sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

ENQUANTO ISSO, O ANDAR DE CIMA PARASITA TUDO

Artigo de Ladislau Dowbor, publicado no Outras Palavras. Importante a pergunta no preâmbulo: como nos livraremos deles? Já que eles mandam na imprensa, mídia, sistema de justiça, governo federal...

Nada se compara ao parasita brasileiro

A economia está parada. Há 50 milhões de desempregados e precários. A fome voltou e os sem-teto estiram-se nas calçadas. Duzentos homens engordam suas imensas fortunas, sem nada produzir. Coincidência? Como nos livraremos deles?
Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles, sócios do Itaú. Treze dos 200 bilionários brasileiros gravitam em torno do banco, símbolo maior da aristocracia financeira no país
Por Ladislau Dowbor

Primeiro, a coisa óbvia: nosso problema não é falta de dinheiro. Com um PIB de 6,8 trilhões de reais e uma população de 210 milhões, o que produzimos hoje representa 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Com o que produzimos hoje, mesmo sem procurar uma igualdade opressiva, apenas uma desigualdade menos obscena, dá para todos viverem de maneira digna e confortável. Nosso problema não é pobreza, e sim desgoverno. Ou, para dizê-lo de maneira hoje atualizada, é falta de governança, de fazer o conjunto funcionar. 

Na minha modesta aritmética econômica – sou avesso à econometria – faço as contas, follow the money por assim dizer, apresentando o fluxo financeiro integrado. Calculando o quanto se tira da capacidade de compra das famílias por meio do absurdo nível de juros sobre o cheque especial, do rotativo do cartão, dos crediários e do empréstimo bancário, somando os juros sobre os créditos concedidos às empresas, chegamos a 1 trilhão de reais. Dado que coincide com os cálculos das financeiras, apreesentados na manchete dominical do Estadão de 18 de dezembro de 2016: “Crise de crédito tira R$1 tri da economia e piora recessão”. São 15% do PIB esterilizados, transformados em lucros financeiros. Acrescentem a isso os R$ 300 a R$ 400 bilhões transferidos para os que aplicam as suas fortunas em títulos da dívida pública, e chegamos a 20% do PIB, alimentando fortunas. A taxa Selic baixou, realmente, mas é cobrada sobre um estoque da dívida muito maior. Em 2018 o Estado foi desfalcado em R$ 320 bilhões. São lucros e dividendos que, uma vez distribuídos, desde 1995 sequer pagam impostos. É um dreno poderoso. 

Thomas Piketty abriu a caixa do capitalismo moderno para constatar que no século XXI rende mais fazer aplicações financeiras do que investir na produção. E o dinheiro segue naturalmente para onde rende mais. O capitalismo do século passado, que tanto criticávamos por explorar os trabalhadores, pelo menos investia, produzia bens e serviços de razoável utilidade, gerava empregos e pagava impostos. O do século XXI não investe, não produz e sequer paga impostos. David Harvey diz corretamente que não se trata de “capital no século XXI” e sim de patrimônio, porque não retorna ao processo produtivo senão marginalmente.

Sem entrar em excessivos detalhes, lembremos que a tributação no Brasil não só não corrige os desequilíbrios, como os agrava, pela estrutura regressiva na cobrança dos impostos e favorecimento dos mais ricos na alocação. E também que, segundo o Tax Justice Network, o Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, mais de 2 trilhões de reais que nem produzem nem pagam impostos. Acrescentem o vazamento que representam as seguradoras, as pensões complementares e os planos de saúde – fundos que “aplicam” em vez de investir, e temos aqui mais uma obviedade: a nossa economia está vazando por todos os lados. Apresentamos esses dados, com detalhes e fontes, no nosso A Era do Capital Improdutivo, em texto impresso, online, em vídeos e em plataformas de discussão. É aritmética, só não vê quem não quer. Aliás, a capacidade de não ver pode ser impressionante. 

