terça-feira, 31 de março de 2020

FERNANDO BRITO: FORA COM OS ZUMBIS!

Do Tijolaço.

É preciso expulsar os zumbis das ruas


Acabo de assistir – e participar dela, sem nenhum prazer – uma cena inacreditável.

Uma bolsonarista, com um alto-falante, dizendo que as pessoas deveria ir para o trabalho para não morrerem de fome.

Que haverá caos social se as medidas de Estados e Prefeituras forem obedecida e o comércio ficar fechado.

Era aqui, na rua que dá acesso a uma comunidade de gente simples, o Morro Azul, no Flamengo.

Cardíaco ou não, fui à janela gritar que ela enviasse à rua a sua mãe e o seu pai, para que morressem mais depressa ou se ela, como boa filha, ia levar-lhes o vírus “de presente”.

Pulmões ainda plenos, com ar para vencer o sonzinho mixuruca de lata.
Uma a uma foram surgindo as vozes das janelas.
“Assassina, assassina!”

Foram tantas que ela se calou e foi embora, com seu alto-falante da morte.

Essa gente, em nome da vida, tem de ser posta a correr.

Eles não estão só negando a ciência, a medicina, a lógica e o bom senso. Estão negando a vida humana.

Não deixe que eles matem pessoas.

Se o que lhe resta é a janela, use a janela.

Causar a morte de centenas ou milhares de seres humanos não é liberdade de expressão ou democracia: é genocídio.

Estamos na mão de gente cruel, homicida, fria.

Temos os meios, mas a “emergência” está presa nos burocratas e os planos são de garfar os salários dos que têm trabalho, em lugar de impedir sua demissão, o que de resto vai acontecer inapelavelmente.

E o dinheiro? Água no feijão (emissão), porque tem de estar no prato de todos. Depois, taxem-se os que têm muito, muitíssimo.

Vá à janela, meu irmão e minha irmã, lute pela vida!

segunda-feira, 30 de março de 2020

NOAM CHOMSKY SOBRE A CRISE E O DESASTRE ATUAIS

Inclusive o coronavirus. Do site Carta Maior, já reproduzido no jornal GGN

Não podemos deixar o COVID-19 nos levar ao autoritarismo

 

22/03/2020 13:41
As mãos do presidente Trump são vistas enquanto ele fala à imprensa após uma reunião com representantes do setor de enfermagem sobre a resposta ao COVID-19, na Casa Branca em Washington, D.C., em 18 de março de 2020. (Brendan Smialowski/AFP via Getty Images)
Créditos da foto: As mãos do presidente Trump são vistas enquanto ele fala à imprensa após uma reunião com representantes do setor de enfermagem sobre a resposta ao COVID-19, na Casa Branca em Washington, D.C., em 18 de março de 2020. (Brendan Smialowski/AFP via Getty Images)
Enquanto a pandemia do COVID-19 revira a ordem política e econômica global, dois futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro, as sociedades que enfrentam o tributo imposto pelo vírus podem entrar em colapso no autoritarismo. Mas no outro extremo do espectro, temos a possibilidade de aprender as lições com esse desastre - outra colossal falha de mercado aprimorada por um ataque neoliberal e agora pela bola de demolição de Trump.

A crise atual oferece um argumento poderoso em favor da assistência universal à saúde e da reavaliação dos problemas mais profundos de nossas sociedades. O resultado que prevalecerá depende da força da opinião pública despertada, conforme descrito nos exemplos a seguir, que são adaptados, para esse artigo para a Truthout, do meu livro Internationalism or Extinction.

Se me permitem, gostaria de começar com uma breve reminiscência de um período que é estranhamente semelhante a hoje em muitos aspectos desagradáveis. Estou pensando em 80 anos atrás. Por acaso, foi o momento do primeiro artigo que me lembro de ter escrito sobre questões políticas. Fácil de datar: foi logo após a queda de Barcelona, em fevereiro de 1939.

O artigo era sobre o que parecia ser a disseminação inexorável do fascismo pelo mundo. Em 1938, a Áustria havia sido anexada pela Alemanha nazista. Alguns meses depois, a Tchecoslováquia foi traída, colocada nas mãos dos nazistas na Conferência de Munique.

Na Espanha, uma cidade após a outra estava caindo nas forças de Franco. Em fevereiro de 1939, Barcelona caiu. Esse foi o fim da República Espanhola. A notável revolução popular, revolução anarquista, de 1936, 1937, 1938, já havia sido esmagada pela força. Parecia que o fascismo se espalharia sem ter fim.

Não é exatamente o que está acontecendo hoje, mas, se pudermos emprestar a famosa frase de Mark Twain, "A história não se repete, mas às vezes rima" - muitas semelhanças para se ignorar. Quando Barcelona caiu, houve uma enorme inundação de refugiados da Espanha.

A maioria foi para o México, cerca de 40.000. Alguns foram para a cidade de Nova York, estabeleceram escritórios anarquistas na Union Square, sebos na 4th Avenue. Foi aí que recebi minha educação política inicial, perambulando por essa área. Isso foi há 80 anos. Agora é hoje.

Não sabíamos na época, mas o governo dos EUA também estava começando a pensar que na virtual impossibilidade de conter a disseminação do fascismo. Eles não o viam com o mesmo alarme que eu quando tinha 10 anos de idade. Agora sabemos que a atitude do Departamento de Estado era bastante dúbia em relação ao significado do movimento nazista.

Na verdade, havia um cônsul em Berlim, o cônsul dos EUA em Berlim, que estava enviando comentários bastante inconsistentes sobre os nazistas, sugerindo que talvez eles não fossem tão ruins quanto todo mundo dizia. Ele ficou lá até o dia do ataque de Pearl Harbor, quando foi exonerado - o famoso diplomata chamado George Kennan. Não é uma má indicação da atitude dúbia em relação a esses desenvolvimentos. Acontece que, não poderia saber na época, mas logo depois disso, em 1939, o Departamento de Estado e o Conselho de Relações Exteriores começaram a planejar o mundo pós-guerra, como seria o mundo pós-guerra.

E nos primeiros anos, exatamente naquela época, nos anos seguintes, eles assumiram que o mundo do pós-guerra seria dividido entre um mundo controlado pelos alemães, um mundo controlado pelos nazistas, a maior parte da Eurásia, e um mundo controlado pelos EUA, que incluiria o Hemisfério Ocidental, o antigo Império Britânico - que os EUA assumiriam partes do Extremo Oriente. E esse seria o formato do mundo pós-guerra. Agora, sabemos que essas opiniões foram mantidas até que os russos mudassem a maré.

Stalingrado, 1942–1943, a enorme batalha de tanques em Kursk, pouco depois, deixou bem claro que os russos derrotariam os nazistas. O planejamento mudou. A imagem do mundo pós-guerra mudou e passou para o que vimos no último período desde aquela época. Bem, isso foi há 80 anos.

Hoje não estamos enfrentando a ascensão de algo como o nazismo, mas estamos enfrentando a expansão do que às vezes é chamado de internacional reacionária ultranacionalista. A aliança no Oriente Médio consiste dos estados reacionários extremistas da região - Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, sob a ditadura mais brutal de sua história, Israel no centro - confrontando o Irã.

Existem ameaças graves que estamos enfrentando na América Latina. A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil colocou no poder o ultranacionalismo de direita mais extremo, mais ultrajante que agora assola o hemisfério. Lenín Moreno, do Equador, deu um grande passo em direção à união da extrema-direita expulsando Julian Assange da embaixada . Ele foi rapidamente preso pelo Reino Unido e enfrenta um futuro muito perigoso, a menos que haja um significativo protesto popular. O México é uma das raras exceções na América Latina a esses desenvolvimentos. Na Europa Ocidental, os partidos de direita estão crescendo, alguns deles de caráter muito assustador.

Há também contradesenvolvimentos. Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, um indivíduo muito significativo e importante, junto com Bernie Sanders, pediu a formação de uma Internacional Progressista para combater a internacional de direita que está se desenvolvendo. No nível dos estados, o equilíbrio parece esmagadoramente na direção errada.

