quinta-feira, 29 de novembro de 2018

FLAVIO AGUIAR: MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

Da Carta Maior:

Carta de Berlim: Manual de sobrevivência na selva bolsonara

 




27/11/2018 11:26
 
Na semana passada participei de um debate na Universidade Livre de Berlim que, partindo de questões literárias, terminou por entrar por reflexões sobre a atual situação brasileira. Houve depoimentos candentes sobre o clima de perseguição e violência contra a dissidência ao candidato vitorioso e sua trupe que se implantou durante a eleição e que tende a se intensificar depois da posse. Houve relatos que variaram da desarticulação dos programas sociais desenvolvidos durante os governos de Lula e Dilma (como o de apoio às pequenas cacimbas de água no Nordeste), imediatamente posta em prática pelo governo Temer, passando pelos conflitos familiares e perseguição desde já a professores, estudantes, até o de estupros de  mulheres simplesmente porque apoiaram o outro candidato.

No debate e depois dele me veio então esta ideia de escrever um manual de sobrevivência na “selva bolsonara”. Começo pelo relato das expectativas,  continuo pelas sugestões de auto-defesa, e termino com algumas conclusões.

Expectativas
Em meio a tantas idas e vindas, voltas e contra-voltas, da “transição”, uma coisa é clara: o governo de Bolsonaro será uma grande mascarada. A campanha já foi; o governo vai estender, ampliar e aprofundar o estilo.

Em primeiro lugar trata-se de mascarar o passado; em seguida, o futuro. Para tanto vai ser necessário mascarar indefinidamente o presente.

Mascarar o passado.
A ambição do projeto em torno do qual Bolsonaro e sua “equipe" gravitam á mistificar o passado, impondo a ideia de que a ditadura de 64 a 85 foi um período idílico entre governo e povo, baseado na ideia de prosperidade com segurança. Vão se varrer para debaixo do tapete todas as crises e percalços do regime, não apenas no sentido de edulcorar a repressão. As crises econômicas de 66/67, o brutal endividamento externo, a falência em ler o que viria a ser a crise do petróleo a partir da guerra de 1973 no Oriente Médio, a transformação do sonho da casa própria no pesadelo da prestação e da inadimplência, o afogamento do ensino público e outras mazelas serão simplesmente negadas.

Em consequência deste delírio seria necessário mascarar tudo aquilo que foi conquista da Constituição de 88, e o período de conquistas sociais vivido durante os governos de Lula e o primeiro de Dilma. Sem falar na presença soberana da política externa brasileira. Tudo isto vai ser jogado para debaixo do tapete da “maior corrupção que atingiu o país”,  e também da cobertura fornecida pela falácia anacrônica da “ameaça comunista", que é um dos poucos fios comuns que unem o coral desencontrado que é a “equipe” do futuro governo, onde, curiosamente, o general Mourão vem despontando como uma “voz ajuizada”.

Mascarar o futuro
Dois dos “sonhos” (na verdade, pesadelos) preferidos da “equipe”, cujo “coach” é o delirante Olavo Carvalho, são: a) realinhar a política externa do Itamaraty e do país como um todo, em torno da visão de Trump e dos Estados Unidos como os messias que salvarão o Ocidente da débâcle diante do “comunismo” e dos perigos “muçulmano” e outros; e b) enquadrar a juventude através de uma doutrinação ideológica e partidária no ensino, da creche à pós-graduação, que a vacine contra a possibilidade do temido “retorno das esquerdas” e seus “temas conexos”, ou seja, temas “comunistas” e “deletérios”, como igualdade de gênero, combate à homofobia e outros preconceitos, etc.

Além disto, será necessário mascarar todas as crises futuras como “futuras aberturas para um melhor destino”. O eventual “desemprego” passaria a se chamar de “liberdade”; a fome, a falência da saúde pública serão rebatizadas como “correção dos rumos estatizantes” e por aí irá. A doutrinação ideológica unidimensional será rebatizada como “liberdade de expressão e pensamento” contra a ideologia “estatizante”, “comunista” e "destruidora da família”. E assim por diante.

Ergo, mascarar continuamente o presente.
Os primeiros momentos do governo Bolsonaro prometem ser uma montanha russa de sobe-desce, trepida-trepida, balança mas não cai, ou cai e aqui e ali, em quase todas as frentes. Por exemplo, e dos menores, da busca de uma tecnologia de ponta passaremos a uma tecnologia pontuda, com possível propaganda de travesseiros, com o ministro-astronauta. Haverá trombadas com o Congresso, prováveis turbulências internas e externas com a nova política externa “de cabeça erguida”, conforme o futuro chanceler, mas ao mesmo tempo com ela enfiada na areia do anacronismo anti-comunista, na obtusidade dos aspectos mais retrógrados do trumpismo, e assim por diante. Na economia, viraremos porquinhos de laboratório das experiências mais radicais de neoliberalismo desde Pinochet. Vão privatizar até a cadeira do presidente.

Tudo isto só vai se manter de pé, ou de quatro, através de uma brutal repressão em todos os sentidos. Vai começar pela criminalização dos movimentos sociais, tipo MST, MTST. Vão tentar, com ajuda da tigrada da toga, aleijar ou extirpar definitivamente o PT da cena política. Nas universidades, nas escolas, na saúde pública, haverá perseguições implacáveis. Com ajuda da alcateia de oportunistas, haverá a instituição da delação premiada contra terceiros. Como houve na ditadura: nas universidades grupos de docentes denunciavam outros grupos de “inimigos” para ocupar cargos de direção, favores internos, fluxo financeiro, etc.

Todo fracasso será revestido com a capa do sucesso. As redes sociais regurgitarão e vomitarão sucessos. Haverá ajuda nisto, pelo menos na parte econômica, por parte da mídia mainstream tradicional, que será domesticada. Vão aprovar, como vaquinhas de presépio, a criminalização dos movimentos sociais, a perseguição ao PT, a repressão aos dissidentes. Haverá vagidos débeis contra os aspectos mais abstrusos da política governamental, por exemplo, na FSP. Vamos ver até onde aguentam. Ainda não sei como tentarão controlar a internet e dobrar a mídia alternativa e seus jornalistas, mas isto virá.

Esqueçam políticas de proteção ao meio-ambiente. As ONGs e partidos de extrema-esquerda, que ajudaram a criticar acerbamente os governos petistas, terão lágrimas de sobra para chorar o leite derramado e as florestas esturricadas. Mas isto vai ser mascarado como “ordem e progresso”. Enfim, nosso inferno vai ganhar muitos matizes.

Entre eles o das novas disputas sucessórias que já estão começando.

Há, visivelmente, desde já, três projetos em marcha. O mais vistoso é o de Moro, amealhando o aparato judicial e policial disponível. Faz parte deste projeto manter Lula na cadeia, como cereja do bolo, e destruir a “máquina de corrupção do PT”, a “maior da história do Brasil”. Vai haver o industriamento em escala industrial da pressão sobre o aparato político, em particular o Congresso. Ponto forte: terá o apoio da tigrada da toga. A ver se empalma o “acaudilhamento” da PF e arredores. Ponto fraco: Moro agora é vitrine, e está perdendo prestígio na seara internacional rapidamente.

Há o projeto Bolsonaro. Dizer que não pretende a reeleição é algo que tem nariz comprido e pernas muito curtas. Ainda mais com a prole que tem, tão ávida quanto descalibrada. Ponto forte: está na presidência. Ponto fraco: ele mesmo, inseguro, instável, despreparado, sujeito a chuvas internas e trovoadas externas que o deixam tão assustado como quando deveria ir a um debate na Globo e nunca foi.

Correndo por fora, há o “ajuizado” Mourão. Pode ganhar a simpatia da caserna, é seu ponto forte. Pode ser visto como o porta-voz da caserna, é seu ponto fraco. O meio financeiro e empresarial pode não gostar. Idem, o meio financeiro internacional e estadounidense, que desde a Guerra das Malvinas olha o meio militar latino-americano com desconfiança e desde o fracassado golpe contra Hugo Chavez em 2002 com desdém.

Haveria outras candidaturas, por ora, imprevisíveis.

Auto-defesa
Não esperemos qualquer ajuda por parte de instituições jurídicas, a não ser patetices  apatetadas oriundas de seus escalões superiores.

Haverá ajuda internacional sim, mas de efeito limitado.

