quarta-feira, 31 de julho de 2019

AINDA SOBRE MÉDICOS CUBANOS

Encontrei este artigo no Counterpunch. Fala sobre coisas que ps brasileiros acompanhamos ou vivenciamos durante a vinda ao Brasil dos médicos cubanos.


30 DE JULHO DE 2019
Revolução de Cuba no pensamento: viver e não mentir

de SUSAN BABBITT

Fonte da foto: Pepa Barril - CC BY 2.0

No romance Demônios de Dostoiévski, o acadêmico liberal Stepan Trofímovitch diz antes de morrer: “Eu tenho mentido toda a minha vida. Mesmo quando eu estava dizendo a verdade ... O pior de tudo é que acredito em mim mesmo quando minto. A coisa mais difícil na vida é viver e não mentir ”.

É porque mentiras são comportamento. Os personagens de Dostoievski "comem" ideias. Eles não acreditam nelas, mas mais importante, eles não sabem que não acreditam nelas. Algumas crenças são tácitas, pressupostas, não reconhecidas, apenas vividas.

Esse aspecto do pensamento é conhecido em Cuba. É por isso que suas tradições de independência, de séculos de duração, são tão interessantes, filosoficamente, embora não sejam amplamente reconhecidas. Em 1999, em Caracas, Fidel Castro disse: “Eles descobriram armas inteligentes. Nós descobrimos algo mais importante: as pessoas pensam e sentem ”.
Não é trivial. Tem a ver com mentiras que são vividas e como conhecê-las.
José de la Luz y Caballero, no início do século XIX em Cuba, ensinou filosofia por causa de uma mentira: a escravidão. Progressistas aceitaram isso. Eles não podiam imaginar a vida sem escravidão. Luz ensinou filosofia para que jovens privilegiados pudessem conhecer a injustiça quando a injustiça é identidade: mentiras vividas.

José Martí, posteriormente, identificou outra mentira. Ele construiu uma revolução em torno disso, não apenas a mentira, mas como saber: uma revolução no pensamento. Ele disse que o sul não precisava olhar para o norte para viver bem. Aquela mentira ainda é vivida. Não podemos imaginar a vida sem um norte dominante.

Tanto Luz quanto Martí ensinaram que “as pessoas pensam e sentem”. É sobre reciprocidade. Um novo livro sobre o sistema médico dos EUA identifica exatamente tal pensamento, conhecido pela ciência, mas difícil de praticar. Reciprocidade envolve experimentar - isto é, sentir - relações entre pessoas, e tornar-se motivado, até humanizado.

Qualquer pessoa gravemente doente (no Canadá também) sabe que a medicina não é sobre cuidados. Soul of Care, do psiquiatra de Harvard, Arthur Kleinman, explica o motivo. [1] A falha é sistêmica. Ele cita um educador de uma importante escola de medicina, que se sente como um "hipócrita" ensinando sobre cuidados. Ele sabe que os médicos não têm tempo para ouvir e não têm suporte para tentar.

Medicina é sobre "custo, eficiência, discurso de gestão". Sobrevivência "depende de cortar cantos, gastando o mínimo de tempo que você puder em interações humanas que podem ser emocionalmente e moralmente desgastantes."

Quando Kleinman conta sua história pessoal, de cuidar de sua amada esposa, Joan, ele oferece uma visão diferente. Cuidar não é uma obrigação moral; é existencial. Em seu coração está a reciprocidade, a “cola invisível que mantém as sociedades juntas”. No cuidado, encontra-se dentro de si “uma terna misericórdia e uma necessidade de agir sobre isso”. Cuidar, Kleinman argumenta, o tornou mais humano.

A reciprocidade oferece soluções não identificáveis ​​anteriormente. Importa para a ciência, para a verdade. Mas a capacidade deve ser cultivada. “Estar presente” significa submeter o julgamento intelectual, ocasionalmente, à experiência dos sentimentos. Não se pode simplesmente decidir fazê-lo sem preparação. No entanto, esse treinamento não está acontecendo. Não é provável que isso aconteça. Ela contradiz “ficções politicamente úteis” como a do “self-made man”.

Kleinman diz que a medicina precisa de ajuda da sociologia e até da filosofia. Mas o mito do homem que se fez sozinho é ensinado em filosofia. É chamado liberalismo filosófico, fornecendo ideias de identidade, racionalidade e autonomia assumidas nas ciências sociais. Ela nega a reciprocidade da pessoa.
Marx ensinou tal reciprocidade - o tipo que reconhece receber de volta, causa e efeito, dar. O mesmo fizeram Lênin, o Buda, e os filósofos cristãos, Thomas Merton, Jean Vanier e Ivan Illich. Nós não ensinamos esses filósofos. Nós mal os reconhecemos.

Cuidar é tão estranho à prática médica que a “proposta modesta” de Kleinman é omiti-la do currículo. No entanto, as instituições de saúde afirmam se preocupar com o cuidado. O colega de Kleinman diz: "Não podemos sequer contar a nós mesmos mentiras em que podemos acreditar".

Mas eles podem. Sociedades inteiras podem. Lembrei-me disso lendo Hippie Woman Wild, um livro recente sobre comunas hippies dos anos 70. [2] Tendo vivido em tais comunas na maior parte dessa década, passei décadas subsequentes descobrindo mentiras: Como explicar aos alunos. Essas comunas não eram sobre amor e paz. Eles não podiam ser. Você não pode amar quando é concentrado em seu ego e moralmente superior. Não funciona.

Nós não sabíamos que não acreditávamos no amor, nem mesmo sabíamos o que é. Quando os personagens de Dostoiévski começam a redenção, eles caem ou são jogados na terra e "se banham em lágrimas". Raskolnikov, depois de confessar, repreende-se por “apresentar”. Mas ele:
não conseguia entender que, mesmo então, quando estava em pé sobre o rio, ele pode ter sentido uma profunda mentira em si mesmo e em suas convicções. Ele não entendia que esse sentido poderia anunciar uma ruptura futura em sua vida, sua futura ressurreição, sua futura nova visão da vida.

Ele deve esperar que “algo completamente diferente” funcione. Espera, submissão, não é o “self-made man”. O "self-made man" assume o controle de seu destino.

Isso é o que significa autonomia, supostamente. Che Guevara viu o mito como uma gaiola de ferro, bloqueando a verdade. Se você acredita, não há mentiras, não sobre você. A verdade é o que você quer que seja. É fácil, mas limitante – do ponto de vista humano.