Os americanos nos ajudam a ver. A revista Forbes, em edição especial de 2019, traz em detalhe quem são os 206 bilionários brasileiros. A importância deste levantamento é óbvia. Primeiro, porque é confiável, a revista é americana e entende de bilionário, a imprensa brasileira não faz levantamentos deste tipo. Segundo, é um artigo em que os donos das fortunas, felizes em aparecer na Forbes, em vez de se esconder e de esconder como chegam às fortunas, aparecem sorridentes e orgulhosos. Afinal, é uma a revista que já explicita para quem é escrita: acima das manchetes, recomenda-se aderir à “Forbeslife – carros, jatos e iates: chegou a hora de escolher o seu”. Sim, caro leitor, o artigo que aqui analiso não foi escrito para você, foi escrito para eles mesmos, os bilionários. A nós interessa muito, pois este grupinho de bilionários constitui o lastro do poder real, o deep power do país. E representa um poder impressionante de sucção dos recursos financeiros. 

Tomemos o número 2 da lista, Joseph Safra. Hoje, Joseph “tem um império bancário que leva seu nome: é dono do Banco Safra (Brasil), do J.Safra Sarasin (Suíça) e do Safra National Bank (EUA). É dono, ao lado do bilionário José Cutrale, da gigante Chiquita Brands, maior produtora de bananas do mundo”. Ter um pé na Suíça é ótimo para um banco, todos eles hoje têm pés em paraísos fiscais. Outro pé nos Estados Unidos ajuda, faz parte da articulação com a nossa economia. E Chiquita é o nome simpático hoje adotado pela antiga United Fruit, que de tantos crimes, golpes e mortes – é a empresa de bananas que aparece em Cem Anos de Solidão – decidiu mudar de nome. Mas o essencial para nós é que o patrimônio do Joseph Safra é de R$ 95,04 bilhões, e que nos meses entre março de 2018 e março de 2019 aumentou em R$ 19,31 bilhões. Sem precisar produzir nada, apenas amealhando dividendos. É o que Marjorie Kelly (e tantos outros) hoje chamam de “capitalismo extrativo”. São 19 bilhões, dois terços do Bolsa Família, em 12 meses, para uma pessoa. 

O artigo apresenta a imagem de conjunto: em 2012, tínhamos no Brasil 74 bilionários, que dispunham de uma fortuna total de 346 bilhões de reais. Em 2019, são 206 bilionários, com uma fortuna total de R$ 1.205,8 bilhões (17,7% do PIB brasileiro). Como se acelerou de maneira tão dramática o enriquecimento dos bilionários no Brasil? Implicaria, imaginamos, um crescimento dinâmico da economia? Sabemos, na realidade, que desde 2013, que é quando, com manifestações e boicote, começa o ataque generalizado ao modelo distributivo, o PIB do Brasil não só não cresceu como, depois de dois anos de recessão em 2015 e 2016, continua paralisado. 

Estão, para dizê-lo claramente, se entupindo de dinheiro. Não ver a relação entre o enriquecimento dos mais ricos e a paralisia da economia sugere analfabetismo econômico. O dinheiro não pode simultaneamente alimentar ganhos especulativos e evasão fiscal e financiar investimentos produtivos. Entre março 2018 e março 2019, os bilionários brasileiros aumentaram a sua fortuna em R$ 230,2 bilhões, 8 vezes o Bolsa Família. A economia brasileira cresce menos de 1%, sequer acompanha a progressão demográfica, implicando uma queda do PIB per capita do país. Há seis anos disseram que estariam “consertando” a economia. Na realidade, estão drenando. 

Analisando um por um os bilionários, é impressionante a dificuldade de se encontrar alguém que produza algo. Seguindo as classificações do próprio artigo, basicamente, trata se de donos de bancos, de holdings financeiras, de acionistas e controladores acionários, de fundos de investimento (no sentido virtual de “investimento”, naturalmente), de donos de cotas acionárias, de holdings familiares, de “investidores”, e aparece até um “proprietário de terras cultivadas” (fortuna 118). Naturalmente não se trata de Jorge Luiz Silva Logemann, dono desta fortuna de R$ 2,68 bilhões, efetivamente se aproximar das terras cultivadas… 

Já vimos acima como em 12 meses Joseph Safra aumentou a sua fortuna em R$ 19 bilhões. Mas a instituição de Roberto Balls Sallouti, a BTG Pactual Holding, “só no segundo trimestre de 2019, anunciou um salto de 56% no lucro líquido, para R$ 971 milhões. Sallouti é membro do conselho de administração do Mercado Livre” (fortuna 116). Associar este pequeno clube de magnatas financeiros que drenam as capacidades produtivas do país ao conceito de “mercado livre” é de causar arrepios a quem já leu Adam Smith. Aliás, vários bilionários aumentaram as suas fortunas na esfera do BTG Pactual. É bom lembrar que o banco tem 38 filiais em paraísos fiscais, e tem como atividade principal gestão de fortunas, tecnicamente asset management

