnologias pegam a desigualdade econômica existente atualmente e a codificam em nossos genes."
Também parece haver uma questão de desigualdade econômica aqui, no sentido de que pessoas com mais recursos serão as que terão acesso a esses aprimoramentos genéticos.

Como estão as coisas, essas tecnologias pegam a desigualdade econômica atualmente existente e a codificam em nossos genes. Isso obviamente acontecerá se continuarmos por esse caminho que ninguém se incomoda em argumentar de outra maneira. Lee Silver, professor da Universidade de Princeton, um dos principais defensores da modificação genética, já disse que, no futuro, teremos duas classes desiguais de seres humanos: "GenRich" e "naturals". Ele e muitos outros já têm começado a tomar esse futuro como garantido.

Você acha que a inteligência artificial representa uma ameaça semelhante aos seres humanos?

Muitas das primeiras gerações de pessoas que estudaram IA acabaram ficando com muito medo de suas possíveis implicações. Há um medo de que robôs inteligentes e códigos de programação possam ficar fora de controle e acabar sendo uma ameaça para os seres humanos. Esses medos podem ou não ser reais. No final das contas, eles me preocupam menos do que o ataque mais fundamental ao significado e ao propósito humano imposto por essas tecnologias. Eles podem facilmente eliminar a maioria das opções e atividades que nos deram nosso sentido básico de identidade como seres humanos.

Qual deve ser a prioridade dos movimentos sociais que buscam defender "o jogo humano" no momento? E temos motivos para otimismo?

A mudança climática é uma questão tão imediata e avassaladora que deve ser o foco de nossa atenção agora, porque poderia fazer todo o resto discutível. Eu assisti à ascensão do movimento climático por muitos anos e isso me dá algum otimismo. Recentemente, vimos ataques climáticos maciços ao redor do mundo. O Partido Democrata nos Estados Unidos está se energizando sobre esse assunto. Estes são bons sinais. Se eles chegarão a tempo ou não, não sabemos. Mas o advento da engenharia genética humana não está recebendo a atenção que merece no presente. As profundas implicações do CRISPR e de outras tecnologias em rápida evolução são coisas que devemos prestar muito mais atenção. De uma perspectiva estratégica, seria bom obter uma resistência mais cedo ou mais tarde. Como vimos com combustíveis fósseis, uma vez que exista uma indústria enorme e poderosa por trás de algo, torna-se muito mais difícil de controlar.

Parece que, no centro, há uma questão ideológica subjacente a todas essas ameaças que atualmente estão enfrentando os seres humanos.

É instrutivo que muitas das fantasias subjacentes às manifestações mais extremas da engenharia genética e da IA ​​vêm de pessoas no Vale do Silício que compartilham uma mentalidade libertária. São essencialmente versões modernas dos irmãos Koch. Eles compartilham um ethos com a indústria de combustíveis fósseis, que afirma que ninguém deve questionar as decisões tomadas pelos poderosos e que ninguém deve impedir o negócio e a inovação tecnológica.


Enquanto isso, o público vem sendo informado - e já há muito tempo - que eles não são nada além de indivíduos e nada além de consumidores. Isso vai contra tudo o que sabemos sobre a natureza humana. Os seres humanos ficam felizes quando fazem parte das comunidades de trabalho, não quando estão sozinhos como indivíduos tentando dominar o universo. É disso que se trata, em certo sentido, todas essas batalhas: construir solidariedade humana contra uma elite hiper individualista. Precisamos descobrir mais uma vez como tomar decisões como sociedade, em vez de ter um pequeno grupo de pessoas super ricas tomando essas decisões em privadamente por nós.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

QUE SÃO ESSAS REVOLTAS TODAS?

Vamos lá: Equador, Líbano, Chile, Espanha. Nesta última, a razão foi a condenação à prisão dos líderes separatistas da Catalunha. Nos outros, se formos escarafunchar, trata-se de revoltas contra medidas de austeridade. No caso do Líbano, as multidões acusam o governo de favorecer os interesses de seus associados. Mas em toda a parte trata-se da economia, estúpido!