Alguns entendem o famoso internacionalismo médico de Cuba como uma mera conquista moral. Eles o subestimam. Ser "bom" não incentiva o sacrifício. Reciprocidade faz. Ela energiza, compele.

Ele bate "armas inteligentes" porque é sobre a verdade. Che Guevara disse a estudantes de medicina em 1960: “Se todos usarmos a nova arma da solidariedade [i.e. reciprocidade] então a única coisa que nos resta é conhecer o trecho diário da estrada e levá-lo. … [E nós] ganharemos com a experiência individual. ” Ele queria dizer direção de capacidades. Reciprocidade significa dar, mas também receber de volta, humanamente.

José Engenieros, brilhante psiquiatra argentino do início do século XX, dedicou-se à reforma educacional em todo o continente. O liberalismo filosófico, fundamentando a educação médica, convenceu os latino-americanos, com suas falsas liberdades, a apoiar o imperialismo na Primeira Guerra Mundial.
Ele convence os norte-americanos a "seguir sonhos" só porque os temos. Isso torna difícil viver e não mentir.



Notas.
1. Penguin Random House, 2019. Revisão em https://www.nyjournalofbooks.com/ ↑
2. Mulher Hippie Selvagem (Wyatt-MacKenzie, 2019). Veja a revisão https://www.nyjournalofbooks.com/ ↑

Susan Babbitt é autora de Humanism and Embodiment (Bloomsbury 2014).

terça-feira, 30 de julho de 2019

GENOCÍDIOS DO SÉCULO 20

Nos dias de hoje, quando o ódio se expressa em vários países em diversas formas, inclusive no Brasil, é importante examinar com alguma profundidade os resultados do ódio contra minorias. Robert Fisk é um jornalista britânico que vive em Beirute. Tradução do Google.

Publicado no Independent e no Counterpunch


Da Alemanha nazista à Turquia otomana, os genocídios começam no deserto, longe dos olhos curiosos
por ROBERT FISK
 
Armênios são levados para uma prisão próxima em Mezireh por soldados armados otomanos. Kharpert, Império Otomano, abril de 1915.

Muitos acreditam que o Holocausto Judeu foi planejado pelos nazistas em uma mansão à beira do lago em Wannsee em 20 de janeiro de 1942. A maioria dos historiadores ainda acredita que o Holocausto Armênio foi criado pelos turcos otomanos em Istambul em 1915. É claro que sabemos há muito tempo que a matança em massa dos judeus da Europa começou no momento em que os alemães cruzaram a fronteira polonesa em 1 de setembro de 1939 - e prosseguiu pela União Soviética em 1941, sete meses antes de Wannsee.

Mas agora, quase inacreditavelmente, descobrimos que a liquidação de homens, mulheres e crianças cristãs armênias foi instigada inicialmente em 1º de dezembro de 1914 na distante cidade de Erzurum - não em 24 de abril de 1915, quando os armênios comemoram os primeiros assassinatos do genocídio perpetrado contra eles. E que, naquele mês fatal de dezembro, a "Organização Especial" turca - o equivalente otomano da SS alemã e da Einsatzgruppen - organizou a liquidação imediata de armênios "passíveis de realizar ataques contra muçulmanos".

Já conhecemos as terríveis estatísticas dos dois genocídios. O Medz Yeghern armênio (Grande Crime) destruiu um milhão e meio de almas. O Shoah judeu (Holocausto), que começou menos de um quarto de século depois, destruiu pelo menos seis milhões de almas.

Os turcos - e, infelizmente, os curdos - cometeram esses crimes contra a humanidade da Primeira Guerra Mundial. Os alemães - e, infelizmente, muitos povos eslavos dos estados ocupados pelos nazistas - cometeram esses crimes contra a humanidade da Segunda Guerra Mundial.

Os turcos nunca, até hoje, aceitaram sua responsabilidade. Os alemães sim. Nós ainda registramos respeitosamente como os turcos “disputam calorosamente” seu genocídio dos armênios. Nós sempre - com razão - condenamos os europeus de direita que negam o genocídio nazista dos judeus.

Mas é a esse belo historiador turco Taner Akcam, em seu auto-imposto exílio americano, a que nós este mês devemos a revelação histórica seminal de que os armênios foram alvos para a morte exatamente 31 dias após o Império Otomano entrar na Primeira Guerra Mundial em 31 de outubro. 1914. As primeiras vítimas armênias eram apenas homens - a sede de sangue para matar suas famílias viria mais tarde - nas províncias de Van e Bitlis. Mas eles provam o quão profundamente este crime de guerra foi incorporado no interior do leste da Turquia, nas cidades da periferia e não na capital.

E graças à pesquisa de Akcam em arquivos otomanos até então não explorados, encontramos pela primeira vez uma ordem secreta do quartel-general local do governo de Erzurum para os governadores de Van e Bitlis para prender os armênios que poderiam ser líderes rebeldes ou atacarem os muçulmanos e dando a ordem "para serem deportados para Bitlis imediatamente, a fim de que sejam exterminados". Nenhum eufemismo aqui - como a infame “solução final” dos nazistas. Os oficiais otomanos usam a palavra turca para extermínio: imha.

Em algumas aldeias perto da cidade de Baskale, toda a população masculina acima dos 10 anos foi morta. Dois meses depois, em fevereiro de 1915, um deputado armênio no Parlamento otomano enviou um relatório de Van para Talaat Pasha, o ministro do Interior otomano em Istambul, que seria responsabilizado por todo o genocídio de um milhão e meio de armênios, dizendo-lhe que “massacres estão sendo realizados em algumas aldeias e cidades nos arredores de Baskale e Saray”. Claramente, autoridades otomanas locais estavam instigando o genocídio - e depois pedindo a seus mestres em Istambul que aprovassem suas decisões.

Akcam descobriu evidências de que os governadores locais por vezes viajavam para Erzurum - a quase 1.300 quilômetros da capital otomana - para realizar reuniões conjuntas sobre os assassinatos e depois comunicar suas decisões a Talaat Pasha. Um deles - poucos dias antes da data em que os armênios hoje reconhecem o início de seu genocídio - registra uma instrução de Erzurum ao governador de Bitlis para enviar milícias curdas contra os armênios. Em algumas ocasiões, é aparente que os governadores regionais se reuniram em torno de uma única máquina telegráfica em Erzurum e conspiraram junto com Istambul em uma versão do início do século XX de uma teleconferência nas mídias sociais: reuniões por telegrama.

