sexta-feira, 31 de maio de 2019

SUPERAÇÃO DO NEOLIBERALISMO?

Artigo publicado no Guardian, em 30 de maio. Diz respeito aos países ricos como aos países pobres. Nestes, como o Brasil, os problemas se compõem, para os mais interessados na superação do neoliberalismo, que nada é mais do que a expressão do poder das classes rentistas, com a fraqueza da esquerda e com a ocupação pelos poderosos das instituições que poderiam representar algum freio: imprensa, mídia, judiciário, forças armadas.

O original em inglês pode ser alcançado aqui. Possui, além das fotos ilustrativas, linques do autor. Minha tradução 



O neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado. Para onde em seguida?
Joseph Stiglitz


Durante décadas, os EUA e outros países adotaram uma agenda de livre mercado que fracassou espetacularmente


Que tipo de sistema econômico é mais propício ao bem-estar humano? Essa questão veio para definir a era atual porque, após 40 anos de neoliberalismo nos Estados Unidos e em outras economias avançadas, sabemos o que não funciona.

O experimento neoliberal - impostos mais baixos sobre os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização - tem sido um retumbante fracasso. O crescimento é menor do que foi no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte dele foi para o topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para os debaixo, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.

Na espera pela sucessão, há pelo menos três grandes alternativas políticas: o nacionalismo de extrema direita, o reformismo de centro-esquerda e a esquerda progressista (com a centro-direita representando o fracasso neoliberal). E no entanto, com exceção da esquerda progressista, essas alternativas permanecem em dívida com alguma forma de ideologia que está (ou deveria estar) superada.


A centro-esquerda, por exemplo, representa o neoliberalismo com um rosto humano. Seu objetivo é trazer as políticas do ex-presidente dos EUA Bill Clinton e do ex-primeiro ministro britânico Tony Blair para o século 21, fazendo apenas pequenas revisões dos modos prevalecentes de financeirização e globalização. Enquanto isso, a direita nacionalista renega a globalização, culpando migrantes e estrangeiros por todos os problemas de hoje. No entanto, como a presidência de Donald Trump tem mostrado, ela não é menos comprometida - pelo menos na sua variante americana - com cortes de impostos para os ricos, a desregulamentação e encolhimento ou eliminação de programas sociais.

Em contraste, o terceiro campo defende o que eu chamo de capitalismo progressista, que prescreve uma agenda econômica radicalmente diferente, baseada em quatro prioridades. A primeira é restaurar o equilíbrio entre os mercados, o estado e a sociedade civil. O lento crescimento econômico, o aumento da desigualdade, a instabilidade financeira e a degradação ambiental são problemas nascidos do mercado e, portanto, não podem e não serão superados pelo mercado por si só. Os governos têm o dever de limitar e moldar os mercados por meio de leis ambientais, de saúde, segurança ocupacional e outros tipos de regulamentação. É também tarefa do governo fazer o que o mercado não pode ou não fazer, como investir ativamente em pesquisa básica, tecnologia, educação e saúde de seus constituintes.


A segunda prioridade é reconhecer que a “riqueza das nações” é o resultado de investigação científica - aprendendo sobre o mundo ao nosso redor - e de organização social que permita que grandes grupos de pessoas trabalhem juntos para o bem comum. Os mercados ainda têm um papel crucial na facilitação da cooperação social, mas só atendem a esse propósito se forem regidos pelo Estado de Direito e submetidos a verificações democráticas. Caso contrário, os indivíduos podem ficar ricos explorando os outros, extraindo riquezas por meio da busca de aluguéis, em vez de criar riqueza por meio de genuína engenhosidade. Muitos dos ricos de hoje tomaram o caminho da exploração para chegar onde estão. Eles foram bem servidos pelas políticas de Trump, que encorajaram a busca de rendas enquanto destruíam as fontes subjacentes de criação de riqueza. O capitalismo progressivo procura fazer exatamente o oposto.