Mas os estados não são as únicas entidades. No nível das pessoas, é bem diferente. E isso pode fazer a diferença. Isso significa a necessidade de proteger as democracias em funcionamento, de aprimorá-las, de aproveitar as oportunidades que elas oferecem, para os tipos de ativismo que levaram a progressos significativos no passado e que poderão nos salvar no futuro.

Quero fazer algumas observações abaixo sobre a grave dificuldade de manter e instituir a democracia, as forças poderosas que sempre se opuseram a ela, as façanhas de por algum modo forma salvá-la e melhorá-la, e a significância disso para o futuro.

Mas primeiro, algumas palavras sobre os desafios que enfrentamos, sobre os quais você já ouviu falar o suficiente e todos sabem. Não preciso entrar neles em detalhes.

Descrever esses desafios como “extremamente graves” seria um erro. A frase não captura a enormidade dos tipos de desafios que temos pela frente. E qualquer discussão séria sobre o futuro da humanidade deve começar por reconhecer um fato crítico, que a espécie humana agora enfrenta uma questão que nunca havia surgido na história da humanidade, uma pergunta que precisa ser respondida rapidamente: a sociedade humana sobreviverá por muito tempo?

Bem, como todos sabem, há 70 anos vivemos sob a sombra da guerra nuclear. Aqueles que analisaram os registros só podem se surpreender com o fato de termos sobrevivido até agora. Vez após outra, o desastre terminal tem ficado extremamente próximo, a alguns minutos de distância. É um milagre que tenhamos sobrevivido. Milagres não duram para sempre.

Isso tem que ser interrompido e rapidamente. A recente Revisão da Postura Nuclear [Nuclear Posture Review] do governo Trump aumenta drasticamente a ameaça de conflagração, que seria de fato terminal para a espécie. Podemos lembrar que esta Revisão da Postura Nuclear foi patrocinada por Jim Mattis, que era considerado civilizado demais para ser mantido no governo.

Havia três tratados principais de armas: o Tratado ABM, Tratado de Mísseis Antibalísticos; o Tratado INF, Forças Nucleares Intermediárias; o novo tratado START.

Os EUA se retiraram do Tratado ABM em 2002. E qualquer um que acredite que mísseis antibalísticos são armas defensivas esta iludido com a natureza desses sistemas. Os EUA acabaram de sair do Tratado INF, estabelecido por Gorbachev e Reagan em 1987, que reduziu drasticamente a ameaça de guerra na Europa, que se espalharia muito rapidamente.

Manifestações públicas maciças foram o pano de fundo para levar a um tratado que fez uma diferença muito significativa. Vale lembrar desse e de muitos outros casos em que o ativismo popular significativo fez uma enorme diferença. As lições são óbvias demais para enumerar. O governo Trump retirou-se do Tratado INF. Os russos se retiraram logo depois.

Se você der uma olhada mais de perto, verá que cada um dos lados tem uma argumentação credível, dizendo que o oponente não cumpriu o tratado. Para aqueles que querem uma imagem de como os russos podem olhar para a situação, o Bulletin of Atomic Scientists, o principal periódico sobre questões de controle de armas, publicou recentemente um artigo de Theodore Postol, destacando o quão perigosas são as instalações americanas de mísseis antibalísticos na fronteira com a Rússia - quão perigosos eles são e podem ser percebidos pelos russos. Observem, na fronteira com a Rússia. As tensões estão aumentando.

Ambos os lados estão realizando ações provocativas. Em um mundo racional, o que aconteceria seriam negociações entre os dois lados, com especialistas independentes para avaliar as acusações que cada um está fazendo contra o outro, para levar a uma resolução dessas acusações, para restaurar o tratado. Isso seria num mundo racional. Infelizmente, porém, não é o mundo em que vivemos. Nenhum esforço foi feito nesse sentido. E não será, a menos que haja pressão significativa.

Bem, resta o novo tratado START. O novo tratado START já foi designado pela figura responsável (que se descreveu modestamente como o maior presidente da história americana) como o pior tratado que já aconteceu na história da humanidade, a designação usual para qualquer coisa que tenha sido feita por seus antecessores.

Trump acrescentou que precisamos nos livrar dele. Na verdade, o tratado entra em renovação logo após a próxima eleição, muito estará em jogo. Muito estará em jogo na questão da renovação desse tratado. Ele conseguiu reduzir significativamente o número de armas nucleares, muito acima do que deveriam ser, mas muito abaixo do que eram antes. E poderia continuar.

Enquanto isso, o aquecimento global prossegue em seu curso inexorável. Durante este milênio, cada ano, com uma exceção, foi mais quente do que o anterior. Existem trabalhos científicos recentes, de James Hansen e outros, que indicam que o ritmo do aquecimento global, que vem aumentando desde 1980, pode estar aumentando acentuadamente e pode passar de um crescimento linear para um crescimento exponencial, o que significa dobrar a cada duas décadas.

Já estamos nos aproximando das condições de 125.000 anos atrás, quando o nível do mar era cerca de 10 metros mais alto do que é hoje. Com o derretimento, o derretimento rápido, dos enormes campos de gelo da Antártica, esse ponto pode ser alcançado. As consequências disso são quase inimagináveis. Quer dizer, nem vou tentar descrevê-las, mas vocês podem descobrir rapidamente o que isso significa.

Enquanto isso acontece, você lê regularmente relatos eufóricos da imprensa sobre como os Estados Unidos estão avançando na produção de combustíveis fósseis. Agora ultrapassamos a Arábia Saudita. Estamos na liderança da produção de combustíveis fósseis. Os grandes bancos, JPMorgan Chase e outros, estão despejando dinheiro em novos investimentos em combustíveis fósseis, incluindo os mais perigosos, como as areias betuminosas do Canadá. E tudo isso é apresentado com grande euforia, com excitação. Agora estamos alcançando a "independência energética". Podemos controlar o mundo, determinar o uso de combustíveis fósseis no mundo.

Apenas uma palavra sobre qual é o significado disso, o que é bastante óbvio. Não é que os repórteres, comentaristas não saibam disso, que os CEOs dos bancos não saibam disso. Claro que eles sabem. Mas essas são pressões institucionais das quais é extremamente difícil se livrar. Tente colocar-se na posição de, digamos, o CEO do JPMorgan Chase, o maior banco, que está direcionando grandes somas para investimentos em combustíveis fósseis. Ele certamente sabe tudo o que todos sabem sobre o aquecimento global. Não é segredo.

Mas quais são suas escolhas? Basicamente, ele tem duas opções. Uma opção é fazer exatamente o que ele está fazendo. A outra opção é renunciar e ser substituído por outra pessoa que fará exatamente o que está fazendo. Não é um problema individual. É um problema institucional que pode ser resolvido, mas apenas sob tremenda pressão pública.

E vimos recentemente, de maneira muito dramática, como a solução pode ser alcançada. Um grupo de jovens, o Movimento Sunrise, organizado, chegou ao ponto de se sentar nos escritórios do Congresso e despertou algum interesse das novas figuras progressistas que conseguiram chegar ao Congresso. Sob muita pressão popular, a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, acompanhada pelo senador Ed Markey, colocou o Green New Deal na agenda.

Essa é uma conquista notável. É claro que o plano recebeu ataques hostis de todos os lados: isso não importa. Alguns anos atrás, era inimaginável que fosse discutido. Como resultado do ativismo desse grupo de jovens, ele está agora no centro da agenda. Ele precisa ser implementado de uma forma ou de outra. É essencial para a sobrevivência, talvez não exatamente dessa forma, mas com algumas modificações.

Enquanto isso, o Relógio do Juízo Final do Boletim de Cientistas Atômicos, em janeiro passado, estava marcado para dois minutos para meia-noite. É o ponto mais próximo do desastre terminal desde 1947. O anúncio desse horário – desse cenário - mencionou as duas principais ameaças conhecidas: a ameaça da guerra nuclear, que está aumentando, e a ameaça do aquecimento global, que está aumentando ainda mais. E acrescentou uma terceira ameaça pela primeira vez: o enfraquecimento da democracia. Essa é a terceira ameaça, junto com o aquecimento global e a guerra nuclear.

E isso foi bastante apropriado, porque o funcionamento da democracia oferece a única esperança de superar essas ameaças. Eles não serão tratados pelas principais instituições, estatais ou privadas, agindo sem pressão pública maciça, o que significa que os meios de funcionamento democrático devem ser mantidos vivos, usados da maneira que o Movimento Sunrise fez, da maneira como a grande massa demonstração no início dos anos 80, e da maneira como continuamos hoje.