O fato de os governadores compreenderem plenamente a natureza perversa de seus atos - e a clara evidência de que Talaat estava bem ciente de sua natureza criminosa - é refletido na constante instrução de que seus telegramas eram "ultrassecretos" e "a serem decodificados apenas pelo destinatário". Um telegrama afirmou que “a cópia do cabo foi queimada aqui no local. Por favor, certifique-se de que Istambul queime a sua cópia”.

Em 17 de novembro de 1914 - pouco mais de duas semanas depois de a Turquia ter se juntado a seus aliados alemães e austro-húngaros em sua guerra contra a Grã-Bretanha e a França, e muito antes da data do início do genocídio - o governador de Erzurum, Tahsin, escreveu a Talaat que havia chegado a hora de “tomar decisões e ordens permanentes em relação aos armênios”. Talaat respondeu maliciosamente que Tahsin deveria "executar o que a situação exige ... até que sejam dadas ordens definitivas em relação aos armênios".

Como o historiador Akcam escreve em seu ensaio na edição deste mês do Journal of Genocide Research, Istambul estava essencialmente “dando luz verde a Erzurum para as ações violentas que subsequentemente realizaria”. No final de novembro de 1914, encontramos Talaat instruindo maliciosamente o governador Cevdet, de Van, de que “até que sejam dadas ordens decisivas, é necessário executar as medidas exigidas pela situação, mas judiciosamente [sic] implementadas”.
Cevdet, sob cuja autoridade 55.000 armênios seriam mortos, havia advertido Istambul de que gangues de armênios estavam lutando ao lado dos russos no Irã e no Cáucaso e que isso era visto como uma "insurreição geral pelos armênios". Os armênios de fato se aliaram às tropas russas - pois o czar era um aliado da entente anglo-francesa contra os otomanos - avançando para o leste da Turquia. Os historiadores armênios reconhecem esse fato histórico, mas salientam, corretamente, que quando os armênios geralmente pegavam em armas, era para se defender contra os genocidas turcos. Em torno de Van, no entanto, também havia evidências, mais tarde na guerra, de que os armênios vingaram sua própria perseguição massacrando os habitantes das aldeias muçulmanas turcas locais.

Até agora, historiadores turcos - além de Akcam e alguns colegas corajosos – têm se recusado a reconhecer o genocídio armênio como um genocídio. Eles têm sugerido que a deportação dos armênios pode ter sido provocada pelos desembarques aliados em Gallipoli na quarta semana de abril de 1915, poucas horas antes dos primeiros líderes armênios serem presos em Istambul, ou pela derrota turca na batalha de Sarikamish em janeiro de 1915. Mas sugerir que os assassinatos em massa de um milhão e meio de pessoas poderiam ter sido engendrados em tão pouco tempo é ridículo. Por exemplo, o Governador Resit de Diyarbakir falou com Istambul sobre seus planos semanas antes de Gallipoli, expressando a opinião de que “seria vantajoso… implementar práticas tão duras e eficazes quanto necessário contra os armênios”.

Ainda aparentemente preocupado que os assassinatos em seu próprio distrito de Sivas não tivessem recebido uma autorização oficial, o governador Muammer escreveu a Istambul em um telegrama em 29 de março de 1915 que “se uma decisão foi tomada pelo governo central, que garantiria a remoção e eliminação ordenada em massa [sic], peço que você permita sua comunicação sem demora”. Outros governadores se referiram à “aniquilação” dos armênios e à “implementação de medidas de extermínio”.

O início do genocídio armênio em dezembro de 1914 não poderia ser uma surpresa para as autoridades de Istambul, certamente para Talaat. A decisão de Erzurum foi originalmente tomada por Bahaettin Shakir, o chefe da "Organização Especial" e o homem amplamente considerado como o arquiteto do genocídio armênio. Mas ele próprio era membro do comitê central Partido da União e do Progresso, governante, e havia chagado a Erzurum vindo de Istambul. Talvez Talaat tenha achado conveniente iniciar o genocídio - ou experimentar uma fase de teste - longe da capital e de seus embaixadores estrangeiros, especialmente os americanos que revelariam publicamente os posteriores massacres ao mundo.

O próprio Akcam ainda está confuso sobre por que o pessoal do arquivo otomano produziu os documentos incriminatórios para ele. “A decisão e os extermínios se assemelham… aos primeiros assassinatos de Einsatzgruppen na Polônia”, ele me disse. “Descobri outros telegramas de governantes locais novamente no arquivo otomano, onde o termo 'extermínio' dos armênios é usado abertamente. Estas são descobertas surpreendentes. Não sei por que eles disponibilizaram esses documentos para pesquisadores.”

Eles certamente negam a ideia - amplamente disseminada por negadores do genocídio turco - de que as deportações e assassinatos armênios ocorreram quando a Turquia estava passando por sérias dificuldades militares e pela perspectiva de perder a guerra. Não só as decisões de Erzurum foram tomadas cinco meses antes de Gallipoli, como um mês antes de os russos destruírem as forças turcas nas florestas de Sarikamish; o assassinato de armênios estava em andamento bem antes que o estado otomano estivesse em perigo.

Os primeiros massacres de armênios no extremo leste da Turquia - muito antes de a comunidade armênia em Istambul se sentir ameaçada - estranhamente se assemelham à experiência dos judeus em Viena após o Anschluss de 1938, quando os nazistas incorporaram a Áustria ao Terceiro Reich.

Judeus que fugiram do assassinato em massa e do anti-semitismo da capital austríaca para a Alemanha descobriram que os judeus estavam sofrendo menos discriminação em Berlim. Isso, claro, não duraria. Os alemães preferiram cometer os crimes mais graves da humanidade contra os judeus fora do Reich: nos guetos da Polônia e da Ucrânia - em Babi Yar - nos campos de extermínio da Bielorrússia e da Rússia e depois de Wannsee nos campos de extermínio e gás câmaras instaladas na Polónia.

Hitler acompanhou de perto a história dos massacres armênios e se referiu frequentemente a eles nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista invejou os turcos por terem “purificado” a raça turca e os diplomatas alemães na Turquia durante a Primeira Guerra Mundial testemunharam as deportações armênias em cidades distantes de Istambul. As comunidades rurais muçulmanas turcas e curdas, longe da sofisticação de Istambul ou Esmirna, poderiam ter aceitado com mais facilidade as primeiras brutalidades; eles certamente iriam participar deles.