Temos de contar com o fato de que se houve, e houve, manipulação da informação e de consciências por parte das equipes virtuais da campanha de Bolsonaro, com certeza uma grande parte dos que nele votaram ouviram, nestas mentiras que lhes foram servidas via Facebook, WhatsApp, etc., exatamente aquilo que queriam ouvir para justificar seu voto pelo embrutecimento político, para justificar aquilo que seu ressentimento, medo da ascensão dos “outros”, das “outras” e de tudo mais, sua sensação de desamparo, exigiam que fizessem. Quando um erro ético desta monta é cometido, a primeira tendência é afincar-se a ele. Depois, esquecer o que foi feito. Quando a onda Bolsonaro passar, e ela vai passar, vamos ouvir, de milhões de corações pulsantes: “votei em Bolsonaro? Eu não!! Como você pode imaginar isto de mim. que sempre defendi a democracia?” Etc.

Portanto, preparemo-nos. As amizades perdidas não se recomporão. Ou pelo menos muitas delas. As vozes familiares não se reconciliarão, pelo menos durante muito tempo.

Como dizia alguém, “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

A primeira coisa a fazer é manter o equilíbrio interno, e não ceder à tentação de imitar o comportamento dos bolsonaros. Vi horrorizado o vt da professora em Brasília gritando palavrões e impropérios enquanto o “eleito” passava em direção ao centro do processo de transição. Entendo a raiva e o desabafo. Mas não é por aí. Vejo também com preocupação a atitude de amig@s e correligionári@s que propagam mensagens e informações sem checar sua procedência e veracidade. Temos de manter o princípio da credibilidade. Da seriedade. Do respeito a si mesm@ e a outrem.

Segundo, é preciso organizar-se. Evitar ações individuais e voluntariosas. Valorizar a informação compartilhada. Valorizar a mídia alternativa. Evitar a militância depressiva. Alertar sobre perseguições, descalabros, violências, sim, mas também, e principalmente, sobre resistência, alegria, humor, reação ao fascismo. Valorizar as formas coletivas de resistência, de organização, mídias, sindicatos, associações de todos os tipos, organizar comitês de defesa da democracia em todos os quadrantes.

Estudar história. A pior sensação que as ditaduras transmitem é de que serão eternas. Não, elas passam. A de 64 passou. Agora tem gente querendo traze-la de volta. É uma minoria. São ditadores de pijama. Há muito outros, milhões, que embarcaram, mistificados, nesta canoa. Vai ser duro, mas poderão ser ganhos para a causa democrática. Assim como os e as abstencionistas. Os pequenos e as pequenas Pilatos e Pilatas. Poderão crescer.

Isto aqui já vai enorme. Voltaremos ao assunto. Por ora, pensemos como Mário Quintana:

“Esses, que hoje
Atravancam meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho”.

ESCRAVIDÃO, NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO

Qual foi a base de riqueza para iniciar e desenvolver o capitalismo industrial nos séculos XVIII e XIX? 

Como o racismo se instalou para ficar muito tempo depois da abolição da escravidão, em sociedades como o Brasil e os Estados Unidos?

Sentimos que a escravidão deixou marcas, mas é necessário saber como, e quais, e a importância relativa dessa herança que impede desde sempre que uma sociedade minimamente justa possa emergir. 

Dois livros que li recentemente trazem alguns dados importantes para a possibilidade desse conhecimento. N'O Livro Negro do Capitalismo, um pequeno artigo de Philippe Paraire, intitulado Economia Servil e Capitalismo: Um Balanço Quantificável, traz alguns fatos e quantidades importantes relativos ao capitalismo europeu. O outro livro chama-se The Half Has Never Been Told:Slavery and the Making of American Capitalism, de Edward E. Baptist. Abaixo alguns excertos do artigo citado, com as conclusões do livro de Baptist:

O capitalismo, ainda na sua fase infantil comercial e mercantilista, apenas partiu para a maturidade graças aos extraordinários lucros gerados pela invasão de um continente – a América – e proporcionados por populações arrancadas a outro – a África.

A exploração e extermínio fez a população de ameríndios em três séculos a partir do XVI em 20 a 40 milhões de pessoas (em alguns casos tendo levado a uma extinção total).

Em três séculos de tráfico, entre 1510 e 1860, os povos costeiros da África perderam 20 milhões de pessoas (dez milhões de mortos, e dez milhões de deportados). Dos 10 milhões de deportados mortos, dois milhões pereceram durante a travessia do Atlântico, e oito entre os locais de sua captura na África e os entrepostos costeiros.

Nações que cunhavam suas próprias moedas foram reduzidas ao tribalismo pela desagregação resultante da caça às suas populações, geralmente feita pelos bandos de reis de países costeiros. As populações remanescentes sofreram um enorme desequilíbrio entre homens e mulheres, tendo levado essas populações a adotar em grande escala à poligamia.

Declínio regular do peso da África na população mundial: em 1600, ela representava 30% da população mundial. O número cai para 20% em 1800. A queda prossegue até 1900, data na qual só 10% da humanidade vive na África. A costa oeste, do Senegal a Angola, foi a mais afetada.


Cana de açúcar no Brasil e nas Antilhas, depois algodão nos Estados Unidos e café no Brasil, junto com as circulações das mercadorias: açúcar, algodão, rum, café, escravos, geraram excedentes econômicos que foram dirigidos para a Europa, e para os estados do nordeste dos Estados Unidos, onde constituíram a base financeira principal sobra a qual se erigiu o capitalismo industrial nos séculos 18 e 19.  

MORO NUM PAÍS TROPICAL

Jânio de Freitas na Folha, transcrito no Conversa Afiada

Moro num país tropical

A torrente de acusações judiciais que, de repente, voltou a cair sobre Lula, Dilma Rousseff e até Fernando Haddad —em contraste com o presente antecipado de libertação do delator Antonio Palocci— até agora não teve êxito algum em sua função extrajudicial. Não fez parecer que a continuidade de acusações nega a finalidade, nas anteriores à eleição, de impedir a candidatura de Lula e sua previsível vitória.
O próprio beneficiário do efeito extrajudicial, Sergio Moro, facilitou o fracasso. Ao renegar a afirmação de que jamais se tornaria político, e incorporar-se ao governo que ajudou a eleger, mais do que desmoralizou o seu passado de juiz —como disse que aconteceria, se passasse à política. Tornou mais desprezível a imagem do futuro governo e do país exposta a cada dia pela imprensa mundial.
Voltamos a ser um país com algumas originalidades musicais, carnavalescas, geográficas, mas um país atrasado de um povo atrasado. E não há o que responder.
Onde, no mundo não atrasado, um juiz faria dezenas de conduções coercitivas ilegais, prisões como coação ilegal a depoentes, gravações ilegais de acusados, parentes e advogados, divulgação ilegal dessas gravações, excesso ilegal de duração de prisões, e sua impunidade permanecesse acobertada por conivência ou medo das instâncias judiciais superiores? Condutas próprias de ditadura, mas em regime de Constituição democrática.
No mundo não atrasado, inexiste o país onde um juiz pusesse na cadeia o líder da disputa eleitoral e provável futuro presidente, e deixasse a magistratura para ser ministro do eleito por ausência do favorito.
O juiz italiano da Mãos Limpas tornou-se político, mas sua decisão se deu um ano e meio depois de deixar a magistratura. Moro repôs o Brasil na liderança do chamado subdesenvolvimento tropical, condição em que a Justiça se iguala à moradia, à saúde, à educação, e outros bens de luxo.
A corrupção financeira tem equivalentes em outras formas de corrupção. A corrupção política, com transação de cargos ou postos no Legislativo, por exemplo. A corrupção sexual, a corrupção do poder das leis por interesses políticos ou materiais. Combater uma das formas não gera a inocência automática em outras.
 A maneira mesma de combater a corrupção pode ser corrupção imaterial. Ao falar dessa variedade de antiética e imoralidades, no Brasil fala-se até do Supremo Tribunal Federal. A transação do seu presidente, Dias Toffoli, e do ministro Luiz Fux com Michel Temer, para um aumento em que os primeiros e maiores beneficiários são os ministros do STF, ajusta-se bem a diversos itens daquela variedade.
Sergio Moro é dado como futura nomeação de Bolsonaro para o Supremo. Muito compreensível.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

FEBEAPÁ VERSÃO SÉCULO 21

Pra quem não está familiarizado com o termo, FEBEAPÁ é festival de besteiras que assola o país, na  ditadura versão de 1964 das classes dominantes do Brasil. O termo foi cunhado por Stanislau Ponte Preta, pseudônimo do grande jornalista, escritor e humorista Sérgio Porto, para servir de título para mostrar as idiotices que o poder fardado ou civil daquela fase ditatorial foi impondo. Naquela época, para combater a corrupção e a subversão, não me lembro em que ordem.