A análise detalhada das 206 fichas que este dossiê da Forbes apresenta é muito produtiva, pois constatamos que não só se trata de gigantes de intermediação, na realidade atravessadores das atividades produtivas, como estão intensamente interligados. Vamos encontrar, no imenso dreno econômico que representa o Itaú, pelo menos 13 das grandes fortunas apresentadas no relatório. No conjunto, são poucas famílias, muito interligadas, e constituindo um poderoso cluster de poder financeiro e político. Drenam as capacidades econômicas da população, das empresas produtivas e do próprio Estado. A leitura deixa claro por que este país com tantos ricos está paralisado. 

Frente ao dreno geral deste capital improdutivo, atribuir os nossos problemas aos velhinhos que envelhecem demais e criariam problemas no orçamento é francamente um insulto à inteligência elementar. Lembrando que temos apenas 33 milhões de pessoas formalmente empregadas no país, para uma força de trabalho de 105 milhões – ou seja, só 31% do total. E temos 37 milhões em atividades informais, o que somado aos 13 milhões de desempregados, significa que 50 milhões de trabalhadores estão fora do sistema. A solução não está no apertar o cinto, austeridade para os que já estão na austeridade, mas cobrar os impostos devidos dos que ganham sem produzir, pois talvez, ao ver as suas fortunas tributadas, se interessem por fazer algo de útil. No essencial, o que precisamos é produzir. O empresário efetivamente produtor não precisa de discurso ideológico ou de “confiança”: precisa de famílias com poder de compra, para ter para quem vender, e de juros baixos para poder investir. Neste Brasil de grandes parasitas, ele não tem nem uma coisa nem outra.

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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

MARUNGONI: A CONVOCATÓRIA DO AUTOGOLPE

Do Brasil 247. É útil ver que eles não estão com essa corda toda.

Bolsonaro convoca manifestação golpista por se sentir em processo de isolamento acelerado

"Semana anterior ao carnaval foi muito ruim para a pátria bolsonárica. Ela começou com a repulsa geral às agressões grotescas do miliciano-em-chefe à jornalista Patrícia Campos Mello", escreve o jornalista Gilberto Maringoni


Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro (Foto: Alan Santos/PR)

Por Gilberto Maringoni, em seu Facebook e para o Jornalistas pela Democracia

COLOQUEMOS OS PROBLEMAS EM FILA PARA QUE MARCHEM DE FORMA ORGANIZADA:

1. OS BOLSONARIERS (corruptela de farialimers) não estão convocando sua Marcha sobre Roma dia 15 de março por causa do orçamento impositivo do Congresso, que trava o livre manejo de parte das verbas públicas pelo Executivo. 

Os bolsonariers – a começar pelo presidente da República - convocam a manifestação golpista por se sentirem em processo de isolamento acelerado.

2. A SEMANA ANTERIOR AO CARNAVAL foi muito ruim para a pátria bolsonárica. 

Ela começou com a repulsa geral – de lideranças congressuais aos partidos de extrema esquerda, passando pela mídia, setores empresariais, ministros do STF e ativistas sociais – às agressões grotescas do miliciano-em-chefe à jornalista Patrícia Campos Mello.


3. QUASE CONCOMITANTEMENTE, os petroleiros obtiveram duas vitórias fundamentais: a suspensão das quase mil demissões na Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná (Fafen-PR) e a reabertura de negociações com a Petrobrás, no TST. É algo muito significativo em tempos de destruição do movimento sindical.

4. NOS MESMOS DIAS, O BC divulgou os resultados da balança de transações correntes de janeiro. 

Segundo O Globo, “As contas externas do Brasil registraram déficit de US$ 11,879 bilhões em janeiro deste ano, com aumento de 31,3% na comparação com o mesmo mês de 2019”. 


Foi o pior resultado desde 2015, puxado pelo déficit na balança comercial. 
A balança de transações correntes contabiliza a balança comercial, a balança de serviços e as transferências unilaterais. Ou seja, o que entra e sai do país em termos monetários.