Em outras palavras, as cidades locais forneceram o ímpeto para matar as minorias dos impérios otomanos, assim como as milícias bálticas e ucranianas aliadas aos nazistas não precisaram ser instruídas a assassinar seus vizinhos judeus. Os croatas também não foram ordenados por Berlim para massacrar seus vizinhos sérvios depois que a Alemanha ocupou a Iugoslávia em 1941; eles fizeram isso sem ordens de Berlim. As raízes de seu racismo genocida já existiam.

Isso se aplica a Ruanda, onde até um milhão de tutsis e hutus moderados - incluindo 70% da população tutsi - foram massacrados no genocídio de 1994? Isso foi organizado e planejado centralmente, mas a execução desses crimes contra a humanidade estava nas mãos de hutus em todo o país, onde vizinhos matavam vizinhos. E em sua perseguição e assassinato de cristãos e yazidis no Iraque e na Síria, o Isis - que incluía muçulmanos de todo o mundo - pode não ter sido especificamente ajudado pela população local; mas enquanto árabes tentavam proteger seus vizinhos, outros sistematicamente saquearam suas casas e propriedades depois que o Isis matou ou deportou os proprietários.

Umit Kurt, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, estudou a expropriação e o assassinato de armênios em 1915 na cidade de Aintab, no sul do país, e descobriu que os muçulmanos turcos locais participaram livre e voluntariamente dos crimes. O que ele descobriu foi que um governo genocida tem que ter o apoio local de todos os ramos da sociedade respeitável: oficiais de impostos, juízes, magistrados, policiais, clérigos, advogados, banqueiros e, muito dolorosamente, os vizinhos das vítimas. Sem mencionar os governadores.
Em outras palavras, os líderes não cometem genocídio, não por conta própria. Pessoas comuns fazem. E o holocausto pode começar longe de casa, no leste gelado, e muito antes da data em que todos acreditavam que os banhos de sangue começaram.