Em outras palavras, trata-se da economia que segue os cânones neoliberais, impostos através de seus governos, na maior parte destes casos, governos de direita. Será que se ao fim e mais tarde acabarem emergindo governos de esquerda ou centro esquerda, alguma coisa vai mudar?

Governos de direita praticam o neoliberalismo: venda dos ativos públicos, sucateamento e venda das empresas de serviços públicos, reformas trabalhistas e de previdência cujo efeito, não proclamado pelos governos e escondido pela mídia, é transferir fluxos de rendas dos trabalhadores e dos pobres para os ricos, principalmente o setor financeiro.

As multidões em protestos apontam para os governos vigentes. Mas eles estão lá para fazer o serviço sujo de outros poderes mais poderosos: a banca privada, bancos centrais, FMI, governo dos EUA e seus aliados principais - Israel e Arábia Saudita, o Pentágono, as grandes corporações, os 1%.

Muitos governos social democratas já foram chantageados por esses poderes, e caíram, ou perderam apoio justamente por cederem em tantas questões para esses poderes. Claro que temos que incluir aqui os governos de Lula e Dilma. Também, os sindicatos, os movimentos populares, a academia estão enfraquecidos, os primeiros por ações tanto de governos de direita como da evolução da estrutura da economia, a última pela ofensiva das falanges (milícias) direitistas.

No meio disso tudo, algumas tendências na geopolítica e em países mais ricos indicam caminhos novos. Por exemplo, a pré-candidatura de Bernie Sanders à presidência dos EUA pelo Partido Democratga acaba de receber um reforço que pode ser significativo, enquanto a candidatura de Joe Biden, político tradicional, ligado a Wall Street e aos interesses tradicionais do complexo industrial militar, vai se desfazendo dia a dia. A conferir. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

FRENTE (MUITO) AMPLA: MÁ IDEIA

Artigo de Vladimir Safatle no El Pais

Falta uma oposição real no Brasil, que imponha outra agenda no debate público
Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito


VLADIMIR SAFATLE
15 OCT 2019 - 13:03 BRT


Uma das mais astutas peças da engenharia política colocada em operação pela ditadura militar consistiu na produção de sua própria oposição. Dificilmente encontraremos uma ditadura que, logo ao ser implementada, não anulou toda a oposição, mas na verdade criou seu próprio partido de oposição. Ou seja, o MDB é um produto da ditadura, talvez seu produto mais impressionante. O que demonstrava como, desde o início, tratava-se de uma ditadura que não se via como uma operação de intervenção cirúrgica, mas como um movimento de reformulação profunda da vida nacional feito para durar mesmo depois do seu fim.

Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito”. Pois o poder se exerce não exatamente quando definimos as normas a serem seguidas. Ele se exerce principalmente quando definimos as margens, quando organizamos as posições e as formas de resistência que os descontentes poderão ocupar. Um poder perfeito é aquele que é, ao mesmo tempo, a norma e a resistência.


Assim, ao definir as condição de sua própria oposição, ou seja, ao construir o próprio ator que a sucederia depois de seu término, a ditadura brasileira encontrou uma maneira de fazer, da Nova República, apenas a ocasião de seu próprio desdobramento. Como se disse várias vezes antes, o MDB era sobretudo um modelo de paralisia, uma forma de travar as lutas e dinâmicas de conflitos sociais próprios à realidade brasileira. Esta paralisia acabou por levar a Nova República ao colapso e, ironia maior da história, ao restabelecimento de novos representantes do setor mais violento da ditadura militar.