Do Tijolaço:


A “junta revisional” de Bolsonaro no Enem e as células comunistas


O ministro indicado da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, demonstrando seu sabujismo, anuncia na Folha que o presidente eleito, Jair Bolsonaro,está “liberado” para examinar previamente a prova do Enem.
Como, possivelmente, o sr. Bolsonaro terá dificuldades cognitivas para examinar uma prova de 90 ou 100 questões sozinho, certamente formará uma “junta revisional” para fazê-lo por ele ou ajudá-lo a fazer, tá ok?
Portanto, mais quatro ou cinco pessoas a conhecerem, com livre acesso a um documento cuja reserva deve ser mantida a todo custo.
E quem serão os nomes adequados para fazer este “exame ideológico” do questionário aplicado aos alunos de segundo grau?
Quem sabe não se aproveita gente como o histérico Fernando Holiday, o deputado eleito Kim Kataguiri, o seu colega Alexandre Frota e o neoeducador Daniel Silveira, o “farejador de merdas”, que estreou ontem no campo da censura educacional?
Não basta que a educação no Brasil seja deficiente, não basta que vá se tornar uma tragédia macartista, é preciso torná-la, também, uma piada internacional.
Quem sabe o que vai acontecer? Será que numa pergunta sobre reprodução das células, Bolsonaro vai ver a expansão marxista, porque afinal célula é grupo de comunistas? Destinar-se-ão os fagócitos a envolver e destruir os valores cristãos? Será que a mitose seria uma maneira transversa de falar mal do “mito”?
A estupidez parece não ter mais limites.
PS: Que tal a palavra de ordem “a nossa hemácia jamais será vermelha”?

A DIREITA NÃO QUER CONSTRUIR NADA

Apenas destruir para assegurar condições sempre mais favoráveis à exploração da terra e da massa de trabalhadores em proveito do grande capital.

No processo, seus grupos de interesses especiais vão tratando de colher benefícios a partir da destruição e do caos resultantes.

Grupos de interesses como os pastores evangélicos politizados, os membros do judiciário, os poderes fardados como militares e policiais, que vão cobrando suas vantagens enquanto ocupam espaços que deveriam ser de instituições laicas e democráticas.

Os grandes beneficiários, atrás de tudo: o grande capital, o império, e suas médias e pequenas burguesias clientes.

Todos eles encontraram no Bozo a encarnação perfeita de sua rasteira dimensão intelectual e moral. 

A esquerda terá que assumir toda a responsabilidade de propor uma nova construção social, já que as instituições "democráticas" vão sendo desmontadas ou transformadas em tribunais de exceção. 

Necessário pensar no que pode vir. Trabalhar apenas no sentido de restaurar as instituições que havia antes dos vândalos já não é aceitável para a sociedade e para o planeta.

Não vamos estar sozinhos. Os estadunidenses, os franceses, os ingleses, os italianos estão sofrendo processos similares, decorrentes tanto da ação desses grupos da direita como das insuficiências e vacilos de suas esquerdas. Todos estão na ativa. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O FUTURO DOS SUPER RICOS

Saiu no Outras Palavras. Eles estão cada vez mais concentrados na tarefa de se isolar do mal que eles mesmo cultivam: pobreza, migrações em massa, violência, desordem, doenças. Aspiram fechar-se em fortalezas isoladas do planeta dos seres humanos.