5. APESAR DO QUADRO de quase estagnação interna – com possibilidades de voo de galinha ao longo do ano -, as importações cresceram. Isso se dá pelo fato de a indústria brasileira – ou o que resta dela – trabalhar cada vez mais com componentes e insumos importados. 

É uma piora estrutural da economia. Caso retomemos o crescimento, tais importações tenderão a aumentar, agravando o déficit. 
Isso com uma taxa de câmbio que abriu nesta quarta (26) a R$ 4,42, o que torna as importações mais caras.

6. OBSERVE-SE AQUI A CONSTATAÇÃO de que a saída de dólares do Brasil alcançou US$ 44,7 bilhões em 2019, como divulgado no início de janeiro. Trata-se do maior volume de recursos retirados do país em 38 anos.

7. VAMOS ADIANTE. O megamutirão bolsonarier pela legalização da versão nacional das SA (Sturmabteilung), as tropas de assalto nazistas, deu com os burros n’água. O Aliança pelo Brasil, agremiação da pátria bolsonarier conseguiu validar apenas 0,6% das assinaturas coletadas, após dois meses de frenética agitação em cartórios amigos. 

O Tribunal Superior Eleitoral validou 2,9 mil assinaturas de 492 mil necessárias para legalizar o partido.

8. O ROL DE FRACASSOS OFICIAIS não parou por aí. Foram desmascarados, pela ação corajosa do senador Cid Gomes (PDT-CE), os incentivos a motins das forças de segurança patrocinados pelo círculo próximo de aliados do miliciano-em-chefe.

9. NESSA CONTA ENTRA o affair Adriano Nóbrega, arquivo valiosíssimo, flambado em obscura ação da PM baiana em associação à Polícia Civil do Rio de Janeiro. Suspeito pelos laços com a família real, o assassinato do matador profissional seria objeto de interesse do clã ora no poder.

10. COMO COROAMENTO MAGISTRAL da perda de credibilidade governamental, tivemos o Carnaval, repleto de alusões nada edificantes aos meliantes espalhados por palácios e pela Esplanada dos Ministérios, com direito a transmissão quase em rede nacional.

11. DIANTE DESSA COLETÂNEA de más notícias, Bolsonaro e os seus agem de forma absolutamente destrambelhada. 

É incrível perceber que nem ele e nem o general Heleno, o monstro de Porto Príncipe, conseguem fazer o que qualquer comandante responsável de tropa faria: avaliar as forças disponíveis, o efetivo inimigo, o terreno e as condições de batalha e traçar uma ação racional, na tentativa de chegar à vitória. Mais fácil rosnar “foda-se”.

12. AGEM COMO GAROTOS que jogam pedra na vidraça e saem correndo. Diante de um problema, aparentam tomar a ofensiva – xingando, gritando ou fazendo bananas -, mas fogem para a frente. Arreganham os dentes e latem, sem saber como darão o passo seguinte. Devem ser militares de araque.

13. A REDE BOLSONARIER está convocando o 15 de março como o dia do golpe. Suas hordas marcharão – possivelmente com um cabo e um soldado – para fechar o Congresso e o STF. Há, contudo, cheiro de válvula queimada no ar.

14. OS GENERAIS Santos Cruz e Roberto Peternelli desautorizaram o uso de suas imagens em memes convocando a balbúrdia. O mundo político institucional em peso – Celso Mello, Lula, FHC, João Dória, as presidências da Câmara e do senado, os partidos de oposição, os movimentos sociais, o mundo da cultura etc. – abriu em peso suas baterias contra a loucura extremista. Na prática, forma-se uma frente democrática ampla e poderosa, como há tempos não se via.

15. DIANTE DE PESADAS CRÍTICAS que começou a receber na noite de terça (26), o miliciano-mor tuitou enigmaticamente: “Tenho 35Mi de seguidores em minhas mídias sociais, c/ notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional. No Whatsapp, algumas dezenas de amigos onde trocamos mensagens de cunho pessoal. Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”. 

Releve-se a tortura cometida contra o idioma, mas Bolsonaro tenta desmentir os relatos de que estaria distribuindo convocatórias para o 15M. Ele ainda orientou seus ministros a não engrossarem a convocação do ato.