Um processo similar está em curso atualmente, a saber, as forças em torno do governo, ou que um dia giraram em torno do governo, estão a construir sua própria oposição. Neste sentido, é digno de nota a maneira com que o espaço da oposição é atualmente ocupado, principalmente, por antigos aliados, por apoiadores ocasionais ou ainda por atores de espectros políticos próximos àquele assumido pelo governo. Isto é parte fundamental de uma operação de restrição e gestão do horizonte de debate nacional. Não por acaso, o discurso oposicionista começa a se configurar como um discurso de crítica à política ambiental, às “derrapadas” do governo, a sua “insensibilidade” para com setores historicamente violentados, mas que sempre termina por lembrar: “embora tudo isto ocorra, sua política econômica é boa”. Como se estivéssemos a ver a gestação de novos candidatos a gerentes de uma política econômica aparentemente consensual, a despeito de seus resultados catastróficos. Assim, da mesmo forma como em Aristóteles a atualidade é a situação atual mais a soma de seus possíveis, constrói-se paulatinamente horizonte dos possíveis deste atual governo.


Como a outra face necessária dessa moeda, vemos desenhar-se no Brasil um tipo de movimento que parece querer repetir o que se passou na Itália nas últimas décadas. Desde o fim da Segunda Guerra, a Itália despontou como um país de esquerda em ebulição. O maior partido comunista da Europa, movimentos autonomistas extremamente dinâmicos e contestadores, movimentos sociais múltiplos. No entanto, não há sequer sombra disto atualmente. Simplesmente não há mais esquerda italiana. O que aconteceu?

Se quisermos fazer a arqueologia de Bolsonaro chegaremos necessariamente a Silvio Berlusconi, certamente o primeiro da série de líderes populares de extrema-direita que dão o tom da política mundial. Quando Berlusconi emergiu, todo o resto do espectro político foi paulatinamente se configurando em enormes “frentes de resistência”. Ou seja, a política se resumiu a Berlusconi e as resistências a ele. Essas grandes frentes, no entanto, quando conseguiam desalojá-lo não eram capazes de realmente governar. Pois não havia nada que os uniam a não ser a recusa a Berlusconi. Principalmente, tais frentes tendiam a anular as forças de esquerda no interior de dinâmicas gerenciais de poder. Sem espaço para impor suas dinâmicas de ruptura, a esquerda era convocada à responsabilidade de sustentar governos com a paralisia das coalizões heteróclitas. Assim, no interior desta dinâmica de frente ampla, todos se enfraqueceram, pois a única força política real era Berlusconi. A única força política real, que pregava a ruptura, estava fora da frente. Todo o resto era a expressão da ordem, de uma ordem que ninguém queria mais. O resultado final demonstrou-se absolutamente inefetivo. Quando Berlusconi enfim caiu em definitivo, seu lugar foi ocupado não por atores dessa frente ampla, mas por alguém ainda pior que ele, alguém cujas simpatias fascistas eram ainda mais evidentes, a saber, Matteo Salvini. Mesmo fora do governo depois de uma manobra desastrada, Salvini permanece o político mais popular da Itália, prestes a retornar ao poder na próxima eleição.

Isto apenas demonstra como, em política, resistir é perder. Resistir é apenas confessar que não é você quem controla a agenda política, quem tem a força de produzir a agenda. Você simplesmente responde negativamente a uma agenda decidida por outro. A política de frente ampla, de todos contra Bolsonaro será impotente diante de uma “oposição consentida” que está a ser gestada atualmente e que visa garantir a proliferação de atores dispostos a perpetuar as políticas do atual governo, apenas com diferentes graus de temperatura e pressão.

Neste ponto fica claro o que falta a uma oposição real no Brasil. Falta-lhe a capacidade de impor no debate público os tópicos de outra agenda. Quando a finada Margareth Thatcher estabeleceu seu braço de ferro contra os mineiros britânicos em greve, ela durante meses repetia o mantra: “Não há alternativa”. O que sempre foi a estratégia clássica do autoritarismo neoliberal, a saber, querer vender a ideia de que o “remédio amargo” é o único remédio (diga-se de passagem, amargo apenas para alguns, pois há sempre os que lucram muito com o amargor de outros). Mas mostrar a existência de alternativas, impor outra agenda, não pode em absoluto significar tentar reeditar o que já foi tentado.