Os ultra-ricos preparam um mundo pós-humano

Uma elite ínfima – porém poderosa ao extremo – crê que o planeta tornou-se inviável e quer isolar-se após o “Evento”. O que isso revela sobre a grande crise civilizatória em que mergulhamos
Por Douglas Rushkoff | Tradução: Inês Castilho
No ano passado, fui convidado a fazer conferência num resort superluxuoso para um público que, imaginei, seria de aproximadamente cem banqueiros de investimento. Era de longe a maior remuneração que jamais me foi oferecida por uma palestra – metade do meu salário anual como professor – tudo para fornecer algumas dicas sobre o tema “o futuro da tecnologia”.
Nunca gostei de falar sobre o futuro. A sessão de perguntas e respostas sempre acaba mais como um jogo de salão, em que me pedem para opinar sobre as últimas tendências da tecnologia como se fossem dicas precisas para potenciais investimentos: blockchain, impressão 3D, CRISPR. As audiências raramente estão interessadas em aprender sobre essas tecnologias ou sobre seus impactos potenciais, além da escolha binária entre investir nelas ou não. Mas o dinheiro chama; por isso, entrei no show.
Ao chegar, fui introduzido no que ma pareceu ser a sala reservada principal. Mas, ao invés de receber um microfone ou ser conduzido a um palco, simplesmente me sentei numa mesa redonda e minha audiência começou a chegar: cinco sujeitos super-ricos – sim, todos homens – do alto escalão do mundo dos fundos hedge. Depois de um pouco de conversa, percebi que eles não tinham interesse nas informações que eu havia preparado sobre o futuro da tecnologia. Haviam preparado suas próprias perguntas.
Começavam com aparente ingenuidade. Ethereum ou Bitcoin? A computação quântica é real? Mas, lenta e seguramente, concentraram-se em suas verdadeiras preocupações.
Qual região seria menos impactada pela crise climática que vem aí: Nova Zelândia ou Alasca? O Google está realmente construindo um “lar” para o cérebro de Ray Kurzweil e sua consciência viverá durante a transição, ou ele morrerá e renascerá inteiramente novo? Finalmente, o executivo-chefe de uma corretora explicou que havia quase concluído a construção de seu próprio sistema subterrâneo de abrigo e perguntou: “Como faço para manter a autoridade sobre minha força de segurança após o evento?
TEXTO-MEIO
O Evento. Esse era o eufemismo que usavam para o desastre ambiental, a agitação social, a explosão nuclear, o vírus incontrolável ou os hackers-robôs que destroem tudo.
Essa única pergunta os ocupou pelo resto do tempo. Sabiam que guardas armados viriam para proteger seus complexos das multidões enfurecidas. Mas como pagariam os guardas, já que o dinheiro não teria valor? O que evitaria que os guardas escolhessem os próprios líderes? Os bilionários consideravam usar fechaduras de combinação especial que só eles conheciam para guardar sua provisão de comida. Ou fazer com que os guardas usassem colares disciplinares de algum tipo, em troca de sua sobrevivência. Ou talvez construir robôs para servir de guardas e trabalhadores – se essa tecnologia fosse desenvolvida a tempo.
Foi quando me bateu. Para esses senhores, essa era uma conversa sobre o futuro da tecnologia. Seguindo as dicas de Elon Muskcolonizando Marte, Peter Thiel revertendo o processo de envelhecimento, ou Sam Altman e Ray Kurzweil inserindo suas mentes em supercomputadores, eles estavam se preparando para um futuro digital que tinha muito menos a ver com tornar o mundo um lugar melhor, do que com transcender inteiramente a condição humana e isolar-se do perigo hoje real das mudanças climáticas, aumento do nível do mar, migrações em massa, pandemias globais, pânico e esgotamento de recursos. Para eles, o futuro da tecnologia tem a ver com uma única coisa: escapar.
Não há nada de errado com avaliações loucamente otimistas de como a tecnologia pode beneficiar a sociedade humana. Mas o movimento atual de uma utopia pós-humana é outra coisa. É menos uma visão da migração da humanidade para um novo estado do ser do que uma busca de transcender tudo o que é humano: corpo, interdependência, compaixão, vulnerabilidade, complexidade. Como filósofos da tecnologia vêm apontando há anos, a visão transhumanista reduz muito facilmente toda a realidade a dados, concluindo que “ humanos não passam de objetos processadores de informação”.
É uma redução da evolução humana a um videogame em que alguém vence encontrando a saída de emergência e deixando alguns de seus melhores amigos pelo caminho. Serão Musk, Bezos, Thiel… Zuckerberg? Esses bilionários são os vencedores presumíveis da economia digital – o mesmo cenário de sobrevivência do mais apto que alimenta a maior parte dessa especulação.
Claro que nem sempre foi assim. Houve um breve momento, no início dos anos 1990, em que o futuro digital parecia aberto a nossa invenção. A tecnologia estava se tornando um playground para a contracultura, que via nela a oportunidade de criar um futuro mais inclusivo, igualitário e pró-humano. Mas os interesses de lucro do establishment viram somente novos potenciais para a velha exploração, e muitos tecnólogos foram seduzidos pelos unicórnios das bolsas de valores. O futuro digital passou a ser compreendido mais como ações futuras ou mercadorias futuras – algo a ser previsto e em que apostar. Assim, quase todos os discursos, artigos, estudos, documentários ou documentos técnicos eram considerados relevantes apenas na medida em que apontavam para um símbolo de corporação global. O futuro tornou-se menos uma coisa que criamos através de nossas escolhas ou esperanças pela humanidade, do que um cenário predestinado no qual apostamos com nosso capital de risco, mas ao qual chegamos passivamente.
Isso liberou todo mundo das implicações morais de suas atividades. O desenvolvimento da tecnologia tornou-se menos uma história de florescimento coletivo do que de sobrevivência pessoal. Pior, como vim aaprender, chamar atenção para isso era ser involuntariamente considerado um inimigo do mercado ou um rabugento antitecnológico.
A esta altura, o invés de tecer considerações éticas sobre empobrecer ou explorar muitos, em nome de poucos, a maioria dos acadêmicos, jornalistas e escritores de ficção científica passou a se dedicar a enigmas muito mais abstratos e fantasiosos: é justo um operador nos mercados financeiros usar drogas inteligentes? As crianças devem receber implantes para línguas estrangeiras? Queremos que veículos autônomos priorizem a vida dos pedestres, em detrimento dos passageiros? Devem as primeiras colônias de Marte ser administradas como democracias? Mudar meu DNA prejudica minha identidade? Os robôs devem ter direitos?
Fazer esse tipo de pergunta, embora filosoficamente divertido, é um substituto pobre para o exame dos verdadeiros dilemas morais associados ao desenvolvimento tecnológico desenfreado, em nome do capitalismo corporativo. As plataformas digitais já tornaram um mercado explorador e extrativista (pense na Walmart), em um sucessor ainda mais desumanizador (pense na Amazon). A maioria de nós tornou-se consciente desse lado sombrio na forma de empregos automatizados, trabalho temporário e o fim do varejo local.
Porém, os impactos mais devastadores desse capitalismo digital que avança recaem sobre o meio ambiente e os pobres do mundo. A produção de alguns de nossos computadores e smartphones ainda usa redes de trabalho escravo. Essas práticas estão tão profundamente arraigadas que uma empresa chamada Fairphone, fundada  a partir do zero para produzir e comercializar telefones éticos, verificou que era impossível. (Agora o fundador da empresa se refere a seus produtos como telefones “mais justos”)…
Enquanto isso, a mineração de metais raros e o descarte de nossas tecnologias altamente digitais destroem habitats humanos, substituindo-os por depósitos de lixo tóxico — recolhido por crianças camponesas e suas famílias, que vendem materiais utilizáveis de volta aos fabricantes.
Essa externalização — “fora da vista, fora da mente” — da pobreza e do veneno não desaparece apenas porque cobrimos nossos olhos com óculos de realidade virtual e ficamos imersos numa realidade alternativa. Quanto mais ignoramos as repercussões sociais, econômicas e ambientais, mais elas se tornam problemáticas. Isso, por sua vez, motiva ainda mais privação, mais isolacionismo e fantasia apocalíptica – e tecnologias e planos de negócios mais concebidos em desespero. O ciclo se retroalimenta.
Quanto mais comprometidos estamos com essa visão de mundo, mais passamos a ver os seres humanos como problema e a tecnologia como solução. A própria essência do que significa ser humano é tratada menos como uma característica do que como defeito intrínseco, um bug. As tecnologias são declaradas neutras, a despeito dos preconceitos nelas incorporados. Quaisquer que sejam os comportamentos ruins que induzam em nós, eles seriam apenas um reflexo de nosso próprio núcleo corrompido. É como se alguma selvageria humana inata fosse a culpada pelos nossos problemas. Assim como a ineficiência de um mercado de táxi local pode ser “resolvida” com um aplicativo que leva motoristas humanos à falência, as incômodas incoerências da psiqué humana podem ser corrigidas com um upgrade digital ou genético.
Em última análise, segundo a ortodoxia tecnosolucionista, o futuro humano chega ao climax se inserir nossa consciência num computador ou, talvez anda melhor, aceitar que a própria tecnologia é nossa sucessora na evolução. Como os membros de um culto gnóstico, ansiamos por entrar na próxima fase transcendente de nosso desenvolvimento, eliminando nossos corpos e deixando-os para trás junto com nossos pecados e problemas.
Nossos filmes e programas de televisão encenam essas fantasias por nós. Seriados de zumbis mostram um pós-apocalipse em que as pessoas não são melhores que os mortos-vivos – e parecem conhecê-los. Pior, esses filmes convidam os espectadores a imaginar o futuro como uma batalha de soma zero entre os humanos remanescentes, onde a sobrevivência de um grupo depende da morte de outro. Mesmo Westworld – baseado num romance de ficção científica em que robôs correm descontroladamente – encerrou sua segunda temporada com a revelação definitiva: os seres humanos são mais simples e previsíveis do que as inteligências artificiais que criamos. Os robôs aprendem que cada um de nós pode ser reduzido a apenas algumas linhas de código e que somos incapazes de fazer escolhas intencionais. Caramba, naquela série até mesmo os robôs querem escapar dos limites de seus corpos e passar o resto de suas vidas numa simulação de computador.
A ginástica mental requerida por essa profunda inversão de papéis entre humanos e máquinas depende do pressuposto subjacente de que os humanos são péssimos . Vamos mudá-los ou nos afastar deles para sempre.
Então, temos bilionários da tecnologia lançando carros elétricos ao espaço – como se isso simbolizasse algo mais que a capacidade de um bilionário promover-se na corporação. E se poucas pessoas conseguem escapar e de alguma forma sobreviver numa bolha em Marte – a despeito de nossa incapacidade de manter tal bolha até mesmo aqui na Terra, em qualquer dos dois testes multibilionários feitos na Biosfera – o resultado será menos a continuação da diáspora humana que um salva-vidas para a elite.
Quando os financistas de fundos hedge perguntaram sobre a melhor maneira de manter a autoridade sobre suas forças de segurança depois do evento, sugeri que sua melhor aposta seria tratar muito bem essas pessoas, desde já. Deviam envolver-se com suas equipes de segurança como se estas fossem formadas por membros de suas próprias famílias. E quanto mais eles pudessem expandir esse espírito de inclusão para o resto de suas práticas de negócios, gerenciamento da cadeia de suprimentos, esforços de sustentabilidade e distribuição de riqueza, menor a chance de haver um evento, em primeiro lugar. Toda essa magia tecnológica poderia ser aplicada desde já, para fins menos românticos, porém muito mais coletivos.
Eles ficaram pasmos com meu otimismo, mas na verdade não o aceitaram. Não estavam interessados em como evitar uma calamidade; estavam convencidos que já fomos longe demais. Apesar de toda a sua riqueza e poder, não acreditam que possam afetar o futuro. Estão simplesmente aceitando o mais sombrio de todos os cenários e, em seguida, trazendo todo o dinheiro e tecnologia que podem usar para isolar-se – especialmente se não conseguirem um lugar no foguete para Marte.
Felizmente, aqueles de nós sem dinheiro para considerar a negação de nossa própria humanidade têm disponíveis opções muito melhores. Não precisamos usar a tecnologia de modo tão antissocial e atomizante. Podemos nos tornar os consumidores e perfis individuais em que nossos dispositivos e plataformas desejam nos transformar, ou podemos nos lembrar que o humano verdadeiramente evoluído não caminha sozinho.
Ser humano não tem a ver com sobrevivência ou saída individual. É um esporte coletivo. Seja qual for o futuro dos humanos, será de todos nós.
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Douglas Rushkoff is the author of the upcoming book Team Human (W.W. Norton, January 2019) and host of the TeamHuman.fm podcast.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A VERDADE DE BOLSONARO