16. HÁ ENSAIOS TÍMIDOS de recuo por parte do bando palaciano. É muito difícil que um líder em processo de isolamento – apesar de seus razoáveis índices de aprovação – consiga ir muito além dos fracassos recentes. No início de novembro, a convocação de protestos contra a saída da prisão do ex-presidente Lula reuniu poucos gatos pingados em algumas capitais.

17. NÃO SE DEVE SUBESTIMAR O FASCISMO. Ao mesmo tempo, é necessário tentar analisar com um pouco mais de objetividade a realidade para que não entremos em pânico diante de latidos que indicam perda de musculatura por parte da extrema-direita. Disseminar alarmismos ou convocar ações extremadas e irresponsáveis devem ser colocadas para fora do radar dos democratas que buscam desmontar a patranha fascista.

18. ELES PODEM MUITO. Mas não podem tudo.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

DESASTRES, AMEAÇAS, LUTOS

Estas digressões do Zizek cabem muito no que no Brasil estamos vivendo. Publicado no rt.com

Slavoj Zizek: O que os protestos contra o coronavírus e a França têm em comum (e ainda é hora para ORGIAS?)

Slavoj Zizek
Slavoj Zizek
Slavoj Zizeké um filósofo cultural. Ele é pesquisador sênior do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana, professor renomado global de alemão na Universidade de Nova York e diretor internacional do Instituto Birkbeck de Humanidades da Universidade de Londres.
20 de fevereiro de 2020  
Slavoj Zizek: What the coronavirus & France protests have in common (and is it time for ORGIES yet?)
Surtos epidêmicos - assim como protestos sociais - não surgem e desaparecem; eles persistem e se escondem, esperando explodir quando menos se espera. Devemos aceitar isso, mas existem duas maneiras de fazer isso.

Pessoas de fora da China pensaram que uma quarentena seria suficiente para combater a disseminação do vírus e que elas são mais ou menos seguras por trás desse "muro". Mas agora que os casos de coronavírus foram relatados em mais de 20 países, é necessária uma nova abordagem. Como devemos lidar com essas ameaças traumáticas?

Talvez possamos aprender algo sobre nossas reações à epidemia de coronavírus com a psiquiatra e autora Elisabeth Kübler-Ross, que, em On Death and Dying, propôs o famoso esquema dos cinco estágios de como reagimos ao saber que temos, por exemplo, uma doença terminal: negação (simplesmente se recusa a aceitar o fato, como em "Isso não pode estar acontecendo, não comigo"); Raiva (que explode quando não podemos mais negar o fato, como em "Como isso pode acontecer comigo?"); Negociação (a esperança de que, de alguma forma, podemos adiar ou diminuir o fato, como em "Apenas deixe eu viver para ver meus filhos se formarem".); Depressão (desinvestimento libidinal, como em "Vou morrer, então por que se preocupar com alguma coisa?"); e finalmente Aceitação ("Não posso lutar contra isso, posso também me preparar para isso.").

Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esses estágios a qualquer forma de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de um ente querido, divórcio, dependência de drogas) e também enfatizou que eles não necessariamente vêm na mesma ordem, nem todos os cinco estágios são experimentados por todos. pacientes.

Pode-se discernir os mesmos cinco estágios sempre que uma sociedade é confrontada com algum evento traumático. Vamos tomar a ameaça de uma catástrofe ecológica
.

Primeiro, tendemos a negar: "é apenas paranóia, tudo o que realmente acontece são as oscilações usuais nos padrões climáticos". Depois vem a raiva - contra as grandes corporações que poluem o meio ambiente e o governo que ignora os perigos. Isso é seguido por barganha: ‘se reciclarmos nossos resíduos, podemos ganhar algum tempo; além disso, também existem aspectos bons: agora podemos cultivar legumes na Groenlândia, os navios poderão transportar mercadorias da China para os EUA muito mais rapidamente pela rota norte, novas terras férteis estão se tornando disponíveis no norte da Sibéria devido ao derretimento de permafrost. ”Depois é seguido por depressão ('é tarde demais, estamos perdidos') e, finalmente, aceitação - 'estamos lidando com uma séria ameaça e teremos que mudar todo o nosso modo de vida! "