 Não há bala mágica que possa reverter o dano causado por décadas de neoliberalismo
Isso nos leva à terceira prioridade: enfrentar o crescente problema do poder de mercado concentrado. Ao explorar as vantagens de informação, comprar potenciais concorrentes e criar barreiras à entrada, as empresas dominantes são capazes de se envolver em busca de renda em grande escala em detrimento de todos os outros. O aumento do poder do mercado corporativo, combinado com o declínio do poder de barganha dos trabalhadores, explica muito por que a desigualdade é tão alta e o crescimento é tão morno. A menos que o governo assuma um papel mais ativo do que o neoliberalismo prescreve, esses problemas provavelmente se tornarão muito piores, devido aos avanços na robotização e na inteligência artificial.

O quarto item chave na agenda progressiva é cortar a ligação entre poder econômico e influência política. O poder econômico e a influência política reforçam-se mutuamente e se autoperpetuam, especialmente onde, como nos EUA, indivíduos e corporações ricas podem gastar sem limite nas eleições. À medida que os EUA se aproximam cada vez mais de um sistema fundamentalmente antidemocrático de “um dólar, um voto”, o sistema de freios e contrapesos tão necessário para a democracia provavelmente não será capaz de se manter: nada será capaz de restringir o poder dos ricos. Este não é um problema apenas moral e político: economias com menos desigualdade, na verdade, têm um desempenho melhor. Reformas capitalistas progressistas, portanto, têm que começar reduzindo a influência do dinheiro na política e reduzindo a desigualdade de riqueza.

Não há bala mágica que possa reverter o dano causado por décadas de neoliberalismo. Mas uma agenda abrangente ao longo das linhas esboçadas acima absolutamente pode. Muito dependerá de os reformadores serem tão resolutos no combate a problemas como o poder excessivo de mercado e a desigualdade quanto o setor privado os está criando.

Uma agenda abrangente deve se concentrar em educação, pesquisa e outras fontes verdadeiras de riqueza. Deve proteger o meio ambiente e combater as mudanças climáticas com a mesma vigilância que os New Dealers Verdes nos EUA e a Rebelião de Extinção no Reino Unido. E deve fornecer programas públicos para garantir que a nenhum cidadão sejam negados os requisitos básicos para uma vida decente. Isso inclui segurança econômica, acesso ao trabalho e salário digno, assistência médica e moradia adequada, aposentadoria segura e educação de qualidade para as crianças.

Esta agenda é eminentemente acessível; na verdade, não podemos nos dar ao luxo de não promulgar isso. As alternativas oferecidas por nacionalistas e neoliberais garantiriam mais estagnação, desigualdade, degradação ambiental e acrimónia política, levando potencialmente a resultados que nem sequer queremos imaginar.

Capitalismo progressivo não é um oximoro. Pelo contrário, é a alternativa mais viável e vibrante para uma ideologia que claramente falhou. Como tal, representa a melhor chance que temos de escapar do nosso atual mal-estar econômico e político.

• Joseph E Stiglitz é ganhador do Prêmio Nobel de Economia, professor universitário na Universidade de Columbia e economista-chefe do Instituto Roosevelt.