É como a verdade de Trump, lá na sede do império. Do Outras Palavras

Bolsonaro e o controle da verdade

Primeira análise de um discurso. Em curiosa tentativa de desconcertar o jornalismo, ex-capitão diz e desdiz, o tempo todo. Escolha sua própria verdade. Você finalmente será livre — para segui-lo
Por Ricardo Alexandre
“Jair Bolsonaro é evangélico”, afirmava um. “Não, ele é católico romano”, dizia o outro. “Não, eu vi o vídeo dele sendo batizado por um pastor da Assembléia”. “Mas eu vi uma entrevista na qual ele dizia que era católico”. “Mas quem fez o casamento dele foi o Malafaia”. “Mas ele continua sendo católico”.
Não eram minhas tias conversando no almoço de família. Era um comentarista político e um especialista em marketing político discutindo com o microfone ligado, sobre a religião do então candidato a presidente. Em um país em que 60% declara que “jamais” votariam em um ateu, a religião é fator fundamental também na identidade de um personagem público.
Pois até nesse ponto Jair Bolsonaro trabalha em regime de contrainformação. Sua religião é assunto tão envolto em fatos e versões que a Folha produziu um conteúdo para tentar esclarecer seu leitor (link nos comentários).
A tradição religiosa do presidente eleito é apenas um exemplo do que os americanos batizaram de “pós-verdade”. Dizer que ele é evangélico não seria uma mentira. Dizer que ele é católico também não é. Também não são verdades, são pós-verdades.
“Pós-verdade” foi a “palavra do ano” de 2016 segundo o dicionário Oxford, para designar algo “relativo a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores da opinião pública do que apelos à emoção ou crenças pessoais”.
Em outras palavras: se você acredita que Bolsonaro é evangélico, você vai ter quilos de vídeos, declarações e pastores para passar a vida compartilhando e comprovando o que você  acreditava; se pensa que ele é católico, também. É isso que importou na campanha de Donald Trump (quando a palavra “pós-verdade” foi inventada) e é isso que importa na comunicação de seu discípulo brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.
No caso do brasileiro, ao ser abraçado por líderes neopentecostais como Silas Malafaia, Estevan Hernandes, Ana Paula Valadão e Edir Macedo, entrou na receita um componente bastante próprio dessa tradição do evangelicalismo brasileiro, perfeitamente compreendido pelos fiéis: a ênfase e a convicção são muito mais importantes do que o conteúdo. Em outras palavras, como quão violentamente (ou defendemos algo) passou a ser a questão, muito mais do que está sendo dito. A jornalista Eliane Brum escreveu um artigo muito interessante a esse respeito, “Bolsonaro e a autoverdade” (link nos comentários).
Bolsonaro ditou completamente a agenda política de 2018. Concordo com Eduardo Jorge e Ciro Gomes, quando dizem que o capitão foi fruto direto do “nós contra eles” do petismo. Mas a novelinha de Lula candidato foi só uma patética tentativa de desviar o foco de quem sempre esteve no centro do palco: Jair Bolsonaro. Foi ele e seus filhos quem deram as cartas do noticiário o tempo todo, com declarações bombásticas, desmentidos e aparente bateção-de-cabeça. O ex-assessor de Donald Trump e líder do grupo de direita nacionalista The Movement, Steve Bannon, disse que essa “linguagem provocativa” é a tática ideal para alguém “conseguir ser ouvido em meio ao barulho”, chamar a atenção à margem de uma mídia que nunca o levou à sério. “Hoje, a política é, na realidade, uma narrativa midiática”. (Leia o link nos comentários).
Entretanto, eleito presidente, Jair Bolsonaro não parece satisfeito em apenas construir uma narrativa midiática. Ele, seus filhos e seus diretos continuam monopolizando a mídia, mas seu mais ambicioso controle não é mais sobre a imprensa; é sobre a verdade.
Reflita comigo: qual a conexão do versículo bíblico que ele usou em seu primeiro pronunciamento como presidente (“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”) com o conteúdo em si? Até onde vai minha capacidade de interpretação de texto (Leia a íntegra no link nos comentários), não há conexão nenhuma, a menos que você considere a possibilidade de estar diante de um homem se apresentando ele mesmo como a verdade ou, no mínimo, porta-voz da versão que deve ser entendida como a verdade.
Mas, como também está na Bíblia, na boca de Pôncio Pilatos, “O que é a verdade?” Será a verdade, captada em vídeo, do próprio Bolsonaro anunciando que Antonio Fraga iria “coordenar a bancada lá no Planalto” apesar de ser condenado por corrupção? Ou seria o mesmo presidente, no Twitter, escrevendo que “nossos ministérios não serão compostos por condenados por corrupção como foram nos últimos governos”? Seria o vice Mourão dizendo que Sergio Moro sabia do convite ao Ministério da Justiça desde a campanha? Ou o próprio Moro dizendo que não sabia? Seria Bolsonaro anunciando a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e Agricultura ou ele voltando atrás? Ou ele anunciando novamente ou voltando atrás novamente? Seria a verdade dita por Paulo Guedes que o novo governo pretende criar uma “nova CPMF”? Ou o desmentido? Seria o filho explicando como fechar o STF? Ou o pai repreendendo “o garoto” no dia seguinte? Seria Mourão ao criticar o 13º ou Bolsonaro anunciando o 13º para o Bolsa Família? Seria Bolsonaro defendendo a liberdade de imprensa no “Jornal Nacional” ou ele caracterizando a Folha como “indigna” de receber as verbas publicitárias do governo no mesmo programa? Ou seria seu vice, algumas horas depois, dizendo que “a imprensa não é inimiga”?
Quem será que “vazou” o vídeo de Bolsonaro anunciando Fraga como ministro? Será que a Record, emissora do mesmo Edir Macedo que vem apoiando escancaradamente o presidente, levaria ao ar algo sem a aprovação de sua equipe? Se sim, porque tirou o vídeo de seus sites? E porque apenas depois da avalanche de críticas à nomeação de Fraga? Será que o próprio Bolsonaro solicitou o vazamento? Com qual objetivo? Testar a opinião pública para um ministro condenado por corrupção? Ou desnortear a cobertura da imprensa para a montagem de seu ministério?
Afinal, o que é a verdade?
A resposta de Bolsonaro à pergunta de Pôncio Pilatos está nas entrelinhas de seu tweet de alguns dias atrás: “Anunciarei os nomes oficialmente em minhas redes. Qualquer informação além é mera especulação, maldosa e sem credibilidade.” 24 horas depois, Bolsonaro dá a sua primeira entrevista coletiva barrando a entrada da FolhaO GloboEstadão e agências internacionais. O próprio presidente tratou de obscurecer o que deveria ser esclarecido: “Não sei quem marcou isso (a coletiva)”, e nem quem havia mandado restringir os veículos.
Bolsonaro e sua equipe têm trabalhado incansavelmente em cristalizar na cabeça de seus eleitores que a imprensa tradicional brasileira é “especulação”, “fake news”, “indigna” e “sem credibilidade”. A verdade não surge mais da multiplicidade de pontos de vista e do debate entre diferentes vozes. “A verdade” é o que Bolsonaro disser. É essa a verdade que “vos libertará”. Libertará do lulopetismo, libertará da ameaça comunista, libertará da imprensa esquerdopata, da ditadura venezuelana.
Para um país com o índice de leitura do Brasil, soa como música: notícias apuradas por profissionais são “especulação”, “vamos esperar”, “isso é fake news”, “tem que acabar com essa imprensa mesmo”. Verdade é o que o Capitão disser em suas redes sociais. É o que Steve Bannon ensinou nos Estados Unidos: desacredite a imprensa o quanto você puder e mesmo que você admita em juízo que teve um caso extraconjugal com uma atriz pornô, seus devotos só acreditarão no que lerem em suas redes sociais. Imagine em um país como o Brasil, numa eleição construída em cima de memes e fake news, com uma imprensa em constante crise de recursos como a nossa. O que é a verdade?
Escolha a sua verdade. Ou melhor, deixe que o capitão escolha para você. Torça pelo fim da imprensa independente, em vez de torcer pelo seu aperfeiçoamento. Assim, como nos tempos do comandante Ustra, você não terá mais notícias de corrupção nem de corruptores nos jornais. Não terá nem jornais. E, segundo a interpretação que o nosso presidente deu para o versículo bíblico, finalmente será livre.
Livre para segui-lo.

DUAS VISÕES DO QUE ESTÁ ACONTECENDO NO BRASIL

E do que podemos querer. As duas publicadas no Opera Mundi, por dois intelectuais importantes, o escritor Milton Hatoum e o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães. Para este último, que no fim inclui um projeto de governo democrático dirigido para a nação e seu povo, creio que vou ter que me esforçar para encontrar alguma coisa de que eu discorde.