sexta-feira, 26 de julho de 2019

O IMPÉRIO E A LAVA JATO


Precisa desenhar? Veja este artigo publicado no Outras Palavras

Conexão Curitiba: uma hipótese muito provável

Agora, todas as peças parecem se encaixar. Como a descoberta do pré-sal, em meio a uma guinada estratégica à direita, nos EUA, colocou o Brasil no centro da “guerra híbrida” e criou as condições para o atual cenário de horrores
É comum falar de “teoria da conspiração”, toda vez que alguém revela ou denuncia práticas ou articulações políticas “irregulares”, ocultas do grande público, e que só são conhecidas pelos insiders, ou pelas pessoas mais bem informadas. E quase sempre que se usa esta expressão, é com o objetivo de desqualificar a denúncia que foi feita, ou a própria pessoa que tornou público o que era para ficar escondido, na sombra ou no esquecimento da história. Mas de fato, em termos mais rigorosos, não existe nenhuma “teoria da conspiração”. O que existem são “teorias do poder”, e “conspiração” é apenas uma das práticas mais comuns e necessárias de quem participa da luta política diária pelo próprio poder. Esta distinção conceitual é muito importante para quem se proponha analisar a conjuntura política nacional ou internacional, sem receio de ser acusada de “conspiracionista”. E é um ponto de partida fundamental para a pesquisa que estamos nos propondo fazer sobre qual tenha sido o verdadeiro papel do governo norte-americano no golpe de Estado de 2015/2016, e na eleição do “capitão Bolsonaro”, em 2018. Neste caso, não há como não seguir a trilha da chamada “conspiração”, que culminou com a ruptura institucional e a mudança do governo brasileiro. E nossa hipótese preliminar é que a história desta conspiração começou na primeira década do século XXI, durante o “mandarinato” do vice-presidente americano, Dick Cheney, apesar de que ela tenha adquirido uma outra direção e velocidade a partir da posse de Donald Trump, e da formulação da sua nova “estratégia de segurança nacional”, em dezembro de 2017.
No início houve surpresa, mas hoje todos já entenderam que essa nova estratégia abandonou os antigos parâmetros ideológicos e morais da política externa dos Estados Unidos, de defesa da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento econômico, e assumiu de forma explícita o projeto de construção de um império militar global, com a fragmentação e multiplicação dos conflitos, e a utilização de várias formas de intervenção externa, nos países que se transformam em alvos dos norte-americanos. Seja através da manipulação inconsciente dos eleitores e da vontade política dessas sociedades; seja através de novas formas “constitucionais” de golpes de Estado; seja através sanções econômicas cada vez mais extensas e letais, capazes de paralisar e destruir a economia nacional dos países atingidos; seja, finalmente, através das chamadas “guerras híbridas” que visam destruir a vontade política do adversário, utilizando-se da informação mais do que da força, das sanções mais do que dos bombardeios, e da desmoralização intelectual dos opositores mais do que da tortura.
Desse ponto de vista, é interessante acompanhar e evolução dessas propostas nos próprios documentos norte-americanos, nos quais são definidos os objetivos estratégicos do país e as suas principais formas de ação. Assim, por exemplo, no Manual de Treinamento das Forças Especiais Americanas Preparadas para Guerras Não-Convencionais, publicado pelo Pentágono em 2010, já está dito explicitamente que “o objetivo dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças internas de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos”. Com o reconhecimento de que “em um futuro não muito distante, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerra irregulares”1. Uma orientação que foi explicitada, de maneira ainda mais clara, no documento no qual se define, pela primeira vez, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA do governo de Donald Trump, em dezembro de 2017. Ali se pode ler, com todas as letras, que o “combate à corrupção” deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam “competidores” ou “inimigos” dos Estados Unidos2. Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas predatórias, rebeliões sociais, cyber-ataques, fake news, métodos anticorrupção3”.
É importante destacar que nenhum desses documentos deixa a menor dúvida de que todas estas novas formas de “guerra não convencional” devem ser utilizadas – prioritariamente – contra os Estados e as empresas que desafiem ou ameacem os objetivos estratégicos dos EUA.
Agora bem, neste ponto da nossa pesquisa, cabe formular a pergunta fundamental: quando foi – na história recente – que o Brasil entrou no radar dessas novas normas de segurança e defesa dos EUA? E aqui não há dúvida de que cabem muitos fatos e decisões que foram tomadas pelo Brasil, sobretudo depois de 2003, como foi o caso da sua política externa soberana, da sua liderança autônoma do processo de integração sul-americano, ou mesmo, da participação no bloco econômico do BRICS, liderado pela China. Mas não há a menor dúvida de que a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em 2006, foi o momento decisivo em que o Brasil mudou de posição na agenda geopolítica dos Estados Unidos. Basta ler o Blueprint for a Secure Energy Future, publicado em 2011, pelo governo de Barack Obama, para ver que naquele momento o Brasil já ocupava posição de destaque em 3 das 7 prioridades estratégicas da política energética norte-americana: (i) como uma fonte de experiência para a produção de biocombustíveis; (ii) como um parceiro fundamental para a exploração e produção de petróleo em águas profundas; (iii) como um território estratégico para a prospecção do Atlântico Sul4.
A partir daí, não é difícil rastrear e conectar alguns acontecimentos, sobretudo a partir do momento em que o governo brasileiro promulgou – em 2003 – sua nova política de proteção dos produtores nacionais de equipamentos, com relação aos antigos fornecedores estrangeiros da Petrobras, como era o caso, por exemplo, da empresa norte-americana Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de petróleo, e uma das principais fornecedoras internacionais das sondas e plataformas marítimas, e que havia sido dirigida, até o anos 2000, pelo mesmo Dick Cheney que viria a ser o vice-presidente mais poderoso da história dos Estados Unidos, entre 2001 e 2009. A Odebrecht, a OAS e outras grandes empresas brasileiras entram nessa história, a partir de 2003, exatamente no lugar dessas grandes fornecedoras internacionais que perderam seu lugar no mercado brasileiro. Cabendo lembrar aqui que a complexa negociação entre a Halliburton e a Petrobrás5, em torno à compra e entrega das plataformas P43 e P48, envolvendo 2,5 bilhões de dólares6, começou na gestão de Dick Cheney e se estendeu até 2003/4, com a participação do Gerente de Serviços da Petrobrás na época, Pedro José Barusco, que se transformaria depois no primeiro delator conhecido da Operação Lava-Jato7.
Nesse ponto, aliás, seria sempre muito bom lembrar a famosa tese de Fernand Braudel, o maior historiador econômico do século XX, de que “o capitalismo é o antimercado”, ou seja, um sistema econômico que acumula riqueza através da conquista e preservação de monopólios, utilizando-se de todo e qualquer meio que esteja ao seu alcance. Ou ainda, traduzindo em miúdos o argumento de Braudel: o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus mercados. E isto é que se pode observar, mais do que em qualquer outro lugar, no mundo selvagem da indústria mundial do petróleo, desde o início de sua exploração comercial do petróleo, desde a descoberta do seu primeiro poço pelo “coronel” E. L. Drake, na Pensilvânia, em 1859.
Agora bem, voltando ao eixo central da nossa pesquisa e do nosso argumento, é bom lembrar que este mesmo Dick Cheney que vinha do mundo do petróleo, e teve papel decisivo como vice-presidente de George W. Bush, foi quem concebeu e iniciou a chamada “guerra ao terrorismo”, conseguindo o consentimento do Congresso norte-americano para iniciar novas guerras, mesmo sem aprovação prévia do parlamento; e o que é mais importante, para nossos efeitos, conseguiu aprovar o direito de acesso a todas as operações financeiras do sistema bancário mundial, praticamente sem restrições, incluindo o velho segredo bancário suíço, e o sistema e pagamento europeus, o SWIFT.
Por isso, aliás, não é absurdo pensar que tenha sido por esse caminho que o Departamento de Justiça norte-americano tenha tido acesso às informações financeiras que depois foram repassadas às autoridades locais dos países que os Estados Unidos se propuseram a desestabilizar com campanhas seletivas “contra a corrupção”. No caso brasileiro, pelo menos, foi depois desses acontecimentos que ocorreu o assalto e o furto de informações geológicas sigilosas e estratégicas da Petrobras, no ano de 2008, exatamente dois anos depois da descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal brasileiro, no mesmo ano em que os EUA reativaram sua IV Frota Naval de monitoramento do Atlântico Sul. E foi no ano seguinte, em 2009, que começou o intercâmbio entre o Departamento de Justiça dos EUA e integrantes do Judiciário, do MP e da PF brasileira para tratar de temas ligados à lavagem de dinheiro e “combate à corrupção”, num encontro que resultou na iniciativa de cooperação denominada Bridge Project, da qual participou o então juiz Sérgio Moro.
Mais à frente, em 2010, a Chevron negociou sigilosamente, com um dos candidatos à eleição presidencial brasileira, mudanças no marco regulatório do pré-sal, numa “conspiração” que veio à tona com os vazamentos da Wikileaks, e que acabou se transformando num projeto apresentado e aprovado pelo Senado brasileiro. E três anos depois, em 2013, soube-se que a presidência da República, ministros de Estado e dirigentes da Petrobras vinham sendo alvo, havia muito tempo, de grampo e espionagem, como revelaram as denúncias de Edward Snowden. No mesmo ano em que a embaixadora dos EUA que acompanhou o golpe de Estado do Paraguai contra o presidente Fernando Lugo foi deslocada para a embaixada do Brasil. E foi exatamente depois desta mudança diplomática, no ano de 2014, que começou a Operação Lava Jato, que tomou a instigante decisão de investigar as propinas pagas aos diretores da Petrobrás, exatamente a partir de 2003, deixando fora portanto os antigos fornecedores internacionais, no momento exato em que concluíam as negociações da empresa com a Halliburton, em torno da entrega das plataformas P 43 e P48.
Se todos estes dados estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímil, não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta “Operação Lava-Jato”, os vazamentos divulgados pelo site The Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham provocado uma reação repentina e extemporânea dos principais acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados Unidos. Provavelmente, em busca das instruções e informações que lhe permitissem sair das cordas, e voltar a fazer com seus novos acusadores o que sempre fizeram no passado, utilizando-se de informações repassadas para destruir seus adversários políticos. Entretanto, o pânico do ex-juiz e seu despreparo para enfrentar a nova situação fizeram-no comportar-se de forma atabalhoada, pedindo licença ministerial e viajando uma segunda vez para os Estados Unidos, e com isto tornou público o seu lugar na cadeia de comando de uma operação que tudo indica que possa ter sido a única operação de intervenção internacional bem-sucedida – até agora – da dupla John Bolton e Mike Pompeu, os dois “homens-bomba” que comandam a política externa do governo de Donald Trump. Uma operação tutelada pelos norte-americanos e avalizada pelos militares brasileiros.
Por isso, se nossa hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República. O único que lhes incomoda neste momento é o fato de que sua “conspiração” tenha se tornado pública, e que todos tenham entendido quem é o verdadeiro poder que está por trás dos chamados “Beatos de Curitiba”.
1 U.S. Department of the Army. U.S.Army Special Forces Unconventional Warfare Training Manual. Headquarters, Washington D.C., 2010. Disponível em: https://publicintelligence.net/u-s-army-special-forces-unconventional-warfare-training-manual-november-2010. Acessado em 22/07/2019.
2 U.S. Department of Defense. National Security Strategy, Washington D.C., 2017. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-2017-0905.pdf. Acessado em 22/07/2019.
3 U.S. Department of Defense. National Defense Strategy, Washington D.C., 2018. Disponível em: https://dod.defense.gov/Portals/1/Documents/pubs/2018-National-Defense-Strategy-Summary.pdf Acessado em 22/07/2019.
4 U.S. Department of Energy. Blueprint for a Secure Energy Future, Washington D.C., 2011. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/issues/blueprint-secure-energy-future. Acessado em 22/07/019.
5 “Petrobrás fecha negócio bilionário com Halliburton, www.dci.com.br, 20/04/04.
6 “Os laços Petrobrás Halliburton”, 25/02/2004, www.istoedinheiro.com.br.
7 “Veja na íntegra a delação premiada de Pedro Barusco”, https://poliitca.estadao.com.br, 05/02/2015