Por exemplo, em seus últimos trabalhos, o economista Thomas Piketty mostrou aquilo que muitos críticos da política econômica do governos petistas já perceberam: que não houve política de combate à desigualdade realmente eficiente. Seus estudos mostram como a participação, na renda total, dos 1% mais ricos cresceu no período do antigo governo e que o crescimento da renda das classes mais pobres foi, na verdade, feita em detrimento da faixa entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, ou seja, em detrimento da classe média. Já havíamos percebido a ineficácia da política em questão quando ficou claro que tudo o que ela havia conseguido produzir fora levar o índice Gini (que mede a desigualdade) aos patamares do início dos anos sessenta. Agora, fica claro em números como ela foi também uma política de preservação e crescimento dos ganhos da elite rentista brasileira, devido à ausência de qualquer reforma fiscal que de fato transferisse a conta para os setores mais ricos da sociedade. Tirar as consequências das ilusões de “todos ganhando” que alimentou as políticas anteriores é condição necessária para que possa aparecer uma oposição que faz minimente jus ao seu nome. Há um longo debate a ser feito que, infelizmente, continuamos a nos recusar a fazer enquanto “resistimos”.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

DITADURA COMUNISTA ENTRE NÓS

Para ler no original, publicado no Counterpunch, clique aqui. Pessoalmente, acho que podemos identificar muitas outras ditaduras no Brasil: polícias militares, igrejas pentecostais, milícias, pccs e assemelhados, mídias corporativas, forças tarefas judiciais, todas com muito poder e não sujeitas a qualquer forma de freio externo. 


Ditadura Comunista em Nosso Meio


Fonte da fotografia: 4 de maio - CC BY 2.0
Um silêncio cinzento e sombrio tem se instalado sobre o local de trabalho. Falamos muito pouco sobre os elementos constitutivos do “bom trabalho”. Em particular, nossos lábios estão selados em relação ao nosso direito moral à voz democrática nos locais de trabalho. Nem sempre foi assim. Grandes movimentos revolucionários do passado defendiam o "controle dos trabalhadores" e o "comunismo dos conselhos". Mais recentemente - nas décadas de 1960 e 1970 - fortes movimentos trabalhistas falavam em "co-determinação" de todos os assuntos importantes relacionados ao design e à organização do trabalho. Gerry Hunnius e John Case editaram uma coleção influente de leituras, Controle dos trabalhadores: um leitor sobre trabalho e mudança social (1973).
Esse texto exuberante proporcionou aos leitores e ativistas oportunidades para considerar alternativas às tiranias da organização capitalista do trabalho. A antiga república socialista da Iugoslávia, por exemplo, introduziu conselhos e ideias dos trabalhadores sobre autogestão em 1949. Modestamente bem-sucedidos, críticos observaram que os gerentes ainda tendiam a dominar os conselhos. E cooperativas de trabalhadores como a Mondragon, fundada na região basca da Espanha em 1956 e o ​​Movimento Antígono da Nova Escócia (1930-1960), procuraram pôr em prática formas de governança mais democráticas. Essas tentativas de "democratizar o local de trabalho" estavam frequentemente sob extrema pressão para ceder às formas ditatoriais de governança.

Estudiosos como Robert Dahl (Um prefácio à democracia econômica)1985, defenderam a auto governança dos trabalhadores. Esse texto fundamental gerou muita controvérsia e críticas. Democracia dos trabalhadores - você deve estar brincando! Muitas pessoas se juntaram e escreveram muita coisa que agora vai juntando poeira nas estantes das universidades. No entanto, uma corrente de pensamento sobre a democracia no local de trabalho borbulhou sob a superfície do discurso público de nossa atual "crise da democracia" desde o texto seminal de Dahl, 34 anos atrás. Sob a superfície é difícil identificar qualquer discurso público sério hoje em dia sobre a natureza antidemocrática da maioria dos trabalhos sob as condições neoliberais.