'Tempo sombrio vai ser longo no Brasil', diz escritor Milton Hatoum
'Não torço pelo pior, mas a equipe dele [Bolsonaro] é péssima, não tem nenhuma grandeza ética ou intelectual para governar o país', diz escritor, que vai receber prêmio Roger Caillois pelo conjunto da obra
MÁRCIA BECHARA
9 de nov de 2018 às 12:02

Milton Hatoum se tornou nesta quinta-feira (08/11) o terceiro escritor brasileiro a ser contemplado com o prêmio Roger Caillois pelo conjunto de sua obra. A premiação, que é anual, celebra tradicionalmente um autor latino-americano e um de língua francesa. Roger Caillois (1913-1978), célebre crítico literário, ensaísta, poeta e sociólogo francês, foi um dos mais importantes promotores da literatura hispano-americana na França, desde que se exilou na Argentina, durante a Segunda Guerra Mundial. A entrega do prêmio acontecerá no dia 13 de dezembro, na Maison de L’Amérique Latine, em Paris.
Hatoum, que estará presente, disse que “é um bom momento para sair um pouco do Brasil”. O escritor conversou com a RFI sobre a premiação, literatura e os últimos acontecimentos no país.
RFI – Você é o terceiro brasileiro a ser contemplado com o prêmio Roger Caillois, depois de Haroldo de Campos, em 1999, e Chico Buarque, em 2016. Qual o significado desta premiação para você, que possui várias obras traduzidas e publicadas na França?
Milton Hatoum
 – Fiquei muito honrado, é um prêmio importante para a literatura da América Latina. Ele leva o nome de um francês [Roger Caillois] que morou na Argentina vários anos durante a Segunda Guerra, onde fundou uma revista importante, a Lettre Française. Ele tinha sido convidado pela escritora argentina Victoria Ocampo para dar uma série de conferências na Argentina, e teve que ficar por lá por causa da ocupação nazista do governo de Vichy e de Pétain, na França. Quando ele decide ficar em Buenos Aires, ele começa a ler literatura hispano-americana. Além da produção literária de Caillois, ele foi um intelectual importante para fazer essa ponte cultural e afetiva entre a América Latina e a França. Vejo um pouco de paralelismo com a missão francesa no Brasil, com os franceses que vieram dar aula na USP nos anos 1930, entre eles o (Claude) Lévi-Strauss. O fato de ganhar esse prêmio, e de ter dois ilustres conterrâneos como vencedores, o Haroldo e o Chico Buarque, é uma honra para mim.
RFI – Seu mais recente livro, A noite da Espera, que faz parte da trilogia O Lugar mais Sombrio, foi publicado há exatamente um ano no Brasil. É um romance de formação, que recupera um pouco do espectro sombrio da ditadura. Como será o segundo volume, que saíra num Brasil prestes a reviver, talvez, alguns destes fantasmas?
Milton Hatoum
 – Comecei a escrever essa trilogia em 2007. Esse ano, eu revisei o segundo volume. Durante a revisão, eu percebi que o ambiente não é muito diferente do que está acontecendo hoje. Críticos, jornalistas e leitores já tinham feito esse comentário sobre o primeiro volume. Muitos acharam que a narrativa e o ambiente opressivo remetem ao que aconteceu no último ano, no Brasil. Mas eu não tinha pensado nisso. Quando escrevi, 2008, 2010, 2012, o Brasil estava na paz, em outra toada. Mas essas tragédias são cíclicas na América Latina. E relendo o segundo volume, eu percebi que esse lugar sombrio continua como espaço e tempo sombrio também. Porque estamos revivendo algo que já vi, eu que passei toda a minha juventude, e uma parte da vida adulta, sob a ditadura. Então, posso dizer que isso que está acontecendo está de algum modo no livro, embora não seja um romance político, nem um romance sobre a ditadura.

RFI – Você citou Roger Caillois, que se exilou na Argentina por causa da colaboração francesa com o nazismo. O general Pétain, um dos símbolos dessa colaboração, causou polêmica na França há dois dias, quando o presidente francês, Emmanuel Macron, decidiu homenageá-lo, durante o centenário do Primeira Guerra. Como é ser criador num país, o Brasil, que parece adotar uma postura revisionista em relação a seu passado?
Milton Hatoum
 – Li essa declaração infeliz do Macron, e espero que tenha sido uma gafe (risos). Mas no Brasil, o que o presidente eleito, o capitão reformado Jair Bolsonaro, falou sobre a ditadura, não foi gafe, foi convicção. Ele elogiou a ditadura e torturadores. Bolsonaro é de fato uma figura sinistra e de extrema-direita. Um escritor sente essa pressão, mas esse governo não vai me impedir de escrever. Acho que quem vai sentir profundamente são as pessoas muito pobres, os negros, os homossexuais, as mulheres, ele fez um discurso contra as minorias, muito contundente e ácido. Eu não torço pelo pior, mas a equipe dele é péssima, não tem nenhuma grandeza ética ou intelectual para governar o país. Pessoas já foram assassinadas e professores estão acuados por causa dessa loucura dessa Escola Sem Partido, que vai gerar um verdadeiro caos, se esse projeto for aprovado. Será a loucura da delação em sala de aula, essa coisa de filmar professores e gravar. Acho que a violência vai aumentar e as pessoas estão com medo. Mas medo é a última coisa que a gente deve sentir. Devemos atacar com argumentos toda essa impostura.
RFI – Você é escritor. Seria possível descrever ou imaginar Brasília (um dos cenários de A noite da espera) em 2019?
Milton Hatoum
 – Brasília em 2019 para mim será um governo de militares eleitos pelo povo. Não sabemos o que será o Congresso Nacional, como ele vai se comportar diante do Executivo. Eu estou prevendo uma situação um pouco caótica. Essa para mim é a imagem de Brasília no ano que vem. O Brasil é de uma complexidade enorme, e eles não entenderam isso. Acho que as pessoas estão muito infelizes, há 13 milhões de desempregados. Quem elege um salvador da pátria, não sabe ainda que não haverá salvação, nem a curto, nem a médio prazo. Acho que esse tempo sombrio vai ser longo.
RFI – Você é traduzido e publicado na França há muitos anos. Alguma novidade está prevista para o mercado editorial francês para este ano?
Milton Hatoum
 – Acaba de sair na França meu livro de contos, La Ville au millieu des eaux (Actes Sud, 2018), o título em português é A Cidade Ilhada (Companhia das Letras, 2009). Gostei muito da escolha do título do tradutor, Michel Riaudel. Meu primeiro livro publicado na França foi o Recit d'un certain Orient, publicado pelas edições Seuil, todos os outros saíram pela Actes Sud, como Deux Frères (Dois Irmãos), Cendres d’Amazonie (Cinzas do Norte) e Orphelin d’Eldorado (Órfão do Eldorado).



Dois projetos para o Brasil
Dois projetos para o Brasil se confrontam desde 1930, se alternaram no Poder desde então, se confrontaram no dia 28 de outubro de 2018 e continuarão a se confrontar após o dia 28, data em que Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
12 de nov de 2018 às 08:46