terça-feira, 28 de maio de 2019

MARCELO ZERO, SOBRE O FASCISMO ENTRE NÓS

Publicado no Brasil 247

MARCELO ZERO
É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

27 de Maio de 2019



A tarefa fundamental e inadiável das forças que ainda têm um compromisso mínimo com a democracia é isolar politicamente o neofascismo tupiniquim.
A total ausência de real compromisso democrático das nossas forças políticas conservadoras tradicionais foi o que permitiu a ascensão de um mentecapto extremamente perigoso, que ameaça acabar com o que restou da nossa democracia, após o golpe de 2016 e a prisão política de Lula.
As últimas manifestações, apesar de seu volume apenas mediano, mesmo nos maiores redutos bolsonaristas, foram convocadas pelo capitão com o objetivo principal de emparedar as instituições democráticas, especialmente o Congresso Nacional, que demonstra alguma independência, face ao festival inacreditável de absoluta incompetência do governo.
Nisso, não há surpresa alguma. Bolsonaro fez toda a sua longa carreira política de deputado do baixo clero como opositor ferrenho da democracia. Sempre elogiou a ditadura e os torturadores. Sempre defendeu, sem pejo algum, o extermínio, físico ou político, dos diferentes.
A imprensa sabia disso, os partidos políticos conservadores sabiam disso, os “formadores de opinião” sabiam disso, Sérgio Moro e seus procuradores sabiam disso, a justiça sabia disso, os donos do capital, mais que ninguém, sabiam disso perfeitamente.  Até as capivaras do Lago Paranoá tinham conhecimento do assunto.
Contudo, todos resolveram apoiá-lo, com intuito de derrotar o professor universitário e implementar uma agenda ultraneoliberal de destruição de direitos e da soberania. Inocentes, nessa história sórdida, só as pobres capivaras e as forças políticas progressistas que brava, mas isoladamente, se opuseram à tragédia anunciada.
O que causa alguma surpresa, no entanto, é o apoio tácito que boa parte da imprensa conservadora e comercial deu às novas manifestações contra a democracia. Em nome da “necessidade” de se aprovar o fim da Previdência e as demais pautas destrutivas da agenda ultraneoliberal, transmitiram as manifestações ao vivo e buscaram inflar o fascismo nas ruas. Mais uma vez, demonstram que não têm compromisso efetivo com a democracia.
Tentaram disfarçar as manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF como manifestações contra a “velha política”, e tentaram justificá-las dizendo que a vertente antidemocrática foi minoritária.
Não foi. O cerne das manifestações foi antidemocrático. Sob a desculpa do combate à “velha política” e à “corrupção”, o querem mesmo é abolir ou levar à inanição às instituições democráticas e instaurar um Estado policial.
Nesse sentido, as manifestações foram tão democráticas quanto as que o partido nazista promovia na Alemanha, na década de 20 e 30 do século passado. “Povo na rua” nem sempre é sinal de democracia. Pode ser o contrário. Naquela época, as manifestações nazistas também eram apresentadas como manifestações contra a velha política e a corrupção.  Nazismo e fascismo eram o “novo”.
Alguns argumentam que as manifestações, por seu volume modesto, foram um fracasso, que Bolsonaro cometeu um erro tático, etc.
É possível. Bolsonaro, por absoluta mediocridade e incompetência, e também por seu claro vínculo com as milícias, perde popularidade em ritmo de blitzkrieg.
Não obstante, seria um erro crasso menosprezar seu potencial destrutivo.
Estamos em época de crise extremamente grave e crônica. Em cenários semelhantes, a volatilidade política é imensa.
Nas eleições de 1928, o partido nazista teve menos de 3% os votos. Julgaram que Hitler estava acabado. Bismarck até revogou a proibição de Hitler fazer comícios na Prússia, pensando que o perigo havia passado.
Quatro anos depois, no entanto, Hitler fez um retorno triunfal, obtendo mais de um terço dos votos. Poucos meses depois, chegou ao poder. Bastou o agravamento da crise econômica, a partir de 1929, para que os inimigos da democracia triunfassem.
A persistência do impasse econômico e político no Brasil pode, sim, levar a “soluções” autoritárias”. Há o risco sério de que o ressentimento e a frustração da população sejam dirigidos não contra o governo fascistoide, mas contra o que restou da democracia e suas instituições. Sob a desculpa de se acabar com a “velha política”, pode-se acabar, de vez, com a política. 
A atual tutela militar sobre o poder civil, a falta de compromisso democrático de boa parte das nossas oligarquias, a ânsia por aprovar a agenda ultraneoliberal, a crise persistente e a criminalização da atividade política promovida pela Lava Jato compõem um cenário propício para aventuras de todo tipo.
A última pesquisa feita no Brasil pelo Latinobarômetro (2018) demostra que o apoio popular à democracia em nosso país é atualmente muito tênue. Ante a pergunta, você considera que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?, apenas 34% responderam afirmativamente. Ou seja, praticamente dois terços dos brasileiros admitem apoiar ou, ao menos, suportar um regime autoritário, caso julguem que a democracia (ou a “velha política”) tenha fracassado.