Mas uma estudiosa americana, a influente filósofa radical da Universidade de Michigan Elizabeth Anderson, rompeu a crosta de silêncio em seu provocativo livro, Governo Privado: Como os Empregadores Governam Nossas Vidas [e Por que Não Falamos Sobre Isso] (2017). O objetivo de Anderson é apresentar um argumento relativamente sucinto para "governança democrática" no local de trabalho. Ela não fornece um tratado poderoso revisando a história da luta global pela democratização do local de trabalho como tal. Em vez disso, ela quer nos tirar do pensamento letárgico e convencional, perturbando as noções convencionais de governança pública e privada. Tudo isso em 70 páginas!

Anderson lembra a nós, da esquerda, que antes da grande Revolução Industrial mudar as condições de trabalho dos trabalhadores, o "mercado" era imaginado como uma fonte de liberdade para trabalhadores de mentalidade igualitária. Proporcionou oportunidades de trabalho independente e autogovernança. Nas suas palavras, "a independência pessoal de homens e mulheres sem mestre em questões de pensamento e religião dependia de sua independência em questões de propriedade e comércio".

Mas a Revolução Industrial perturbou o grande sonho dos niveladores ingleses, Thomas Paine e Abraham Lincoln, negando aos trabalhadores oportunidades de independência econômica. Havia pouco espaço para formas igualitárias de trabalho autônomo. Agora, o trabalho exigia que aqueles que vendessem sua força de trabalho tivessem que subordinar seu tempo de trabalho a chefes autoritários.

Ela proclama corajosamente: “A Revolução Industrial quebrou o ideal igualitário do autogoverno universal no campo da produção. Economias de escala sobrecarregaram a economia de pequenos proprietários, substituindo-as pelas grandes empresas que empregavam muitos trabalhadores”. Foi estabelecido um abismo entre proprietários e trabalhadores que só aumentou com o tempo. O sonho de Adam Smith, no final do século XVIII, de contrato salarial como expressão de igualdade foi quebrado na era industrial como observou Marx, que expôs a relação salarial como de subordinação e não liberdade.

Agora a bomba. Anderson diz que o ponto final do modo capitalista industrial de design e organização do trabalho pode ser chamado de "ditadura comunista em nosso meio". Anderson sabe onde a espada deve ferir: os americanos e seus CEOs odeiam ditaduras. Eles odeiam os comunistas e exaltam a liberdade e a democracia americanas como seus próprios tesouros especiais. Wall Street pode telefonar para a Dra. Anderson e pedir que ela os ajude a localizar “ditaduras comunistas em nosso meio”. “Você quer dizer as universidades? Movimentos sociais de esquerda? Onde? Nas colinas de Oregon? Por favor, ajude-nos a encontrá-los para que possamos eliminá-los.”

Talvez possamos imaginar que Anderson convença alguns CEOs de Wall Street a se reunirem para ouvir seu experimento mental. Ela começa: “Imagine um governo que designe para todos um superior a quem eles devem obedecer.” Resposta: “Isso nunca poderia acontecer na maior democracia do mundo, Dra. Anderson.” ”Eles não são eleitos nem são removíveis por seus inferiores; os inferiores não têm o direito de reclamar na corte nem o direito de serem consultados sobre as ordens que recebem. O indivíduo mais bem classificado não recebe pedidos, mas emite muitos. Os mais baixos podem ter seus movimentos corporais e discursos minuciosamente regulados durante a maior parte do dia.” E:“ Este governo não reconhece uma esfera pessoal ou privada de autonomia livre de sanção. ”Os CEOs vão ficando inquietos e intrigados.