O novo coronavírus está causando uma calamidade hedionda - que estava prevista e poderia ter sido evitada. Análises credíveis, de cenários extremos possíveis, avaliam que milhões podem morrer, e como sempre, com os pobres e mais vulneráveis sofrendo mais no mundo inteiro. Houve outras catástrofes de saúde na história humana. A "Peste Negra" matou pelo menos um terço da população da Europa, que se recuperou. Também haverá recuperação neste caso, a um custo humano terrível.

Também enfrentamos outras ameaças, que são incomparavelmente mais graves, mesmo que não sejam tão perturbadoras para a vida cotidiana - hoje. Uma é a ameaça de destruição praticamente total pela guerra nuclear, que é ameaçadora e crescente. Outra é a ameaça de uma catástrofe ambiental, que é iminente e devastadora.

Não haverá recuperação. E não há tempo a perder ao tratar decisivamente com as ameaças.

Diante da imensa tragédia do COVID-19, pode parecer cruel para colocar a calamidade em perspectiva, e também instar uma busca por suas raízes. Mas o realismo é, no entanto, imperativo, pelo menos se esperamos evitar mais desastres.

Na raiz estão colossais falhas de mercado e malignidades mais profundas da ordem socioeconômica, elevadas da crise ao desastre pelo capitalismo brutal da era neoliberal. Questões que valem a pena considerar, particularmente no país mais poderoso da história mundial, que enfrenta a decisão de permitir ou não que o aríete continue a ser brandido com força devastadora total.


*Publicado originalmente em 'Truth Out' | Tradução de César Locatelli

O CZAR CHINÊS DO COMBATE À PANDEMIA DÁ ENTREVISTA

Concedida à revista Science.

 

Em Wuhan, China, pessoas com casos leves de COVID-19 foram levadas para grandes instalações e não tinham permissão para ver suas famílias. “Pessoas infectadas devem estar isoladas. Isso deve acontecer em qualquer lugar ”, diz George Gao.
STR / AFP via Getty Images
 

Não usar máscaras para proteger contra o coronavírus é um "grande erro", diz o principal cientista chinês



Por Jon Cohen
Mar. 27, 2020, 18:15
Os relatórios COVID-19 da Science são apoiados pelo Pulitzer Center.

Cientistas chineses na fronte do surto de doença por coronavírus em 2019 (COVID-19) naquele país não estiveram  particularmente acessíveis à mídia estrangeira. Muitos ficaram sobrecarregados tentando entender sua epidemia e combatê-la, e responder a solicitações da mídia, especialmente de jornalistas fora da China, não tem sido uma prioridade.

A revista Science vinha tentando entrevistar George Gao, diretor-geral do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), por 2 meses. Na semana passada, ele respondeu.
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Gao supervisiona 2000 funcionários - um quinto do tamanho da equipe dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA - e continua sendo um pesquisador ativo ele mesmo. Em janeiro, ele fazia parte de uma equipe que fez o primeiro isolamento e sequenciamento da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), o vírus que causa o COVID-19. Ele foi coautor de dois artigos amplamente lidos publicados no New England Journal of Medicine (NEJM), que forneceram em detalhe alguns dos primeiros aspectos epidemiolólicos e clínicos da doença, e publicou mais três artigos sobre o COVID-19 no The Lancet.

Sua equipe também forneceu dados importantes para uma comissão conjunta entre pesquisadores chineses e uma equipe de cientistas internacionais, organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que escreveu um relatório histórico depois de visitar o país para entender a resposta à epidemia.

Primeiro treinado como veterinário, Gao mais tarde obteve um Ph.D. em bioquímica na Universidade de Oxford e pós-doutorado lá e na Universidade de Harvard, especializado em imunologia e virologia. Sua pesquisa é especializada em vírus que possuem membranas lipídicas frágeis chamadas envelopes - um grupo que inclui o SARS-CoV-2 - e como eles entram nas células e também se movem entre as espécies.

Gao respondeu às perguntas da Science por vários dias por meio de texto, mensagens de voz e conversas telefônicas. Esta entrevista foi editada por questões de concisão e clareza.
 

George Gao, chefe do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças
Stephane AUDRAS / REA / Redux


P: O que outros países podem aprender da maneira como a China abordou o COVID-19?

R: O distanciamento social é a estratégia essencial para o controle de quaisquer doenças infecciosas, especialmente se forem infecções respiratórias. Primeiro, usamos "estratégias não farmacêuticas", porque você não tem inibidores ou medicamentos específicos e não tem vacinas. Segundo, você deve certificar-se de isolar os casos. Terceiro, os contatos próximos devem estar em quarentena: gastamos muito tempo tentando encontrar todos esses contatos próximos e para garantir que eles estejam em quarentena e isolados. Quarto, suspenda reuniões públicas. Quinto, restrinja o movimento, e é por isso que você tem um bloqueio, o cordon sanitaire em francês.

P: O bloqueio na China começou em 23 de janeiro em Wuhan e foi expandido para cidades vizinhas na província de Hubei. Outras províncias da China tiveram paradas menos restritivas. Como tudo isso foi coordenado e qual a importância dos “supervisores” supervisionando os esforços nos bairros?

A: Você precisa ter entendimento e consenso. Para isso, você precisa de uma liderança muito forte, em nível local e nacional. Você precisa de um supervisor e coordenador que trabalhe com o público muito de perto. Os supervisores precisam saber quem são os contatos próximos e quem são os casos suspeitos. Os supervisores da comunidade devem estar muito alertas. Eles são fundamentais.

P: Que erros estão cometendo outros países?

R: O grande erro nos EUA e na Europa, em minha opinião, é que as pessoas não estão usando máscaras. Este vírus é transmitido por gotículas e contato próximo. Gotas desempenham um papel muito importante - você precisa usar uma máscara, porque quando você fala, sempre há gotas saindo da sua boca. Muitas pessoas têm infecções assintomáticas ou pré-sintomáticas. Se eles estão usando máscaras, pode impedir que gotículas que transportam o vírus escapem e infectem outras pessoas.

P: E quanto a outras medidas de controle? A China fez uso agressivo de termômetros nas entradas de lojas, prédios e estações de transporte público, por exemplo.

R: Sim. Onde quer que você vá na China, existem termômetros. Você deve tentar medir a temperatura das pessoas o mais rápido possível para garantir que quem tem febre alta
fique de fora.

E uma questão realmente importante é a estabilidade do vírus no ambiente. Por ser um vírus envolto, as pessoas pensam que ele é frágil e particularmente sensível à temperatura ou umidade da superfície. Mas, a partir dos resultados dos EUA e dos estudos chineses, parece que é muito resistente à destruição em algumas superfícies. Pode ser capaz de sobreviver em muitos ambientes. Precisamos ter respostas baseadas em ciência aqui.

P: As pessoas que apresentaram resultado positivo em Wuhan, mas que apenas apresentavam doenças leves, foram colocadas em isolamento em grandes instalações e não tiveram permissão para receber visitas da família. Isso é algo que outros países devem considerar?

A: As pessoas infectadas devem estar isoladas. Isso deve acontecer em todo lugar. Você só pode controlar o COVID-19 se conseguir remover a fonte da infecção. É por isso que construímos hospitais modulares e transformamos estádios em hospitais.

P: Há muitas perguntas sobre a origem do surto na China. Pesquisadores chineses relataram que o primeiro caso data de 1 de dezembro de 2019. O que você acha do relatório do South China Morning Post que diz que dados do governo chinês mostram que houve casos em novembro de 2019, com o primeiro em 17 de novembro ?

R: Não há evidências sólidas para dizer que já tínhamos grupos em novembro. Estamos tentando entender melhor a origem.

P: As autoridades de saúde de Wuhan vincularam um grande conjunto de casos ao mercado de frutos do mar de Huanan e o fecharam em 1º de janeiro. A suposição era que um vírus havia pulado para os seres humanos de um animal vendido e possivelmente cortado no mercado. Mas em seu artigo no NEJM, que incluiu uma análise retrospectiva de casos, você relatou que quatro das cinco primeiras pessoas infectadas não tinham vínculos com o mercado de frutos do mar. Você acha que o mercado de frutos do mar era um provável local de origem ou é uma distração - um fator amplificador, mas não a fonte original?