1.  Dois projetos para o Brasil se confrontam desde 1930, se alternaram no Poder desde então, se confrontaram no dia 28 de outubro de 2018 e continuarão a se confrontar após o dia 28, data em que Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República.
2.  O primeiro é o projeto do “Mercado”. É o projeto dos muito ricos, dos megainvestidores, das empresas estrangeiras, dos rentistas, dos grandes ruralistas, dos proprietários dos meios de comunicação de massa, dos grandes empresários, dos grandes banqueiros, e de seus representantes na política, na mídia e na academia. É o projeto de uma ínfima minoria do povo brasileiro.
3.  Cerca de 30 milhões de brasileiros apresentam declaração de renda anual onde revelam ter rendimento superior a dois salários mínimos, cerca de 250 dólares por mês. Portanto, dos 150 milhões de brasileiros eleitores, 120 ganham menos de dois salários mínimos por mês.
4.  De outro lado, seis mil brasileiros têm rendimentos superiores a mais de 320 salários mensais. Acima de 40 salários são cerca de 300 mil brasileiros que podem participar do “Mercado” como investidores ou especuladores. Todavia, se poderia dizer que os que controlam o “Mercado” seriam os que declaram mais de 160 salários mínimos por mês, cerca de 20 mil indivíduos.
5.  O que se denomina de “Mercado” não é, certamente, portanto, o conjunto de consumidores, trabalhadores, capitalistas, altos executivos como se procura fazer acreditar.
6.  Esse projeto ultraneoliberal se fundamenta em premissas simples:
o    a iniciativa privada pode resolver todos os problemas brasileiros;
o    a iniciativa privada estrangeira é melhor do que a brasileira;
o    o Estado impede a ação eficiente da iniciativa privada ao:
§  cobrar impostos extorsivos;
§  proteger o Trabalho e prejudicar o Capital;
§  regulamentar em excesso as atividades econômicas;
§  distorcer a economia com a ação de suas empresas estatais;
§  causar a inflação;
§  gerar a corrupção;
§  inibir a iniciativa privada estrangeira.
§  aceitação, da teoria das vantagens comparativas para explicar a divisão internacional do trabalho entre nações industriais e nações produtoras/exportadoras de matérias primas, e do Brasil como tal;
§  o Brasil deve procurar se aproximar e se aliar a Estados poderosos do Ocidente e não a países subdesenvolvidos.
7.  O projeto do “Mercado” foi executado pelo Governo de Michel Temer através   de:
o    congelamento constitucional dos gastos públicos primários, em termos reais, por vinte anos;
o    prioridade absoluta ao pagamento do serviço da dívida pública;
o    não aumento dos impostos;
o    privatização de todas as empresas do Estado;  
o    abertura de todos os setores da economia a empresas estrangeiras, inclusive estatais;
o    reforma da legislação trabalhista, com eliminação de direitos, para reduzir o “custo” do trabalho;
o    política anti-inflacionária, de real valorizado e juros elevados, com desindustrialização;
o    redução dos impostos sobre os ricos e as empresas;
o    desregulamentação geral;
o    redução do Estado ao mínimo;
o    alinhamento político, militar e econômico com os Estados Unidos.
8.  Tais medidas, segundo os defensores desse projeto, seriam capazes de recuperar o grau de investimento conferido ao Brasil pelas agências internacionais de rating (classificação de risco) e a confiança dos investidores nacionais e estrangeiros, o que seria suficiente para gerar os investimentos necessários à retomada do crescimento.
9.  Ao contrário do esperado, essas políticas, aplicadas desde 2016, geraram 13 milhões de desempregados, mais de seis milhões de “desalentados”, sessenta milhões de endividados, a falência de centenas de milhares de empresas, a estagnação da economia, a deterioração da infraestrutura, a desindustrialização, a precarização dos sistemas de saúde e educação, a volta de doenças há décadas erradicadas e a desconfiança dos investidores, ainda atraídos somente pelos baixos preços dos ativos brasileiros e pelas altíssimas taxas de juros.
10.    A situação econômica contribuiu fortemente para a emergência de antagonismos sociais e para o desânimo, a descrença, o desespero, a violência.   
11.    A repulsa da população brasileira a essas políticas manifestou-se nos índices de popularidade de Michel Temer e de seu governo, inferiores a 5% nas mais conservadoras pesquisas de opinião.
12.    Mesmo assim, os candidatos a Presidente da República no primeiro turno das eleições em 7 de outubro, em especial Geraldo Alckmin, Henrique Meireles, Alvaro Dias e Marina Silva, tinham como principais assessores economistas neoliberais conhecidos, ligados ao sistema financeiro nacional e internacional, como Pérsio Arida, Paulo Rabelo, André Lara Rezende e Eduardo Gianetti, que consideravam necessário aprofundar as “reformas” e  as políticas de Temer.
13.    Além desses assessores formais, outros economistas importantes como Armínio Fraga, Pedro Malan e outros de menor presença na mídia declararam seu apoio a esse projeto econômico neoliberal como o único capaz de salvar o Brasil.
14.    O candidato defensor radical das políticas do “Mercado”, e por quem o “Mercado” trabalhou a partir de certo momento, através dos empresários, dos ruralistas, dos meios de comunicação e do Poder Judiciário, que “naturalizou” o processo eleitoral apesar de ter cassado os direitos políticos do ex-Presidente Lula, foi o candidato Jair Bolsonaro.
15.    O Presidente Jair Bolsonaro tem como seu principal assessor econômico Paulo Guedes, economista ultraneoliberal, formado pela Universidade de Chicago, porém de menor prestígio entre seus colegas de profissão.
16.    Jair Bolsonaro declarou repetidas vezes nada entender de economia e que seu orientador é Paulo Guedes, a quem devem, segundo ele, ser dirigidas todas as perguntas sobre economia.
17.    Jair Bolsonaro, eleito Presidente, e Paulo Guedes, designado superministro da Economia, já declararam ser necessário prosseguir, acelerar e aprofundar o projeto de Temer que é o projeto do “Mercado”.
18.    Ao lado dessa visão e desse projeto econômico ultraneoliberal do “Mercado” há um projeto social retrógrado para o Brasil, patrocinado por organizações religiosas, setores mais conservadores das elites e classes médias, cujas premissas poderiam ser assim resumidas:
o    a grande maioria da população brasileira, devido a suas condições econômicas e culturais, está sujeita a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas, comunistas etc. que fazem promessas irrealizáveis para conquistar e explorar o poder;
o    o Brasil é uma sociedade intrinsecamente corrupta;
o    todos os políticos e partidos são corruptos;
o    os governos se sustentam através da corrupção e da compra de votos;
o    a infração de direitos constitucionais e legais pelo Judiciário se justifica para combater a corrupção, inclusive as conduções coercitivas com espalhafato policial, as prisões por longos períodos, a extração de delações premiadas para reduzir penas excessivas e arbitrárias, o vazamento seletivo de denúncias sem provas;
o    a corrupção foi combatida pela Operação Lava Jato, comandada por juiz de primeira instância, que contou com a conivência, ou até mesmo a aprovação, às vezes entusiasta, de membros dos tribunais superiores;
o    as investigações da Lava Jato teriam “revelado” que o partido que promoveu a corrupção no sistema político brasileiro foi o PT, conduzido por Luiz Inácio Lula da Silva;
o    tornou-se, assim, um objetivo não só político, mas ético e moral, para combater a corrupção, principal mal da sociedade brasileira, impedir por todos os meios que o ex-Presidente Lula pudesse se candidatar e, iludindo o povo ingênuo, ser eleito e reimplantar os mecanismos de corrupção;    
o    uma das causas da corrupção na sociedade, na economia e na política brasileiras é o abandono dos valores tradicionais de família, de moral e de comportamento;
o    o abandono dos valores tradicionais se fez através de métodos de ensino permissivos, em especial nas escolas públicas, e pela chamada “revolução de costumes” promovida pelo Estado, dirigido pelo PT.
19.    As políticas a serem executadas para implantar este projeto social para o Brasil seriam, segundo seus defensores:
o    a “escola sem partido”;  
o    o ensino à distância;
o    a reforma despolitizadora do ensino com a não obrigatoriedade do ensino de filosofia, história e sociologia e o regresso da disciplina “Moral e cívica”;
o    o fim da “liberdade de cátedra”;
o    a permissão implícita de luta contra a liberdade de orientação sexual, até pelo exercício da violência individual;
o    a criminalização do aborto em qualquer circunstância;
o    a repressão implacável do consumo, tráfico e produção de qualquer tipo de droga;
o    a defesa do uso da violência policial extrema para combater a criminalidade;
o    o armamento geral da população civil;
o    a redução da idade mínima de responsabilidade penal para 16 e até 14 anos;
o    a restauração do controle masculino sobre a família e a mulher e a leniência na penalização da violência contra a mulher;
o    a censura a manifestações culturais não conservadoras;