"Dra. Anderson, ouvimos dizer que você tem muitas ideias perigosas e não gosta muito de nossa política externa. Nós podemos eleger nossos líderes políticos. Nós podemos votar neles. Somos cidadãos livres que se orgulham de nossa resistência à tirania de governo. Conte-nos o que é você está questionando! ” Respirando fundo, a Dra. Anderson levanta o véu. "O sistema econômico da sociedade administrado por este governo é comunista."

Os CEOs estão agora muito inquietos e cada vez mais irritados. “Esse governo possui todos os meios de produção fora os trabalhadores na sociedade. Organiza a produção por meio do planejamento central. A forma de governo é uma ditadura. Em alguns casos, o ditador é nomeado por uma oligarquia; em outros casos, auto-nomeado. ”Um velho CEO rabugento - que financiou muitos grupos de reflexão sobre como destituir trabalhadores e derrubar governos - grita:“ Putin e Xi Jinping são ditadores! Eles são nossos verdadeiros inimigos! Ele sai cambaleando pela porta.

Continuando, Anderson comenta que, com certeza, esse governo não pode aprisionar ninguém, mas pode rebaixar as pessoas para níveis inferiores e enviá-las para o exílio. "A grande maioria não tem opção realista, a não ser tentar imigrar para outra ditadura comunista, embora existam muitas opções". Os CEOs gritam em uníssono: "As pessoas que estão sujeitas a esse governo não seriam livres? Que diabos você está falando?"

Antes que você saia indignado, Anderson exclama: “Deixe-me revelar quem é o comunista em nosso meio. A maioria das pessoas trabalha sob esse tipo de governo: é o local de trabalho moderno, como existe na maioria dos estabelecimentos nos EUA. O ditador é o diretor executivo (CEO), superiores são gerentes, subordinados são trabalhadores. A oligarquia que nomeia o CEO existe para empresas de capital aberto: é o conselho de administração. O castigo do exílio é ser demitido. O sistema econômico do local de trabalho moderno é comunista, porque o governo - isto é, o estabelecimento - possui todos os ativos, e o topo da hierarquia do estabelecimento determina o plano de produção, que os subordinados executam. Não há mercados internos no local de trabalho moderno. De fato, o limite da empresa é definido como o ponto em que os mercados terminam e o planejamento e a direção centralizados autoritários começam. ”Os últimos CEOs saem gritando:“ Indignação! Ultraje! Nós somos libertários!

Anderson acha que os CEOs ficam "surpresos ao se verem representados como ditadores de pequenos governos comunistas". Mas ela mesma fica chocada que "o discurso público e a filosofia política amplamente negligenciem a difusão da governança autoritária em nosso trabalho e vidas, fora do horário comercial". A astuta filósofa radical pensa que a maneira fundamental de se enxergar o que realmente está presente em nosso cenário é "reviver o conceito de governo privado".

Definindo "governo privado" como um "tipo particular de constituição de governo, sob o qual seus súditos não são livres", ela afirma que os americanos (assim como os canadenses) tendem a reduzir o "governo" ao "estado" (parte da esfera pública). Portanto, se imaginarmos nosso mundo em termos de polaridade - esfera estatal e privada - quando o governo terminar, a liberdade individual começará.

Essa ideia simples é inválida: há governo "sempre que alguns têm autoridade para emitir ordens para outros, apoiados por sanções, em um ou mais domínios da vida". O grande estadista e escritor americano John Adams disse que o governo está em toda parte (sobre filhos, aprendizes, estudantes, senhores de escravos, maridos de mulheres e chefes de trabalhadores). Na esfera pública (onde não está totalmente degradada e as pessoas ainda conseguem ouvir uma às outras), a pessoa tem voz legítima.