R: Essa é uma pergunta muito boa. Você está trabalhando como um detetive. Desde o início, todo mundo pensou que a origem era o mercado. Agora, acho que o mercado poderia ser o local inicial, ou poderia ser um local onde o vírus foi amplificado. Então essa é uma questão científica. Existem duas possibilidades.

P: A China também foi criticada por não compartilhar a sequência viral imediatamente. A história sobre um novo coronavírus foi publicada no The Wall Street Journal em 8 de janeiro; não veio de cientistas do governo chinês. Por que não?

R: Esse foi um palpite muito bom do The Wall Street Journal. A OMS foi informada sobre a sequência e acho que o tempo entre o artigo exibido e o compartilhamento oficial da sequência foi de algumas horas. Não acho que seja mais de um dia.

P: Mas um banco de dados público de seqüências virais mostrou mais tarde que o primeiro foi enviado por pesquisadores chineses em 5 de janeiro. Portanto, houve pelo menos três dias que você deve saber que havia um novo coronavírus. Não vai mudar o curso da epidemia agora, mas, para ser sincero, aconteceu algo sobre relatar a sequência publicamente.

R: Eu acho que não. Compartilhamos as informações prontamente com colegas científicos, mas isso envolvia saúde pública e tivemos que esperar que os formuladores de políticas anunciassem publicamente. Você não quer que o público entre em pânico, certo? E ninguém em nenhum país poderia prever que o vírus causaria uma pandemia. Esta é a primeira pandemia de não-gripe de todos os tempos.


P: Só em 20 de janeiro os cientistas chineses disseram oficialmente que havia evidências claras de transmissão de humano para humano. Por que você acha que os epidemiologistas na China tiveram tanta dificuldade em perceber que isso estava ocorrendo?

R: Dados epidemiológicos detalhados ainda não estavam disponíveis. E estávamos enfrentando um vírus muito louco e oculto desde o início. O mesmo acontece na Itália, em outros lugares da Europa e nos Estados Unidos: desde o início dos cientistas, todos pensavam: "Bem, é apenas um vírus".

P: A propagação na China diminuiu rapidamente e os novos casos confirmados são principalmente pessoas que entram no país, correto?

R: Sim. No momento, não temos transmissão local, mas o problema para a China agora são os casos importados. Muitos viajantes infectados estão entrando na China.

P: Mas o que acontecerá quando a China voltar ao normal? Você acha que um número suficientge de pessoas pessoas foram infectadas para que a imunidade de rebanho mantenha o vírus sob controle?

R: Definitivamente ainda não temos imunidade de rebanho. Mas estamos aguardando resultados mais definitivos dos testes de anticorpos que podem nos dizer quantas pessoas realmente foram infectadas.

Q: Então, qual é a estratégia agora? Está ganhando tempo para encontrar medicamentos eficazes?

R: Sim - nossos cientistas estão trabalhando com vacinas e medicamentos.

P: Muitos cientistas consideram o remdesivir a droga mais promissora atualmente em teste. Quando você acha que os ensaios clínicos na China sobre o medicamento terão dados?

A: Em abril.

P: Os cientistas chineses desenvolveram modelos animais que você considera robustos
o suficiente para estudar a patogênese e testar medicamentos e vacinas?

R: No momento, estamos usando macacos e camundongos transgênicos que possuem o ACE2, o receptor humano do vírus. O modelo de camundongo é amplamente usado na China para avaliação de medicamentos e vacinas, e acho que há pelo menos alguns artigos publicados sobre os modelos de macacos em breve. Posso dizer que nosso modelo de macacos funciona.

P: O que você acha do presidente Donald Trump se referindo ao novo coronavírus como o "vírus da China" ou o "vírus chinês"?

R: Definitivamente, não é bom chamá-lo de vírus chinês. O vírus pertence à Terra. O vírus é nosso inimigo comum - não o inimigo de alguma pessoa ou país.
 



doi: 10.1126 / science.abb9368
Jon Cohen
Jon Cohen
 

DAVID HARVEY SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL E O CAPITALISMO

Tava no Brasil 247. Artigo longo, mas como é muito bem escrito, fica leve. Vale a pena ler!

Política anticapitalista na época do COVID-19

O Covid-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça. Embora os esforços de mitigação estejam ocultos na retórica de que “estamos todos juntos”, as práticas, particularmente dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras. 


(Foto: Reuters)
O Covid-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça. Embora os esforços de mitigação estejam ocultos na retórica de que “estamos todos juntos”, as práticas, particularmente dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras.

Quando tento interpretar, entender e analisar o fluxo diário de notícias, tendo a identificar o que acontece no contexto de dois modelos diferentes, mas entrelaçados, de como o capitalismo funciona. O primeiro nível é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital, à medida que o valor do dinheiro flui em busca de lucro através dos diferentes “momentos” (como Marx os chama) de produção, realização (consumo ), distribuição e reinvestimento. Este é um modelo da economia capitalista como uma espiral de expansão e crescimento infindo.

Torna-se bastante complicado à medida que se desenrola através de, por exemplo, rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais, instituições financeiras, políticas estatais, reconfigurações tecnológicas e a rede em constante mudança da divisão do trabalho e das relações sociais. No entanto, imagino que esse modelo esteja incorporado em um contexto mais amplo de reprodução social (em lares e comunidades), em uma relação metabólica contínua e em constante evolução com a natureza (incluindo a “segunda natureza” da urbanização e do entorno construído) e todos os tipos de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e contingentes que as populações humanas geralmente criam no espaço e no tempo.

Esses últimos “momentos” incorporam a expressão ativa das vontades, necessidades e desejos humanos, a paixão pelo conhecimento e significado e a busca evolutiva pela realização em um contexto de mudanças nos arranjos institucionais, disputas políticas, confrontos ideológicos, perdas, derrotas, frustrações e alienações. Esse segundo modelo constitui, por assim dizer, minha compreensão funcional do capitalismo global como uma formação social distinta, enquanto o primeiro lida com as contradições dentro do mecanismo econômico que impulsiona essa formação social ao longo de certos caminhos de sua evolução histórica e geográfica.

Quando, em 26 de janeiro de 2020, li pela primeira vez sobre um coronavírus que estava ganhando terreno na China, pensei imediatamente nas implicações para a dinâmica global de acumulação de capital. A partir dos meus estudos sobre o modelo econômico, sabia que bloqueios e interrupções na continuidade dos fluxos de capital levariam a recessões e que, se as recessões fossem amplas e profundas, isso sinalizaria o início de crises. Igualmente sabia muito bem que a China é a segunda maior economia do mundo e que havia efetivamente resgatado o capitalismo global após 2007/2008, portanto, qualquer golpe na economia da China teria sérias consequências para uma economia global que já se encontrava em condições lamentáveis.

O modelo existente de acumulação de capital já apresentava muitos problemas. Movimentos de protesto ocorreram em quase todos os lugares (de Santiago a Beirute), muitos dos quais focados no fato de que o modelo econômico dominante não funcionou para a grande maioria da população. Esse modelo neoliberal é cada vez mais baseado em capital fictício, e em uma vasta expansão na oferta de moeda e na criação de dívidas. Já se enfrenta o problema da demanda efetiva insuficiente para realizar a massa de valor que o capital é capaz de produzir.

Então, como o modelo econômico dominante, com seu déficit de legitimidade e saúde delicada, poderia absorver e sobreviver aos impactos inevitáveis de uma pandemia? A resposta depende em grande parte de quanto tempo a interrupção pode durar e se estender, pois, como apontou Marx, a recessão não ocorre porque os bens não podem ser vendidos, mas porque não podem ser vendidos no prazo e a tempo.

Há muito tempo rejeito a ideia de “natureza” como algo externo e separado da cultura, economia e vida cotidiana. Adoto uma visão mais dialética e relacional da interação metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de consequências intencionais (como as mudanças climáticas) e de forças evolutivas autônomas e independentes que constantemente remodelando as condições ambientais. Deste ponto de vista, não há um desastre verdadeiramente natural. Os vírus sofrem mutação o tempo todo para ficarem seguros. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna ameaçadora à vida dependem das ações humanas.