20.    segundo projeto para o Brasil para atender às necessidades e às aspirações da enorme maioriado povo brasileiro, isto é, de cerca de 120 milhões de adultos e não apenas às dos mais ricos, do “Mercado”, cerca de 20 mil brasileiros, se fundamenta nas seguintes premissas:
o    a iniciativa privada nacional, cujo objetivo é maximizar o lucro e por não poder criar regras legais para a sociedade, não tem condições de enfrentar com êxito todos os desafios de uma sociedade como a brasileira;
o    a iniciativa privada estrangeira, pelas mesmas razões, às quais se acrescenta o fato de as megaempresas multinacionais agirem de acordo com sistemas de planejamento cujo objetivo é a maximização global de seus lucros, não se vinculam a projetos de desenvolvimento nacionais a não ser quando induzida pelo Estado;
o    o Estado também não é capaz de enfrentar sozinho estes desafios, mas pode criar condições de acumulação de capital e de investimento dinâmico para as atividades das empresas nacionais e estrangeiras na economia brasileira e gerar condições para a redução das disparidades sociais e das vulnerabilidades externas.
21.    O Brasil tem características e dimensões de território e clima, de população, de recursos naturais, de entorno geopolítico, de desenvolvimento industrial e tecnológico que o tornam capaz de vir a ser uma potência política e econômica mundial.
22.    O Brasil é uma sociedade complexa, caracterizada por enormes disparidades e concentração crescente de riqueza e renda; étnicas; de gênero; e regionais, agravadas pela estagnação econômica e pelas políticas de austeridade que levam ao desemprego, à desesperança, ao desespero e a manifestações violentas de preconceitos.
23.    O Brasil é caracterizado por graves vulnerabilidades externas, de natureza política, econômica, tecnológica, ideológica e militar.
24.    O Brasil não é uma sociedade desenvolvida, que estaria sendo atingida por fenômenos conjunturais de inflação, de corrupção, de ineficiência, de violência que poderiam ser enfrentados por solução simplistas de moralismo, de redução do Estado, de rigor policial, de sujeição da sociedade e do Estado à visão e aos interesses do Mercado e do capital estrangeiro.    
25.    A estratégia para o Brasil, para a enorme maioria do povo brasileiro, não pode ser uma estratégia simplista, definida por iluminados radicais, de controle absoluto da inflação, de metas fiscais extremas, de demolição do Estado, de desregulamentação geral, de abertura radical da economia, de redução do custo do trabalho, isto é, de redução de salários e de direitos do trabalhador, de alinhamento com os Estados Unidos, em resumo, de total liberdade ao capital, que chamam de “Mercado”.
26.    E de retorno, simultaneamente, aos valores sociais do Brasil do Século XIX, de opressão da mulher, de discriminação racial, de exploração total do trabalhador, da violência policial contra os pobres e trabalhadores, de privilégio aos poderosos, de educação e cultura censuradas e restritas, de economia e atraso agroexportador, de não industrialização, de total domínio do sistema político pelos mais ricos.
27.    O projeto para a maioria do povo deve ter como metas, a se realizarem com firmeza, prudência e pertinácia:
o    promover a democracia;
o    promover o desenvolvimento;
o    promover a justiça e a harmonia social;
o    promover a soberania.
28.    Essas quatro metas se encontram entrelaçadas. O sucesso gradual na luta por uma delas reforça a possibilidade de avançar nas outras e as reforça e o enfraquecimento na luta por uma delas enfraquece a possibilidade de sucesso na luta pelas demais.
29.    Promover a democracia significa ampliar a participação da cidadania nas atividades de legislar, administrar e julgar.
o    Ampliar a participação se faz pela mobilização popular, pela informação popular, pelo esclarecimento popular, pela participação popular.
o    Ampliar a participação no processo de legislar requer a participação da cidadania no funcionamento dos partidos e na escolha de candidatos, no debate de programas e na ampliação do período das campanhas eleitorais.
o    Ampliar a participação dos cidadãos na Administração requer sua participação na direção das agências reguladoras; instituir o sistema de recall (revogação de mandato) para os cargos eletivos e de indicação; implantar tempo mínimo obrigatório de audiências públicas para debater políticas antes de serem implantadas; estabelecer período mínimo de tramitação de projetos de lei no Congresso.
o    Ampliar a participação da cidadania no Poder Judiciário requer a eleição dos juízes de segunda instância, entre candidatos que tenham qualificação e experiência jurídicas e a possibilidade de seu recall (revogação de mandato).
o    Ampliar a participação do povo, que é soberano, na política, requer diversificar os meios de comunicação de massa, a partir da distribuição democrática de verbas de publicidade do Estado e da proibição de propriedade cruzada de meios (televisão, jornal, rádio, imprensa, etc).
30.    Promover o desenvolvimento significa executar políticas para aumentar o crescimento do PIB, em termos absolutos e per capita, e melhorar sua distribuição. 
o    Aumentar o crescimento do PIB requer qualificar a força de trabalho, fortalecer o capital nacional físico e financeiro, explorar os recursos naturais, fortalecer as funções reguladora e planejadora do Estado, disciplinar a participação do capital estrangeiro na economia, estimular o desenvolvimento tecnológico.
§  Qualificar a força de trabalho se faz por programas universais de segurança alimentar mínima, de saúde preventiva e saneamento básico e público, de educação pública, geral e gratuita, de treinamento profissional e desenvolvimento cultural, de fortalecimento dos Sindicatos.
§  O fortalecimento do capital físico requer integrar o mercado nacional pela construção da infraestrutura de transportes, comunicações e energia.
§  O fortalecimento do capital nacional físico (industrial, agrícola e comercial) se faz pelo crédito à produção compatível com índices razoáveis de lucratividade e pelo desenvolvimento tecnológico.
§  Fortalecer o capital nacional financeiro se faz aprovando legislação que aumente sua capacidade de resistir à especulação global e que estimule a redução de juros.
§  Explorar os recursos naturais do subsolo significa identificar sua existência no território e os explorar de forma sustentável.
§  Explorar racionalmente os recursos do solo requer a realização da reforma agrária.
§  Fortalecer o Estado significa recuperar o controle das empresas públicas, a começar pela Petrobras, e complementar a ação da iniciativa privada sempre que esta não for suficiente.
§  O ajuste fiscal deve ser feito também pelo lado da Receita, eliminando isenções e desonerações, tornando a tributação mais progressiva, combatendo a evasão fiscal e exercendo uma política estratégica da dívida pública.
§  Executar uma política tributária e de exportação que estimule as empresas de capital nacional a investir em pesquisa tecnológica.
§  Executar uma política cambial que estimule a industrialização e as exportações industriais.
§  Disciplinar a participação do capital estrangeiro significa estimular a implantação de unidades estrangeiras de tecnologia de ponta e o estabelecimento de metas de exportação para gerar divisas e reduzir a vulnerabilidade externa.
31.    Promover a justiça e a harmonia social significa reduzir as disparidades entre muito ricos e muito pobres, entre gêneros, entre etnias, entre regiões, e reduzir a violência na sociedade.
o    Reduzir as disparidades de renda entre muito ricos e muito pobres, em tempo razoável, depende da ação do Estado para ampliar as oportunidades de emprego, estimular a distribuição regional equilibrada dos investimentos públicos e privados, transformar o sistema tributário de regressivo em progressivo.
§  A ação do Estado para ampliar o emprego requer investimentos públicos e privados em atividades que podem ser mão-de-obra intensiva e estimular seu uso.
§  Estimular a distribuição regional equilibrada requer realizar investimentos públicos e estimular investimentos privados em municípios com índices de menor renda, por impostos diferenciados.
§  Reduzir as disparidades entre gêneros requer legislação que estabeleça quotas progressivas, por Ministério, para mulheres nos cargos superiores da administração e que estimule as empresas que pratiquem políticas e apresentem resultados no preenchimento de cargos de direção por mulheres.
§  Reduzir as disparidades entre etnias requer legislação que estabeleça quotas progressivas, por Ministério, para negros e afrodescendentes nos cargos superiores da administração e que estimule as empresas que pratiquem políticas e apresentem resultados no preenchimento de cargos de direção por negros e afrodescendentes.
§  Permitir o aborto legal nos casos de estupro e de deformação grave do feto.
§  Descriminalizar o consumo de drogas como a maconha e combater os grandes traficantes.
§  Reduzir a violência na sociedade requer a vigilância contra as manifestações e campanhas de promoção do preconceito racial, de sexo e regional nos meios de comunicação de massa e nas redes sociais e o cumprimento com rigor da legislação de punição à violência contra mulheres, afrodescendentes, crianças e idosos e promover o desarmamento.
32.    Promover a soberania significa fortalecer a capacidade da sociedade e do Estado de executar sua estratégia de desenvolvimento político, militar, econômico e social com o mínimo de restrições e interferências externas.
o    A soberania requer o exercício de uma política externa
§  de diversificação, de forma equilibrada, de relações políticas, militares, econômicas e tecnológicas com os países vizinhos da América do Sul e África e com as principais potências políticas e econômicas, qualquer que seja seu regime político ou econômico;
§  que, devido à localização geográfica e às dimensões relativas do Brasil na América do Sul, se guie, de modo rigoroso, pelos princípios de não-intervenção e autodeterminação;
§  que não aceite sob nenhum disfarce a existência de enclave estrangeiro (bases) no território brasileiro;
§  que não participe de acordos internacionais que limitem a capacidade do Estado brasileiro de promover a democracia, o desenvolvimento e a justiça social;
§  de promoção da integração econômica e da cooperação política e econômica na América do Sul;
§  de promoção da participação do Brasil, em melhores condições, nos níveis de decisão dos organismos internacionais, a partir do Conselho de Segurança.
o    A soberania requer o estabelecimento de limites legais à participação do capital estrangeiro em setores de atividade econômica.
o    A soberania requer uma política militar de construção de capacidade dissuasória em termos de doutrina militar e de equipamentos necessários à defesa do território e das fronteiras, do espaço aéreo e da zona marítima de jurisdição brasileira.
§  A construção da capacidade dissuasória requer garantir recursos de longo prazo para os projetos estratégicos nas áreas cibernética, nuclear e aeroespacial.

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07 de novembro de 2018
(*) Samuel Pinheiro Guimarães é ex-secretário-geral do Itamaraty (2003-2009) ex-ministro de Assuntos Estrat´égicos (2009-2010).