   

domingo, 21 de julho de 2019

O DESMATAMENTO DA AMAZÔNIA AUMENTOU COM O (DES)GOVERNO DO BOZO

Olhaí o que a comunidade científica tem que fazer: resistir e quando possível responder com toda a força. A esta altura, fora os que vão se arrependendo, vão ficando com o bozo só os verdadeiramente safados. Peguei do site da UOL.
Bolsonaro tomou atitude pusilânime e covarde, diz diretor do INPE




Rodolfo Moreira /Futura Press

O diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório GalvãoImagem: Rodolfo Moreira /Futura Press


Giovana Girardi
São Paulo
20/07/2019 12h48Atualizada em 20/07/2019 20h54




Acusado pelo presidente Jair Bolsonaro de estar agindo "a serviço de alguma ONG", o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório Galvão, disse em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que ficou escandalizado com as declarações que, para ele, parecem mais "conversa de botequim".
Galvão, que dirige o instituto desde setembro de 2016, se manifestou na manhã deste sábado sobre os comentários feitos na sexta por Bolsonaro em café da manhã com a imprensa estrangeira. Na ocasião, o presidente questionou os dados fornecidos pelo Inpe sobre as taxas de desmatamento da Amazônia e disse que eles são mentirosos.
"Se toda essa devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria sido extinta, seria um grande deserto", disse Bolsonaro.
"A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos", afirmou. "Até mandei ver quem é o cara que está à frente do Inpe para vir se explicar aqui em Brasília, explicar esses dados aí que passaram na imprensa", disse. "No nosso sentimento, isso não condiz com a realidade. Até parece que ele está a serviço de alguma ONG, que é muito comum."
As declarações do presidente ocorreram um dia depois de a imprensa destacar que dados do sistema Deter-B, do Inpe, que faz alertas em tempo real de focos de desmatamento para orientar a fiscalização, mostraram que a área perdida de floresta até meados deste mês já é a segunda maior da série histórica, medida desde 2015.
Na quinta, os alertas indicavam um desmatamento de 981 km quadrados neste mês de julho. Nesta sexta, às 19h, conforme observado pelo Estado, o número já havia saltado para 1.209 km quadrados e atingiu o valor mais alto de perda em um mês desde 2015. É também 102% maior do que o observado em julho do ano passado, que viu uma perda de 596,6 km quadrados.
Os alertas dispararam nos últimos meses. Em junho, a perda, de acordo com o Deter, foi de 932,1 km quadrados, contra 488,4 km quadrados em junho do ano passado. Em maio já tinha sido de 738, 4 km quadrados, contra 550 km quadrados em maio de 2018.
Galvão optou por não responder na própria sexta para primeiro "arrefecer o estado de ânimos", mas hoje deu sua posição. "A primeira coisa que eu posso dizer é que o sr. Jair Bolsonaro precisa entender que um presidente da República não pode falar em público, principalmente em uma entrevista coletiva para a imprensa, como se estivesse em uma conversa de botequim. Ele fez comentários impróprios e sem nenhum embasamento e fez ataques inaceitáveis não somente a mim, mas a pessoas que trabalham pela ciência desse País", afirmou.
"Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos", continuou o engenheiro, que iniciou a carreira no Inpe em 1970, fez doutorado em Física de Plasmas Aplicada pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e é livre-docente em Física Experimental na USP desde 1983.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Como o sr. responde às críticas do presidente?
A primeira coisa que eu posso dizer é que o sr. Jair Bolsonaro precisa entender que um presidente da República não pode falar em público, principalmente em uma entrevista coletiva para a imprensa, como se estivesse em uma conversa de botequim. Ele fez comentários impróprios e sem nenhum embasamento e fez ataques inaceitáveis não somente a mim, mas a pessoas que trabalham pela ciência desse País. Ele disse estar convicto de que os dados do Inpe são mentirosos. Mais do que ofensivo a mim, isso foi muito ofensivo à instituição.
Qual é o papel do Inpe hoje no Brasil?
O Inpe permitiu ao Brasil ser o terceiro país do mundo a receber imagens de satélite para monitoramento de desmatamento, do Landsat. Começamos isso em meados da década de 70. Íamos a reuniões internacionais que só tinham Brasil, Canadá e Estados Unidos. O Inpe tem credibilidade internacional inatacável. O presidente Bolsonaro não entende que não somos nós que fornecemos os nossos dados para a imprensa. Os nossos alertas de desmatamento são fornecidos ao Ibama. Isso começou ainda na gestão da ministra Marina Silva (2003-2008) por demanda do próprio Ministério do Meio Ambiente. Os dados são acessados pelo Ibama na nossa página na internet. Estão abertos para todo mundo, todo mundo pode verificar. São publicados em revistas científicas internacionais. Temos mais de mil citações pelos nossos dados, qualquer um pode testar. Então chamar de manipulação é uma ofensa inaceitável. Mais do que o ataque que ele me fez, eu me sinto muito chateado pelos colegas do Inpe, que sempre teve pesquisadores de renome internacional, como o professor Carlos Nobre, que em 2016 ganhou o prêmio internacional Volvo pela defesa da Amazônia. Este ano, em junho, o doutor Antonio Divino Moura, coordenador do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), do Inpe, ganhou o equivalente ao prêmio Nobel de meteorologia da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Não teve uma carta de congratulações nem do presidente nem do ministro de Ciência e Tecnologia. O presidente não tem noção da respeitabilidade que os dados do Inpe e que os pesquisadores do Inpe têm. É uma ofensa o que ele fez.
E sobre os ataques ao senhor?
Fiquei realmente aborrecido, porque na minha opinião ele fez comigo o mesmo jogo que fez com Joaquim Levy (que pediu demissão do BNDES após também ser criticado em público por Bolsonaro). Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos. Eu sou um senhor de 71 anos, membro da Academia Brasileira de Ciências, não vou aceitar uma ofensa desse tipo. Ele que tenha coragem de, frente a frente, justificar o que ele está fazendo.
Não é a primeira vez que os dados do Inpe são questionados. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já tinha dado declarações assim no começo do ano. Houve um encontro do governo com vocês para entender como o Inpe funciona?
Eles nunca fizeram uma crítica objetiva apresentando dados. Eu entendia que o ministro Ricardo Salles fazia essas críticas por falta de conhecimento. Há três semanas mandei um ofício para o Ministério da Ciência e Tecnologia falando que polêmicas não ajudavam em nada o Brasil, inclusive com relação à repercussão internacional, e propus ao ministro Marcos Pontes abrir um canal de comunicação com o ministro Ricardo Salles, com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, com o general Augusto Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional), para explicar o que fazemos, oferecer ferramentas para entenderem melhor os nossos dados e tentar arrefecer esse clima de disputa que havia. Mandei para o ministro Marcos Pontes, mas acho que ele estava viajando. Porque quero tirar dessa polêmica algo que ele sempre declarou, que a questão (dos dados) do desmatamento da Amazônia é uma questão científica e não política e ele sempre demonstrou confiança nos dados do Inpe.
E os alertas do Deter de fato mostram que vem ocorrendo uma alta na perda da floresta?
O Deter é um sistema de alerta. Nós levantamos esses dados para o Ibama agir. E uma vez por anos divulgamos os dados do Prodes, esses sim são os dados realmente consolidados do desmatamento do ano. Mas a margem de acerto do Deter é de 95%. Quando o Deter anuncia o crescimento do desmatamento, provavelmente o Prodes vai mostrar que foi isso mesmo que ocorreu. E o desmatamento vem crescendo nos últimos três anos. O sistema do Deter foi solicitado pela então ministra Marina Silva e com base nele ela e os demais ministros foram capazes de agir e o desmatamento teve um decréscimo substancial entre 2004 e 2012.
Mas este mês de julho já tem o valor mais alto desde 2015. Isso surpreende?
O resultado deste mês de julho sim nos surpreendeu, mas lembre-se que o desmatamento da Amazônia é sempre mais intenso na época seca. Agora, naturalmente, o que aconteceu com declarações do presidente Bolsonaro, ainda na campanha e depois que assumiu, passaram uma mensagem de que não vai mais ter punição. Aí as pessoas estão reagindo com base nessa mensagem que ele claramente passou.
O presidente insinuou que o sr. poderia estar a serviço de ONGs. O que o senhor responde sobre isso?
Como sou um cientista, não respondo. Um grande prêmio Nobel em Física uma vez falou que certas respostas não devem ser dadas porque são tão absurdas que não estão na natureza. Não vou responder a ele e ele que me chame pessoalmente e tenha coragem de me dizer cara a cara isso.