Existem dois aspectos relevantes para isso. Primeiro, condições ambientais favoráveis aumentam a probabilidade de mutações vigorosas. Por exemplo, é plausível esperar que sistemas intensivos ou instáveis de suprimento de alimentos em climas subtropicais úmidos possam contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo a China ao sul de Yangtse e o Sudeste Asiático. Em segundo lugar, as condições que favorecem a transmissão rápida através dos corpos do hospedeiro variam muito. Populações humanas de alta densidade parecem ser um alvo fácil para o hospedeiro. É sabido que as epidemias de sarampo, por exemplo, apenas florescem nos centros urbanos de grande concentração populacional, mas desaparecem rapidamente nas regiões pouco populosas. A forma como os seres humanos interagem, se movem, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos também afeta a forma como as doenças são transmitidas.

Nos últimos tempos, a SARS, a gripe aviária e a suína parecem ter saído da China ou do Sudeste Asiático. A China também sofreu muito com a peste suína no ano passado, implicando no abate em massa de porcos e o aumento dos preços da carne suína. Não estou dizendo tudo isso para acusar a China. Existem muitos outros lugares onde os riscos ambientais para mutação e disseminação viral são altos. A gripe espanhola de 1918 pode ter saído do Kansas, a África pode ter incubado o HIV/AIDS e, certamente, o ebola começou no Nilo Ocidental, enquanto a dengue parece florescer na América Latina. Porém, os impactos econômicos e demográficos da propagação do vírus dependem das fendas e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico.

Não fiquei muito surpreso ao saber que o COVID-19 tenha sido encontrado inicialmente em Wuhan (embora não se saiba se originou-se lá). Claramente, os efeitos locais são substanciais e, como esse era um centro de produção relevante, provavelmente haveria repercussões econômicas globais (embora ainda não tenhamos ideia da magnitude). A grande questão é como poderá ocorrer o contágio e a disseminação e quanto tempo durará (até que uma vacina seja encontrada).

Experiências anteriores demonstraram que uma das desvantagens do aumento da globalização é a incapacidade de impedir uma rápida propagação internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas para potencial difusão são vastas e abertas. O perigo (econômico e demográfico) é que a interrupção dure um ano ou mais.

Embora houvesse uma queda imediata nos mercados de ações globais quando as notícias iniciais surgiram, surpreendentemente foi seguida de uma recuperação por um mês ou mais, quando os mercados atingiram novos picos. As notícias pareciam indicar que os negócios eram normais em todos os lugares, exceto na China. A crença parecia ser que iríamos experimentar uma repetição da SARS que se mostrou bastante rápida, contida e de baixo impacto global, apesar de ter uma alta taxa de mortalidade e criar pânico desnecessário (em retrospecto) nos mercados financeiros.

Quando o COVID-19 apareceu, uma reação dominante foi retratá-lo como uma repetição da SARS, o que tornava o pânico redundante. O fato de a epidemia ter sido desencadeada na China, que rapidamente e implacavelmente se moveu para conter seus impactos, também levou o resto do mundo a tratar equivocadamente o problema como algo que acontece “lá” e, portanto, fora do país, da visão e da mente (acompanhadas de alguns sinais problemáticos de xenofobia anti-chinesa em certas partes do mundo).O pico que o vírus colocou na história de crescimento da China, que de outra forma era triunfante, foi recebido com alegria em certos círculos do governo Trump.

No entanto, começaram a circular histórias de interrupções nas cadeias globais de produção que atravessavam Wuhan. Estes foram amplamente ignorados ou tratados como problemas para certas linhas de produtos ou corporações (como a Apple). As desvalorizações foram tomadas como locais e privadas, e não sistêmicas. Os sinais de queda na demanda do consumidor também foram minimizados, embora empresas como McDonalds e Starbucks, que tinham grandes operações no mercado interno chinês, precisassem fechar suas portas por um tempo. A sobreposição do Ano Novo Chinês com o surto do vírus mascarou os impactos ao longo de janeiro. A complacência dessa resposta foi mal compreendida.

As notícias iniciais da disseminação internacional do vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto grave na Coreia do Sul e em alguns outros pontos críticos como o Irã. Mas foi o surto italiano que desencadeou a primeira reação violenta. A queda das bolsas de valores que começou em meados de fevereiro oscilou um pouco, mas em meados de março havia causado uma queda líquida de quase 30% nas bolsas do mundo todo. A escalada exponencial de infecções provocou uma série de respostas que geralmente são inconsistentes e às vezes afetadas pelo pânico.

O presidente Trump imitou o rei Canute diante de uma potencial onda crescente de doenças e mortes. Algumas das respostas foram estranhas. Conseguir que o Federal Reserve reduzisse as taxas de juros contra um vírus parecia estranho, mesmo quando se reconheceu que a medida pretendia aliviar os choques do mercado em vez de retardar o progresso do vírus. As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram apanhados em quase todos os lugares desprevinidos.

Quarenta anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa deixaram o público totalmente exposto e mal preparado para lidar com uma crise de saúde pública, apesar dos temores anteriores da SARS e Ebola fornecerem advertências abundantes e lições convincentes sobre o que precisaria ser feito. Em muitas partes do chamado mundo “civilizado”, os governos locais e as autoridades regionais/estaduais, que invariavelmente formam a primeira linha de defesa em emergências de saúde e segurança pública desse tipo, foram privados de recursos graças a uma política de austeridade projetada para financiar cortes de impostos e subsídios a empresas e ricos.

As empresas que compõem a Big Pharma têm pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas sobre doenças infecciosas (como toda a classe de coronavírus conhecida desde a década de 1960). A Big Pharma raramente investe em prevenção. Ela tem pouco interesse em investir na prevenção de crises de saúde pública. Ela adora desenhar curas. Quanto mais doentes estamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para o valor do acionista. O modelo de negócios aplicado à provisão de saúde pública eliminou o excedente de capacidade para o enfrentamento necessário em uma emergência. A prevenção não é tampouco um campo de trabalho suficientemente atrativo para justificar parcerias público-privadas.

O presidente Trump cortou o orçamento do Centro de Controle de Doenças (CDC) e dissolveu a força-tarefa de pandemia no Conselho de Segurança Nacional com o mesmo espírito que cortou todos os fundos de pesquisa, incluindo o de mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico sobre isso, concluiria que o COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos brutais e abusivos nas mãos do extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.

Talvez sintomaticamente, os países menos neoliberais, China e Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura, até agora tenham enfrentado a pandemia em uma situação melhor que a Itália, ainda que o Irã negue esse argumento como um princípio geral. Embora houvesse muitas evidências de que a China lidava mal com o SARS, com muita dissimulação no início e negação, desta vez o presidente Xi rapidamente se moveu para exigir transparência nos relatórios e nas evidências, assim como a Coréia Sul. Ainda assim, perdeu-se um tempo valioso na China (apenas alguns dias fazem diferença).

No entanto, o que foi notável na China foi o confinamento da epidemia na província de Hubei, com Wuhan no centro. A epidemia não se espalhou para Pequim ou a oeste ou mais ao sul. As medidas tomadas para limitar geograficamente o vírus foram draconianas. Seria quase impossível replicar esse modelo em outros lugares por razões políticas, econômicas e culturais. Os relatórios que saem da China sugerem que os tratamentos e políticas foram tudo menos cuidadosos. Ademais, a China e Cingapura empregaram seus poderes de vigilância às pessoas em níveis invasivos e autoritários.

Mas eles parecem ter sido extremamente eficazes como um todo, embora se as ações opostas tivessem sido implementadas alguns dias antes, os modelos sugerem que muitas mortes seriam evitadas. Esta é uma informação importante: em qualquer processo de crescimento exponencial, existe um ponto de inflexão além do qual a massa crescente está completamente fora de controle (observe aqui mais uma vez a importância da massa em relação à taxa). O fato de Trump ter perdido tempo por tantas semanas ainda pode ser oneroso para muitas vidas humanas.