Bolsonaro demonstrou que está disposto a jogar a população contra as instituições democráticas. Está saindo da retórica para a ação. À medida que a crise avança e seu governo se paralisa, cresce a tentação de se apostar numa solução autoritária.
Nesse quadro, há de ocorrer uma reação firme das forças democráticas. Já passou do tempo de haver uma articulação, no Congresso e na sociedade civil, de todas as forças que ainda tem compromisso com a democracia.
Dizem que a grande astúcia do Diabo foi convencer de que ele não existia.
O neofascismo ou protofascismo brasileiro em senso lato existe. Está no poder e demonstra ser extremamente perigoso.
A democracia brasileira ainda existe, parcialmente. Mas o que restou dela corre o risco de não mais existir. 

segunda-feira, 27 de maio de 2019

COMENTÁRIOS SOBRE O 15M E O 26M



A LUTA É MUITO MAIOR

Do que contra Bolsonaro, e quem quer um país melhor tem que conhecer o verdadeiro tamanho da esquerda.

Também não é só contra a elite brasileira.

Ambos são coisas pequenas diante da tarefa necessária, que tem o tamanho do Brasil.

Na realidade a prioridade é salvar (parte) do planeta e tratar de garantir espaço para (alg)uma civilização.

Isto implica fazer escolhas, por exemplo, das partes a serem salvas.

Em tratar de enxergar um mundo viável a ser alcançado pela humanidade e se for possível enxergar, com vista para um equilíbrio social que hoje se mostra como uma utopia distante.

Identificar com quem dá fazer a jornada, que é longa.

Que é gente de todo o mundo: com a maior parte, nem haverá contatos diretos, mas são da tribo. As pautas em comum vão sendo formuladas na medida das necessidades das lutas de resistência, e em das conquistas. Trata-se de novas formas das velhas lutas de classes.

A extrema direitização e a fascistização de grandes parcelas da população são fenômenos mundiais, que têm características muito semelhantes na Américas, Europa, Índia, Filipinas entre outros lugares. Claro que precisa lutar contra todo esse pessoal, começando por identificar e deixar de fora dos debates que é necessário travar na sociedade.

Parte dos fascistas atuais é recuperável, claro. Dom Helder Câmara, o criador da CNBB e resistente inspirador contra a ditadura de 1964, foi integralista na juventude. O escritor e jornalista italiano Curzio Malaparte foi fascista até começar a ver melhor as coisas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas até que tenham seu momento de iluminação e demonstrem isso, têm que ser devidamente mentidos à distância. Gente como os que participaram da micareta do dia 26 de maio.

Afinal, já tem bastante gente consciente e que quer somar e agir, resistindo à ofensiva neoliberal e fascista e montando as condições para lutar por um Brasil e um Mundo melhor.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

COMEMORANDO O PRÊMIO CAMÕES PARA O CHICO BUARQUE

Pelo jornalista português Pedro Tadeu. Publicado no DCM.

“Ganhei eu, caramba”, diz jornalista português sobre o Prêmio Camões de Chico Buarque