sábado, 13 de julho de 2019

BOAS NOTÍCIAS NO FRONT DAS ENERGIAS RENOVÁVEIS

Recentemente, em conversa com colegas, comentei que um importante gargalo para o crescimento do uso das energias renováveis tem sido a necessidade de armazenamento dessas energias, já que tanto vento como luz do sol são variáveis e intermitentes.  No Brasil, a energia dos reservatórios de hidrelétricas pode cumprir parte desse papel. Mas baterias elétricas têm o potencial de ser uma solução de uso bem mais geral. 

Nota publicada na revista Science em 11 de julho

Baterias gigantes e energia solar barata estão empurrando combustíveis fósseis para fora da rede
Por Robert F. Service Jul. 11, 2019, 13:40

Este mês, autoridades em Los Angeles, Califórnia, devem aprovar um acordo que tornaria a energia solar mais barata do que nunca, ao mesmo tempo em que aborda sua principal falha: ela funciona apenas quando o sol brilha. O acordo exige um enorme parque solar apoiado por uma das maiores baterias do mundo. Ele forneceria 7% da eletricidade da cidade a partir de 2023, a um custo de 1.997 centavos de dólar por quilowatt / hora (kWh) para a energia solar e 1.3 centavos de dólar por kWh para a bateria. Isso é mais barato que qualquer energia gerada com combustível fóssil.

"Boa noite #naturalgas, boa noite #coal, boa noite #nuclear", twittou Mark Jacobson, um cientista atmosférico da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, depois que as notícias do acordo surgiram no final do mês passado. "Por causa das crescentes economias de escala, os preços das energias renováveis ​​e das baterias continuam caindo", acrescenta Jacobson, que aconselhou países de todo o mundo sobre como mudar para 100% de eletricidade renovável. Como se fosse uma dica, na semana passada uma importante empresa de carvão dos EUA - a Revelation Energy LLC, com sede na Virgínia Ocidental - entrou com pedido de falência, a segunda em outras semanas.

O novo esforço de armazenamento solar plus será construído no condado de Kern, na Califórnia, por 8 minutos de energia solar. O projeto deve criar um painel solar de 400 megawatts, gerando aproximadamente 876.000 megawatts-hora (MWh) de eletricidade por ano, o suficiente para abastecer mais de 65.000 residências durante o dia. Sua bateria de 800 MWh armazenará eletricidade para depois do sol se pôr, reduzindo a necessidade de geradores a gás natural.

Declínios de preços precipitados já conduziram a uma mudança para energias renováveis ​​apoiadas pelo armazenamento de baterias. Em março, uma análise de mais de 7000 projetos de armazenamento global pela Bloomberg New Energy Finance informou que o custo de baterias de íon de lítio em escala de utilidade pública havia caído 76% desde 2012, e em apenas 35% nos últimos 18 meses, para US $ 187. por MWh. Outra firma de vigilância do mercado, a Navigant, prevê uma redução adicional para metade até 2030, a um preço bem abaixo do que a 8minute se comprometeu.