Os efeitos econômicos estão agora fora de controle, tanto na China como fora dela. As interrupções nas cadeias de valor corporativas e em certos setores foram mais sistêmicas e substanciais do que se pensava inicialmente. O efeito a longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as cadeias de suprimentos, enquanto se move para formas de produção menos intensivas em mão-de-obra (com enormes implicações no emprego) e maior dependência de sistemas de produção artificial inteligentes. A interrupção das cadeias produtivas implica demitir trabalhadores, o que diminui a demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Esses impactos do lado da demanda, por si só, teriam produzido por si só uma ligeira recessão.

Contudo, as maiores vulnerabilidades existem em outros lugares. Os modos de consumo que explodiram após 2007-2008 caíram com consequências devastadoras. Esses modos foram baseados na redução do tempo de rotação do consumo o mais próximo possível de zero. A avalanche de investimentos em tais formas de consumo tinha a ver com a absorção máxima de volumes de capital exponencialmente crescentes em formas de consumo que tiveram o menor tempo de rotatividade possível. O turismo internacional foi emblemático. As visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão entre 2010 e 2018. Essa forma de consumismo instantâneo exigiu investimentos maciços em infraestrutura, em aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc.

Esse locus de acumulação de capital está agora morto por afogamento, as companhias aéreas estão quase na bancarrota, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa nos setor hoteleiro é iminente. Comer fora não é uma boa ideia e restaurantes e bares foram fechados em muitos lugares. Mesmo delivery parece arriscado. O vasto exército de trabalhadores que vivem de bicos ou outras formas de trabalho precário está sendo demitido sem meios visíveis de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, shows, convenções profissionais e de negócios e até reuniões políticas em torno das eleições são cancelados. Essas formas de consumismo experiencial “baseadas em eventos” foram encerradas. As receitas dos governo locais entraram em colapso. Universidades e escolas estão fechando.

Grande parte do modelo de vanguarda do consumismo capitalista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. O esforço em direção ao que Andre Gorz descreve como “consumo compensatório” (no qual trabalhadores alienados deveriam recuperar o ânimo através de um pacote de férias em uma praia tropical) foi contido.

Mas as economias capitalistas contemporâneas são setenta ou oitenta por cento impulsionadas pelo consumo. A confiança e o sentimento do consumidor nos últimos quarenta anos se tornaram a chave para mobilizar a demanda efetiva, e o capital tornou-se cada vez mais orientado pelas demandas e necessidades. Essa fonte de energia econômica não foi sujeita a flutuações bruscas (com algumas exceções, como a erupção vulcânica da Islândia que bloqueou vôos transatlânticos por algumas semanas).

Mas o Covid-19 está sustentando não uma flutuação violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma de consumo que predomina nos países mais ricos. A forma espiral de acumulação infinita de capital está entrando em colapso interior, de uma parte do mundo para outra. A única coisa que pode salvá-lo é um consumo em massa financiado pelo governo e conjurado do nada. Isso exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar isso de socialismo.
Existe um mito de que doenças infecciosas não reconhecem barreiras ou limites sociais ou nenhum outro tipo de obstáculo. Como em muitos desses dizeres, há uma certa verdade nisso. Nas epidemias de cólera do século XIX, o significado das barreiras de classe foi dramático o suficiente para gerar o nascimento de um movimento de saúde pública e saneamento (que se tornou profissional) e que dura até hoje. Nem sempre ficou claro se esse movimento foi projetado para proteger todos ou apenas as classes altas. Hoje, porém, o diferencial de classe e os efeitos e impactos sociais contam uma história diferente.

Os impactos econômicos e sociais são filtrados por discriminações “habituais” que estão em evidência em toda parte. Para começar, a força de trabalho esperada para lidar com o crescente número de pacientes tem um viés de gênero, raça e etnia na maior parte do mundo. Também se reflete na força de trabalho em aeroportos e outros setores de logística. Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e é quem sofre maior risco de contrair o vírus no trabalho ou com maior probabilidade de ser demitida e ficar sem recursos devido à redução da atividade econômica imposta pelo vírus. Há também, por exemplo, a questão de quem pode trabalhar em casa e quem não pode. Isso altera a divisão social do trabalho, bem como a questão de quem pode se dar ao luxo de se isolar ou colocar-se em quarentena (com ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção.

Da mesma maneira que aprendi a chamar os terremotos na Nicarágua (1973) e na Cidade do México (1985) de “terremotos de classe”, o progresso do Covid-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça. Embora os esforços de mitigação estejam convenientemente ocultos na retórica de que “estamos todos juntos nisso”, as práticas, particularmente dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras.

A classe trabalhadora contemporânea nos Estados Unidos (composta principalmente por afro-americanas, latinas e mulheres assalariadas) enfrenta a feia escolha da contaminação em nome de cuidar e manter os principais meios de provisão (como mercearias) abertos ou o desemprego sem benefícios (como atendimento médico adequado). Os funcionários assalariados (como eu) trabalham em casa e recebem o mesmo salário de antes, enquanto os CEOs voam em helicópteros e jatos particulares para se isolarem.

A classe trabalhadora na maior parte do mundo durante muito tempo foram socializada para se comportar como bons sujeitos neoliberais (o que significa culpar a si mesmos ou a Deus se algo der errado, mas nunca se atrever a sugerir que o capitalismo pode ser o problema. ) Mas mesmo “bons sujeitos neoliberais” podem ver que há algo errado na maneira como se responde à essa pandemia.

A grande questão é: quanto tempo isso vai durar? Pode demorar mais de um ano e, quanto mais tempo durar, maior a desvalorização, incluindo o trabalho. Os níveis de desemprego quase certamente subirão para níveis comparáveis aos da década de 1930, com a ausência de intervenções estatais maciças que terão que ir contra o credo neoliberal. As ramificações imediatas para a economia e para a vida social cotidiana são múltiplas. Mas nem todas são ruins. Na medida em que o consumismo contemporâneo estava se tornando excessivo, estava à beira do que Marx descreveu como “consumo excessivo e consumo insano, o que significa, por sua vez, o monstruoso e o estranho, a queda do todo”.

A imprudência desse consumo excessivo tem desempenhado um papel importante na degradação ambiental. O cancelamento de voos de companhias aéreas e a redução radical de transporte e movimentação já tiveram consequências positivas em relação às emissões de gases de efeito estufa. A qualidade do ar em Wuhan melhorou muito, como em muitas cidades dos EUA. Os locais de ecoturismo terão tempo para se recuperar de atropelamentos permanentes. Os cisnes retornaram aos canais de Veneza.

À medida que o gosto pelo consumo excessivo imprudente e irracional diminui, pode haver alguns benefícios a longo prazo. Menos mortes no Monte Everest podem ser uma coisa boa. E, embora ninguém diga isso em voz alta, o viés demográfico do vírus pode acabar afetando as pirâmides etárias, com efeitos a longo prazo nas taxas de previdência social e no futuro da “indústria de assistência médica”. A vida cotidiana será mais lenta e, para muitos, será uma bênção. As regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência continuar por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que certamente se beneficiará é o que chamo de economia “Netflix”, que de todos os modos atende a “viciados”.

No plano econômico, as respostas foram condicionadas pelo padrão de êxodo do colapso de 2007-2008. Isso implicava uma política monetária ultraflexível, juntamente com o resgate dos bancos, complementado por um aumento dramático no consumo produtivo por uma expansão maciça do investimento em infraestrutura na China. Este último não pode ser repetido agora na escala requerida. Os pacotes de resgate estabelecidos em 2008 focavam nos bancos, mas também envolveram a nacionalização de fato da General Motors. Talvez significativo seja que, diante do descontentamento dos trabalhadores e da queda na demanda do mercado, as três principais montadoras de Detroit estejam fechando, pelo menos temporariamente.