 
PUBLICADO NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS


POR PEDRO TADEU
Quando recebi no telemóvel o alerta “Chico Buarque ganha o Prémio Camões” senti-me no direito de comemorar uma vitória: “ganhei eu, caramba, ganhei eu!”.
Fui ler a notícia. Os seis membros do júri explicavam a razão desta atribuição do galardão literário pela “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”.
E o que é que este português, de 55 anos, que escreve estas linhas, aprendeu com Chico Buarque?
Aos cinco anos de idade o meu corpo saltitava sempre que no rádio grande do meu pai soava “A Banda”, a música que, quando passava, diz o verso final do refrão, ia “cantando coisas de amor”. Chico Buarque impulsionou-me a dança.
Aos 10 anos de idade percebi como um indivíduo sozinho nada pode contra o cerco violento da indiferença. Bastou-me ouvir a história circular do operário de “Construção”, que “morreu na contramão atrapalhando o sábado”. Chico Buarque ensinou-me a identificar a injustiça social.
Aos 11 anos de idade percebi a inutilidade da divindade quando o coro masculino MPB4 repetia, em Partido Alto, “Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô nega/E se Deus não dá?/Como é que vai ficar, ô nega?”. Chico Buarque deu-me razões para ser ateu.
Aos 12 anos de idade intui, com os versos de Fado Tropical, como a brutalidade da colonização sangrou a pele dos povos e como as cicatrizes prevalecentes demoram séculos a fechar: “E o rio Amazonas/Que corre Trás-os-montes/E numa pororoca/Desagua no Tejo/Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/Ainda vai tornar-se um Império Colonial”. Chico Buarque ofereceu-me uma identidade, um medo e uma esperança na Lusofonia.
Aos 13 anos de idade percebi, pela letra do pseudónimo Julinho da Adelaide (um autor inventado, usado para ludibriar a censura da ditadura brasileira, que até falsas entrevistas deu aos jornais…), que confiar na polícia pode ser perigoso, como constata “Acorda amor”: “Tem gente já no vão de escada/Fazendo confusão, que aflição/São os homens/E eu aqui parado de pijama/Eu não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame, chame o ladrão, chame o ladrão”. Com Chico Buarque descobri que, às vezes, está tudo certo se se ficar do lado errado.
Aos 14 anos de idade conspirei o sentido da canção “O que será (à flor da pele)”: “Será, que será?/O que não tem decência nem nunca terá/O que não tem censura nem nunca terá/O que não faz sentido…” Chico Buarque revelou-me o secreto significado da palavra “liberdade”.
Aos 15 anos de idade compreendi, ao ouvir “Mulheres de Atenas”, que a minha mãe, a minha irmã e a minha namorada viviam num mundo pior do que o meu: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/Geram pro seus maridos os novos filhos de Atenas/Elas não têm gosto ou vontade/Nem defeito nem qualidade/Têm medo apenas”. Chico Buarque justificou-me o feminismo.
Aos 16 anos de idade espantei-me com o atrevimento de “O Meu Amor”. “Eu sou sua menina, viu?/E ele é o meu rapaz/Meu corpo é testemunha/Do bem que ele me faz”. Chico Buarque fez-me entender como o sexo pode, ou não, fazer um par com a palavra afeto.
Aos 17 anos comovi-me com “Geni”, a prostituta que salva a cidade mas que a cidade despreza: “Joga pedra na Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!”. Chico Buarque confrontou-me com a dignidade dos indignos.
Aos 18 anos de idade a história de “O Malandro” exemplificou-me como é sempre o mexilhão que se lixa: um tipo que foge de um tasco sem pagar a cachaça que bebeu provoca uma crise mundial. Mas, no final das crises, há sempre um bode expiatório: “O garçom vê/Um malandro/Sai gritando/Pega ladrão/E o malandro/Autuado/É julgado e condenado culpado/Pela situação”. Chico Buarque antecipou-me a globalização e fez de mim um comunista.
Aqueles anos foram os tempos do meu caminho até à chegada à idade adulta, uma época anterior aos romances que Chico Buarque escreveu e que completam, com a verdadeira poesia de muitas das suas canções, um currículo mais do que suficiente para a atribuição do mais importante prémio literário em Língua Portuguesa.
Aqueles anos foram os tempos que moldaram o meu carácter.
Aqueles foram os tempos que moldaram o carácter de tantos outros e de tantas outras que, como eu, cresceram a ouvir estas canções mas que entenderam nelas tantas coisas que eu não entendi, que compreenderam nelas tantas coisas que eu não percebi, que tiraram conclusões destes textos muito diferentes das que eu tirei.
Mas, tenho a certeza, apesar de pensarem e sentirem de maneiras tão diferentes da minha, ontem, milhões de vós, ao saberem da notícia do Prémio Camões atribuído a Chico Buarque, tiveram o mesmo impulso que eu e comemoram: “ganhei eu, caramba, ganhei eu!”. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

OS COLETES AMARELOS DA FRANÇA: SEIS MESES DE LUTAS

Artigo publicado no Counterpunch. O link para o original (em inglês) é este. Abaixo, a tradução.