O mesmo vale para a crescente ameaça do controle digital sobre nossas vidas. Novamente, primeiro, tendemos a negá-lo e considerá-lo 'um exagero', 'mais paranóia esquerdista', 'nenhuma agência pode controlar nossa atividade diária'. Depois explodimos com raiva das grandes empresas e agências estatais secretas que 'nos conhecem' melhor do que nos conhecemos 'e usar esse conhecimento para nos controlar e manipular. É seguida de barganha (as autoridades têm o direito de procurar terroristas, mas não de violar nossa privacidade), depressão (é tarde demais, nossa privacidade está perdida, a era das liberdades pessoais acabou). E, finalmente, vem a aceitação: 'o controle digital é uma ameaça à nossa liberdade, devemos conscientizar o público de todas as suas dimensões e nos empenhar para combatê-lo!'



RT
Mesmo no domínio da política, o mesmo vale para aqueles que estão traumatizados pela presidência de Trump: primeiro, houve uma negação ('não se preocupe, Trump está apenas postulando, nada realmente mudará se ele tomar o poder'), seguido por raiva (pelas 'forças das trevas' que lhe permitiram tomar o poder, pelos populistas que o apoiam e representam uma ameaça à nossa substância moral), barganha ('tudo ainda não está perdido, talvez Trump possa ser contido, vamos tolerar alguns de seus excessos) e depressão ('estamos no caminho do fascismo, a democracia está perdida nos EUA') e depois a aceitação: 'há um novo regime político nos EUA, os bons e velhos tempos da democracia americana se acabaram, vamos enfrentar o perigo e planejar com calma como podemos superar o populismo de Trump. '

Nos tempos medievais, a população de uma cidade afetada reagia aos sinais da praga de maneira semelhante: primeiro negação, depois raiva (com nossas vidas pecaminosas pelas quais somos punidos, ou mesmo com o Deus cruel que a permitiu), depois barganhando (não é tão ruim, vamos evitar aqueles que estão doentes) e depois a depressão (nossa vida acabou), então, curiosamente, orgias ('já que nossas vidas acabaram, vamos ter todos os prazeres ainda possíveis - beber, sexo ...'). E, finalmente, havia  aceitação: estamos 'aqui, vamos nos comportar o máximo possível, como se a vida normal continuasse'.

E não é assim também que estamos lidando com as epidemias de coronavírus que explodiram no final de 2019? Primeiro, houve uma negação (nada de grave está acontecendo, apenas alguns indivíduos irresponsáveis ​​estão espalhando pânico); depois, raiva (geralmente de forma racista ou antiestatal: os chineses sujos são culpados, nosso estado não é eficiente ...); a seguir vem a negociação (OK, existem algumas vítimas, mas é menos grave que o SARS, e podemos limitar o dano); se isso não funcionar, a depressão surge (não vamos nos enganar, estamos todos condenados).

Mas como pareceria nossa aceitação aqui? É um fato estranho que essas epidemias exibam uma característica comum com a mais recente rodada de protestos sociais, como na França ou em Hong Kong: elas não explodem e depois desaparecem, elas ficam aqui e simplesmente persistem, trazendo medo e fragilidade para nossas vidas.

O que devemos aceitar, com o que devemos nos reconciliar, é que existe uma sub-camada de vida, a vida pré-sexual dos vírus mortos-vivos, estupidamente repetitiva, que sempre esteve aqui e que sempre estará conosco como uma escuridão sombria, representando uma ameaça à nossa própria sobrevivência, explodindo quando menos esperarmos.

E, em um nível ainda mais geral, as epidemias virais nos lembram a contingência e a falta de sentido de nossas vidas: não importa quão magníficos edifícios espirituais nós, a humanidade, criamos, uma contingência natural estúpida como um vírus ou um asteróide pode acabar com tudo. Sem mencionar a lição da ecologia, que é a de que nós, humanidade, também podemos sem saber contribuir para esse fim.

Mas essa aceitação pode tomar duas direções. Isso pode significar apenas a re-normalização da doença: OK, as pessoas vão morrer, mas a vida continuará, talvez haja até alguns bons efeitos colaterais. Ou a aceitação pode (e deve) nos impulsionar a nos mobilizar sem pânico e ilusões, a agir em solidariedade coletiva.