Se a China não pode repetir seu papel de 2007-8, então o ônus de sair da atual crise econômica agora muda para os Estados Unidos e aqui está a ironia final: as únicas políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais socialistas que tudo o que Bernie Sanders pôde propor e esses programas de resgate terão que ser iniciados sob os auspícios de Donald Trump, presumivelmente sob a máscara de “make America Great again” (tornar a América grande novamente). Todos os republicanos que se opuseram visceralmente ao resgate de 2008 terão que engolir a seco ou desafiar Donald Trump. Este último, se for sagaz, cancelará as eleições em caráter emergencial e declarará a emergência de uma presidência imperial para salvar o capital e o mundo dos “distúrbios e da revoluções”.

sexta-feira, 27 de março de 2020

NA LINHA DE FRENTE DA CIÊNCIA CONTRA A COVID-19

Nesta matéria da revista Science. Abaixo, sua tradução. Notar que as drogas cloroquina e hidroxicloroquina estão incluídas neste estudo. Elas foram citadas, primeiro por Trump, depois Bolsonaro, e o jornalista Pepe Escobar acha que está sendo sabotada na França por iniciativa das grandes empresas fabricantes de remédios. Não sei. Mas o tal megaestudo tem possibilidade de trazer uma luz da Ciência sobre a questão, para além de uma megaconspiração .


OMS lança megaestudo global dos quatro tratamentos mais promissores contra o coronavírus




Por Kai Kupferschmidt, Jon CohenMar. 22, 2020, 15:28

Um medicamento já usado contra o HIV. Um tratamento da malária testado pela primeira vez durante a Segunda Guerra Mundial. Um novo antiviral cuja promessa contra o Ebola fracassou no ano passado.

Algum desses medicamentos pode ter a chave para salvar pacientes com doença de coronavírus 2019 (COVID-19) de danos graves ou morte? Na sexta-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou um grande estudo global, chamado SOLIDARITY, para descobrir se alguém pode tratar infecções com o novo coronavírus pela perigosa doença respiratória. É um esforço sem precedentes - um esforço coordenado para coletar dados científicos robustos rapidamente durante uma pandemia. O estudo, que pode incluir muitos milhares de pacientes em dezenas de países, foi projetado para ser o mais simples possível, para que até hospitais oprimidos por um ataque de pacientes com COVID-19 possam participar.

Com cerca de 15% dos pacientes com COVID-19 sofrendo de doenças graves e hospitais sobrecarregados, os tratamentos são desesperadamente necessários. Portanto, em vez de criar compostos do zero que podem levar anos para serem desenvolvidos e testados, pesquisadores e agências de saúde pública buscam redirecionar medicamentos já aprovados para outras doenças e conhecidos por serem amplamente seguros. Eles também estão analisando medicamentos não aprovados que tiveram um bom desempenho em estudos com animais com os outros dois coronavírus mortais, que causam síndrome respiratória aguda grave (SARS) e síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS).

Drogas que retardam ou matam o novo coronavírus, chamado síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2), podem salvar a vida de pacientes gravemente doentes, mas também podem ser administradas profilaticamente para proteger os profissionais de saúde e outras pessoas com alto risco de infecção. Os tratamentos também podem reduzir o tempo que os pacientes passam em unidades de terapia intensiva, liberando leitos hospitalares críticos.

Os cientistas sugeriram dezenas de compostos existentes para testes, mas a OMS está se concentrando no que diz serem as quatro terapias mais promissoras: um composto antiviral experimental chamado remdesivir; os medicamentos contra a malária cloroquina e hidroxicloroquina; uma combinação de dois medicamentos para o HIV, lopinavir e ritonavir; e essa mesma combinação mais interferon-beta, um mensageiro do sistema imunológico que pode ajudar a paralisar os vírus. Alguns dados sobre seu uso em pacientes com COVID-19 já surgiram - a combinação do HIV falhou em um pequeno estudo na China - mas a OMS acredita que é necessário um grande estudo com uma maior variedade de pacientes.

A inscrição de assuntos no SOLIDARITY será fácil. Quando uma pessoa com um caso confirmado de COVID-19 é considerada elegível, o médico pode inserir os dados do paciente no site da OMS, incluindo qualquer condição subjacente que possa mudar o curso da doença, como diabetes ou infecção pelo HIV. O participante deve assinar um formulário de consentimento informado que é digitalizado e enviado à OMS eletronicamente. Depois que o médico indicar quais medicamentos estão disponíveis em seu hospital, o site irá randomizar o paciente para um dos medicamentos disponíveis ou para o atendimento padrão local do COVID-19.

"Depois disso, não são necessárias mais medições ou documentação", diz Ana Maria Henao Restrepo, médica do Departamento de Vacinas e Biológicos de Imunização da OMS. Os médicos registrarão o dia em que o paciente deixou o hospital ou morreu, a duração da internação e se o paciente necessitou de oxigênio ou ventilação, diz ela. "Isso é tudo."

O design não é duplo-cego, o padrão-ouro em pesquisas médicas, portanto pode haver efeitos placebo de pacientes que sabem que receberam um medicamento candidato. Mas a OMS diz que teve que equilibrar o rigor científico e a velocidade. A ideia do SOLIDARITY surgiu há menos de duas semanas, diz Henao Restrepo, e a agência espera ter centros de documentação e gerenciamento de dados instalados na próxima semana. "Estamos fazendo isso em tempo recorde", diz ela.

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    “Será importante obter respostas rapidamente, tentar descobrir o que funciona e o que não funciona. Achamos que a evidência aleatória é a melhor maneira de fazer isso.”
    Ana Maria Henao Restrepo, Organização Mundial da Saúde
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Arthur Caplan, bioético no Centro Médico Langone da Universidade de Nova York, diz que gosta do design do estudo. "Ninguém quer explorar o prestador de cuidados de primeira linha que está sobrecarregado e se arrisca de qualquer maneira", diz Caplan. Os hospitais que não estão sobrecarregados podem ser capazes de registrar mais dados sobre a progressão da doença, por exemplo, seguindo o nível de vírus no corpo, sugere Caplan. Mas para a saúde pública, os resultados simples que a OMS busca medir são os únicos relevantes por enquanto, diz o virologista Christian Drosten, do Hospital Universitário Charité, em Berlim: “Na verdade, não sabemos o suficiente sobre esta doença para ter certeza do que significa quando a carga viral diminui na garganta, por exemplo. "

No domingo, o INSERM, a agência francesa de pesquisa biomédica, anunciou que coordenará um estudo complementar na Europa, chamado Discovery, que seguirá o exemplo da OMS e incluirá 3200 pacientes de pelo menos sete países, incluindo 800 da França. Esse julgamento testará os mesmos medicamentos, com exceção da cloroquina. Outros países ou grupos de hospitais também poderiam organizar estudos complementares, diz Heneo-Restrepo. Eles são livres para realizar medições ou observações adicionais, por exemplo, virologia, gases no sangue, química e imagiologia pulmonar. "Embora estudos de pesquisa adicionais bem organizados da história natural da doença ou dos efeitos dos tratamentos experimentais possam ser valiosos, eles não são requisitos essenciais", diz ela.

A lista de medicamentos a serem testados foi elaborada pela OMS por um painel de cientistas que avalia as evidências de terapias candidatas desde janeiro, diz Heneo-Restrepo. O grupo de medicamentos selecionados que teve a maior probabilidade de trabalhar, possuía os dados de segurança mais altos do uso anterior e provavelmente estará disponível em suprimentos suficientes para tratar um número substancial de pacientes, se o estudo mostrar que eles funcionam.

Aqui estão os tratamentos que o SOLIDARITY testará:


Remdesivir

O novo coronavírus está dando a este composto uma segunda chance de brilhar. Originalmente desenvolvido pela Gilead Sciences para combater o Ebola e vírus relacionados, o remdesivir desliga a replicação viral inibindo uma enzima viral chave, a RNA polimerase dependente de RNA.

Pesquisadores testaram o remdesivir no ano passado durante o surto de Ebola na República Democrática do Congo, juntamente com outros três tratamentos. Não mostrou nenhum efeito. (Outros dois o fizeram.) Mas a enzima que ela visa é semelhante em outros vírus, e em 2017 pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill, mostraram em tubo de ensaio e estudos em animais que a droga pode inibir os coronavírus que causam SARS e MERS. .

O primeiro paciente com COVID-19 diagnosticado nos Estados Unidos - um jovem no condado de Snohomish, em Washington - recebeu remdesivir quando sua condição piorou; ele melhorou no dia seguinte, de acordo com um relato de caso no The New England Journal of Medicine (NEJM). Um paciente californiano que recebeu remdesivir - e que os médicos pensavam que talvez não sobrevivesse - também se recuperou.