O armazenamento em larga escala de baterias geralmente depende de baterias de íons de lítio - versões ampliadas dos dispositivos que alimentam laptops e a maioria dos veículos elétricos. Mas Jane Long, engenheira e especialista em política energética que recentemente se aposentou do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, diz que as baterias são apenas parte da resposta de armazenamento de energia, porque normalmente fornecem energia por apenas algumas horas. "Você também precisa administrar por longos períodos de tempo nublado ou condições de inverno", diz ela.

Compromissos locais para mudar para 100% de energias renováveis ​​também estão impulsionando a corrida para baterias em escala de grade. Pela contagem de Jacobson, 54 países e oito estados dos EUA exigiram uma transição para 100% de eletricidade renovável. Em 2010, a Califórnia aprovou um mandato de que os serviços públicos estaduais instalem armazenamento de eletricidade equivalente a 2% de sua demanda de pico de eletricidade até 2024.

Embora o projeto de Los Angeles possa parecer barato, os custos de uma rede totalmente renovável se somariam. No mês passado, a firma de pesquisa energética Wood Mackenzie estimou que o custo para descarbonizar a rede dos EUA seria de US $ 4,5 trilhões, dos quais cerca da metade seria destinada à instalação de 900 bilhões de watts, ou 900 gigawatts (GW) de baterias e outras tecnologias de armazenamento de energia. (Hoje, a capacidade mundial de armazenamento de baterias é de apenas 5,5 GW.) Mas, como outras cidades seguem o exemplo de Los Angeles, esse número certamente cairá.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

O QUE VEM ACONTECENDO NA SOMÁLIA E ALGUNS OUTROS PAÍSES

E deve ocorrer em cada vez mais partes do mundo, inclusive em nosso país e em nossos vizinhos. Do Guardian

Na Somália, a emergência climática já está instalada. O mundo não pode ignorar isso
Mustapha Tahir

Secas cada vez mais severas e frequentes estão ameaçando a vida de milhões de somalis. Mas está faltando apoio internacional



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 "O clima tem causando estragos nas estações da Somália." Mulheres coletam água no acampamento de New Kabasa para deslocados internos no norte da Somália, em 2018. Foto: Baz Ratner / Reuters


A emergência climática está causando estragos em todo o mundo, e são os países mais pobres que sofrem o maior impacto da crise. Na Somália, onde estou atuando como diretora do país para a agência humanitária Islamic Relief, a população está passando por uma seca que pode ameaçar a vida ou o sustento de mais de dois milhões de pessoas até o final do verão, segundo a ONU.

  
O clima vem causando estragos nas estações da Somália. Normalmente elas são quatro: a estação chuvosa principal entre abril e junho (gu), a segunda estação chuvosa entre outubro e dezembro (deyr) e as estações secas que seguem cada uma delas. Dois terços da população do país vivem em áreas rurais e são completamente dependentes das chuvas para suas colheitas e o gado. No ano passado, essas pessoas ficaram para trás quando a temporada de deyr produziu menos chuva que o normal. E novamente este ano as chuvas gu quase falharam completamente, chegando eventualmente a bolsões minúsculos do país muito pouco, tarde demais. Isto levou a uma quebra generalizada das colheitas e a um declínio na produção pecuária, empurrando rapidamente as comunidades nas áreas mais afetadas para a insegurança alimentar.

Nos últimos anos, a frequência e a duração desses períodos de seca tem crescido. Ao fazê-lo, diminui a capacidade das pessoas resistirem a esses choques. Toda seca esgota seus bens: seus animais vão morrer, suas colheitas vão fracassar, eles não terão nada para vender e na próxima temporada eles não terão dinheiro para comprar sementes para plantar novamente. Em desespero, os pastores vendem seus animais a um preço vil, deixando-os ainda mais vulneráveis. Esta ação reduz significativamente o número de bovinos abaixo do limite mínimo necessário para continuar a criação de gado. Neste ponto, eles começam a debandar e a tornar-se deslocados, muitas vezes em acampamentos informais perto de assentamentos urbanos.


Eu vi recentemente como o clima extremo pode colocar as delicadas vidas dos mais vulneráveis ​​fora de ordem. Nossa equipe conheceu Geelo Ahmed Osman, mãe de cinco filhos do distrito de Ainabo, Somalilândia, em um acampamento informal para deslocados internos (IDPs), onde ela agora mora. Ela foi incumbida de uma grande responsabilidade. Quatro de seus cinco filhos são incapacitados com condições tão severas que não podem se mover sem ajuda - e seu quinto está completamente emaciado com desnutrição. Porque o marido teve um derrame no ano passado, ela agora é a provedora da casa inteira.

Dois anos atrás, outra seca afetou duramente Osman e sua família. Sua casa, dedicada ao pastoreio, perdeu todos os seus animais. Nos dois anos desde então, eles dependiam inteiramente de doações de seus parentes e, quando seus parentes não puderam mais oferecer apoio, eles mudaram para os arredores do distrito de Ainabo e se juntaram a um assentamento informal de deslocados internos na esperança de obterem assistência de organizações de ajuda.

A atual seca levou a que mais e mais pessoas como Geelo Ahmed Osman, se deslocassem de suas casas e passassem a ser dependentes do apoio da comunidade internacional. Cerca de metade da população do país precisa de ajuda de emergência. Se eles não receberem isso, é muito provável que vejamos uma fome em grande escala antes do final do ano. A falta de água não tem apenas implicações nutricionais: espalha doenças. Se as pessoas não têm água para lavar em momentos críticos, elas não podem conter a disseminação de doenças, o que se torna inevitável em campos de deslocados internos. Coisas como diarreia, se não forem tratadas, podem ser fatais para as crianças.

As agências de ajuda precisam de mais fundos, e não apenas para assistência imediata. Com a crise climática fazendo esses tipos de eventos crescerem em frequência e intensidade, poderíamos estar exatamente na mesma situação no ano que vem, no ano seguinte e assim por diante. Portanto, embora a primeira fase da intervenção deva ser uma resposta emergencial, precisamos desenvolver então a resiliência para que as pessoas estejam mais bem preparadas para o futuro e não dependam de doações da comunidade internacional.

O triste é que, em todo o mundo, as emergências estão a aumentar: das guerras em curso na Síria e do Iémen a catástrofes naturais devastadoras, como o ciclone Idai, no sudeste de África. A crise climática só trará mais desastre. Mas no momento, a atenção, o financiamento e o apoio da comunidade internacional não estão lá. É crucial que, no nosso mundo turbulento e cada vez mais instável, a Somália não seja deixada para trás.

• Mustapha Tahir é o diretor nacional do país para Ajuda Islâmica na Somália