Para Anderson, então, o governo privado existe quando as autoridades podem chefiá-lo e sancioná-lo por não obedecer em algum domínio de sua vida. Além disso, as autoridades afirmam resolutamente que não é da conta de uma pessoa sancionada explicar por que elas emitem ordens e sancionam você. Assim: “governo privado é um governo que possui poder arbitrário e inaceitável sobre aqueles a quem governa.” Em outras palavras, o axioma central da democracia operária é o repúdio ao “silêncio organizacional” e o fomento de procedimentos pedagógicos para a participação na tomada de decisão ( ver meu estudo da “organização que acaba de aprender em Projetando a sociedade que acaba de aprender: uma perspectiva crítica [2005, pp. 104-116]).

Outra razão pela qual os trabalhadores americanos sucumbem à vida profissional ditatorial está ligada à ilusão da "teoria da empresa", que fecha os olhos ao "amplo escopo de autoridade que os empregadores têm sobre os trabalhadores". Isso não é novidade, na medida em que Henry Ford criou um departamento de sociologia em sua empresa para investigar as casas dos trabalhadores para verificar se estavam limpos e em ordem antes de trabalhar rotineiramente na linha de Taylor por cinco dólares por dia. Os teóricos da empresa "parecem nem mesmo reconhecer o quão autoritária é a governança da empresa".

Eles não explicam a forma de autoridade que governa o local de trabalho. Eles o controlam - e permanecem calados em relação à amarga realidade de que “a maioria dos trabalhadores é contratada sem qualquer negociação sobre o conteúdo da autoridade do empregador, e sem um contrato escrito ou oral ou especificando seus limites.” De fato, fora da negociação coletiva e de alguns outros contextos, a autoridade sobre os trabalhadores é “abrangente, arbitrária e inaceitável - não está sujeita a notificação, processo ou recurso”. Anderson critica a governança corporativa porque é privatizada e, portanto, vive livre de escrutínio.

Para ela, "uma constituição justa no local de trabalho deve incorporar direitos constitucionais básicos, semelhantes a uma declaração de direitos contra os empregadores". Não podemos mais brincar de "vamos fingir que a constituição do local de trabalho é de alguma forma o objeto de negociação entre trabalhadores e empregadores".

Notícias: Dra. Elizabeth Anderson foi vista pela última vez em um barco para a Baía de Guantánamo.

 Mais artigos por: MICHAEL WELTON
O Dr. Michael Welton é professor da Universidade de Athabasca. Ele é o autor de Designing the Just Learning Society: a Critical Inquiry.

sábado, 12 de outubro de 2019

JANE FONDA E OS ALUNOS DO COLÉGIO PEDRO II

Do Diário do Centro do Mundo

A coragem de Jane Fonda é a mesma dos alunos do Pedro II que expulsaram os fascistas. Por Kiko Nogueira

 
Os alunos do Pedro II não sabem, mas uma senhora de 81 anos que foi presa nos Estados Unidos dois dias antes de eles expulsaram deputados fascistas pode ser considerada sua precursora.
Daniel Silveira e o colega estadual Rodrigo Amorim, ambos do PSL, invadiram o colégio carioca e começaram a fotografar o que achavam ter “conotação política”.
Tentativa barata de censura e intimidação.
Os dois parlamentares são os que quebraram a placa em homenagem a Marielle Franco.
Foram postos para correr pelos alunos. Entraram vaiados e deixaram o estabelecimento aos gritos de “Ô, Marielle, quero justiça, não aceitamos deputado da milícia”.
A milhares de quilômetros dali, Jane Fonda, 81 anos, foi presa juntamente com outras quinze pessoas após um protesto de ativistas ambientais em Washington.
Vídeos nas redes sociais mostraram Jane sendo algemada e levada em uma viatura.
O grupo Oil Change International exigia medidas contra o aquecimento global.
Mito do cinema, filha do gigante Henry Fonda, Jane foi de símbolo sexual nos anos 60, estrela de “Barbarella”, a “Hanoi Jane” nos 70, uma das vozes mais contundentes contra a guerra do Vietnã.
Chegou a ir para a Indochina, onde presenciou ataques dos EUA aos vietnamitas.
Continua com o mesmo fogo interior, este que queima hoje no coração dos meninos do Pedro II.