Essa evidência de casos individuais não prova que um medicamento é seguro e eficaz. Ainda assim, a partir dos medicamentos do estudo SOLIDARITY, "o remdesivir tem o melhor potencial para ser usado em clínicas", diz Jiang Shibo, da Universidade de Fudan, que trabalha há muito tempo na terapêutica com coronavírus. Jiang gosta particularmente que altas doses da droga provavelmente possam ser administradas sem causar toxicidades.

No entanto, pode ser muito mais potente se administrado no início de uma infecção, como a maioria dos outros medicamentos, diz Stanley Perlman, pesquisador de coronavírus da Universidade de Iowa. "O que você realmente quer fazer é dar um remédio como esse para pessoas que entram com sintomas leves", diz ele. "E você não pode fazer isso porque é um medicamento [intravenoso], é caro e 85 em cada 100 pessoas não precisam dele".


Cloroquina e hidroxicloroquina

Em uma entrevista coletiva na sexta-feira, o presidente Donald Trump chamou a cloroquina e a hidroxicloroquina de "mudança de jogo". "Eu me sinto bem com isso", disse Trump. Seus comentários levaram a uma corrida na demanda pelos antimaláricos de décadas. ("Isso me lembra um pouco do fenômeno do papel higiênico e todo mundo está correndo para a loja", diz Caplan.)

O painel científico da OMS que projetava o SOLIDARITY havia decidido deixar a dupla de fora do julgamento, mas teve uma mudança de opinião em uma reunião em Genebra, em 13 de março, porque os medicamentos “receberam atenção significativa” em muitos países, de acordo com o relatório da um grupo de trabalho da OMS que analisou o potencial dos medicamentos. O grande interesse despertou "a necessidade de examinar evidências emergentes para informar uma decisão sobre seu papel potencial".

Os dados disponíveis são limitados. Os medicamentos funcionam diminuindo a acidez nos endossomos, compartimentos dentro das células que eles usam para ingerir material externo e que alguns vírus podem cooptar para entrar na célula. Mas a principal porta de entrada para o SARS-CoV-2 é diferente, usando a chamada proteína spike para se conectar a um receptor na superfície das células humanas. Estudos em cultura de células sugeriram que as cloroquinas têm alguma atividade contra a SARS-CoV-2, mas as doses necessárias são geralmente altas - e podem causar sérias toxicidades.

Incentivar os resultados de estudos celulares com cloroquinas contra outras duas doenças virais, dengue e chikungunya, não resultou em pessoas em ensaios clínicos randomizados. E primatas não humanos infectados com chikungunya se saíram pior quando receberam cloroquina. “Os pesquisadores experimentaram esta droga vírus após vírus, e nunca funciona em humanos. A dose necessária é muito alta ”, diz Susanne Herold, especialista em infecções pulmonares na Universidade de Giessen.

Os resultados dos pacientes com COVID-19 são obscuros. Pesquisadores chineses que relatam tratar mais de 100 pacientes com cloroquina divulgaram seus benefícios em uma carta da BioScience, mas os dados subjacentes à alegação não foram publicados. No total, mais de 20 estudos com COVID-19 na China usaram cloroquina ou hidroxicloroquina, observa a OMS, mas seus resultados têm sido difíceis de encontrar. “A OMS está se envolvendo com colegas chineses na missão em Genebra e recebeu garantias de uma colaboração aprimorada; no entanto, nenhum dado foi compartilhado sobre os estudos de cloroquina. ”

Pesquisadores na França publicaram um estudo em que trataram 20 pacientes com COVID-19 com hidroxicloroquina. Eles concluíram que o medicamento reduziu significativamente a carga viral em zaragatoas nasais. Mas não foi um estudo controlado randomizado e não relatou resultados clínicos, como óbitos. Em orientação publicada na sexta-feira, a Sociedade Americana de Medicina Intensiva disse que "não há evidências suficientes para emitir uma recomendação sobre o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina em adultos gravemente enfermos com COVID-19".

A hidroxicloroquina, em particular, pode fazer mais mal do que bem. A droga tem uma variedade de efeitos colaterais e pode, em casos raros, prejudicar o coração. Como as pessoas com problemas cardíacos correm maior risco de COVID-19 grave, isso é uma preocupação, diz David Smith, médico de doenças infecciosas da Universidade da Califórnia, em San Diego. "Este é um sinal de alerta, mas ainda precisamos fazer o julgamento", diz ele. Além disso, a pressa de usar o medicamento para o COVID-19 pode prejudicar as pessoas que precisam dele para tratar sua artrite reumatóide ou malária.


Ritonavir / lopinavir

Este medicamento combinado, vendido sob a marca Kaletra, foi aprovado nos Estados Unidos em 2000 para tratar infecções por HIV. Os Laboratórios Abbott desenvolveram lopinavir especificamente para inibir a protease do HIV, uma enzima importante que quebra uma longa cadeia de proteínas em peptídeos durante a montagem de novos vírus. Como o lopinavir é rapidamente decomposto no corpo humano por nossas próprias proteases, é administrado com baixos níveis de ritonavir, outro inibidor da protease, que permite que o lopinavir persista por mais tempo.

A combinação também pode inibir a protease de outros vírus, especificamente os coronavírus. Ele mostrou eficácia em saguis infectados com o vírus MERS, e também foi testado em pacientes com SARS e MERS, embora os resultados desses ensaios sejam ambíguos.

O primeiro estudo com COVD-19 não foi encorajador, no entanto. Médicos em Wuhan, China, deram a 199 pacientes duas pílulas de lopinavir / ritonavir duas vezes ao dia, além de tratamento padrão ou apenas tratamento padrão. Não houve diferença significativa entre os grupos, eles relataram no NEJM em 15 de março. Mas os autores alertam que os pacientes estavam muito doentes - mais de um quinto deles morreu - e, portanto, o tratamento pode ter sido dado tarde demais para ajudar. Embora o medicamento seja geralmente seguro, ele pode interagir com medicamentos geralmente administrados a pacientes graves, e os médicos alertaram que pode causar danos significativos ao fígado.



Ritonavir / lopinavir e interferon-beta

O SOLIDARITY também terá um braço que combina os dois antivirais com o interferon-beta, uma molécula envolvida na regulação da inflamação no corpo que também mostrou um efeito em saguis infectados com MERS. Uma combinação dos três medicamentos está sendo testada em pacientes com MERS na Arábia Saudita no primeiro estudo controlado randomizado para essa doença.

Mas o uso de interferon-beta em pacientes com COVID-19 grave pode ser arriscado, diz Herold. "Se for administrado no final da doença, pode facilmente piorar danos nos tecidos, em vez de ajudar os pacientes", adverte ela.


Milhares de pacientes

O design do teste do SOLIDARITY pode mudar a qualquer momento. Um comitê global de monitoramento de segurança de dados analisará os resultados intermediários em intervalos regulares e decidirá se algum membro do quarteto tem um efeito claro ou se um deles pode ser descartado porque claramente não. Vários outros medicamentos, incluindo o favipiravir usado em gripe, produzido pela Toyama Chemical do Japão, podem ser adicionados ao estudo.

Para obter resultados robustos com o estudo, vários milhares de pacientes provavelmente precisarão ser recrutados, diz Henao Restrepo. Argentina, Irã, África do Sul e vários outros países não europeus já se inscreveram. A OMS também espera fazer um teste de prevenção para testar medicamentos que possam proteger os profissionais de saúde contra infecções, usando o mesmo protocolo básico, diz Henao Restrepo.

A contraparte européia do estudo, Discovery, recrutará pacientes da França, Espanha, Reino Unido, Alemanha e países do Benelux, de acordo com um comunicado à imprensa do INSERM hoje. O julgamento será conduzido por Florence Ader, pesquisadora de doenças infecciosas do Centro Hospitalar Universitário de Lyon.

Fazer uma pesquisa clínica rigorosa durante um surto é sempre um desafio, diz Henao Restrepo, mas é a melhor maneira de avançar contra o vírus: “Será importante obter respostas rapidamente, tentar descobrir o que funciona e o que não funciona. trabalhos. Achamos que a evidência aleatória é a melhor maneira de fazer isso. ”


Publicado em: HealthCoronavirus

doi: 10.1126 / science.abb8497
Kai Kupferschmidt

Jon Cohen