20 de maio de 2019
Os coletes amarelos da França: seis meses de luta
por RICHARD GREEMAN

Estou lhes escrevendo de Montpellier, na França, onde sou um observador participante do movimento Coletes Amarelos, que ainda continua forte depois de seis meses, apesar da escassez de informações na mídia internacional.

Mas por que você deveria gastar o seu tempo para aprender mais sobre os coletes amarelos? A resposta é que a França tem sido, por mais de dois séculos, o modelo clássico de inovação social, e esse movimento social único e original tem enorme significado internacional. Os coletes amarelos já conseguiram destruir o mito capitalista da "democracia representativa" na era do neoliberalismo. Sua insurreição desmascarou as mentiras e a violência do governo republicano, bem como a duplicidade de instituições representativas como partidos políticos, sindicatos burocráticos e a grande mídia.

Além disso, os coletes amarelos representam a primeira vez na história em que um movimento social espontâneo, auto organizado já resistiu por meio ano apesar da repressão, mantendo sua autonomia, resistindo à cooptação, à burocratização e às divisões sectárias. O tempo todo, enfrentando a repressão governamental em larga escala e a propaganda direcionada, ela representa uma alternativa humana real à desumanização da sociedade sob o domínio do “mercado” capitalista.

Seis meses atrás, em 17 de novembro de 2018, coletes amarelos explodiram literalmente "do nada", com unidades locais autônomas surgindo em toda a França como cogumelos, demonstrando em rotatórias e portões, marchando todos os sábados nas cidades, incluindo Paris. Mas ao contrário de todas as revoltas anteriores, não foi centrado em Paris. O solo úmido de novembro de onde brotaram esses cogumelos foi a frustração quase universal do povo francês diante do abjeto fracasso da CGT e de outros sindicatos em se opor efetivamente à imposição de Macron na última primavera de suas históricas “reformas” Thatcheristas: um inflexível programa neoliberal de redução de benefícios, direitos trabalhistas e privatização ou corte de serviços públicos, enquanto elimina o chamado Imposto sobre a Riqueza destinado a beneficiar os pobres.

A causa imediata desse levante espontâneo de massa foi protestar contra um imposto injusto sobre o combustível (justiça fiscal), mas as exigências dos Coletes Amarelos rapidamente se expandiram para incluir a restauração dos serviços públicos (transporte, hospitais, escolas); salários mais altos, benefícios de aposentadoria, saúde para os pobres, agricultura camponesa, mídia livre de controle bilionário e governamental e, mais notavelmente, democracia participativa. Apesar de suas táticas perturbadoras, os coletes amarelos foram desde o começo muito populares entre os franceses (73% de aprovação) e ainda são mais populares do que o governo Macron depois de seis meses de exaustivas e perigosas ocupações de espaço público, violentos protestos semanais e propaganda caluniosa contra eles.

Cansados ​​de ouvir mentiras, de serem enganados, manipulados e desprezados, os coletes amarelos instintivamente, desde o início, rejeitaram ser instrumentalizados pelas corruptas instituições "representativas" da democracia capitalista - incluindo partidos políticos, burocracias sindicais e a mídia (monopolizada por bilionários e subsidiada pelo governo). Ciumento de sua autonomia, um conceito que os intelectuais radicais vêm explorando há anos, o colete amarelo evitava "líderes" e porta-vozes mesmo entre suas próprias fileiras, e mesmo agora está aprendendo gradualmente a se federar e a negociar a convergência com outros movimentos sociais.

Bem desde o início, as manifestações basicamente não violentas dos Coletes Amarelos foram confrontadas pela repressão policial maciça - gás lacrimogêneo, “flash-balls” (projéteis de borracha que eles alegam ser não-letais, N.T.), espancamentos, 10.000 detenções, julgamentos relâmpagos, sentenças rígidas por infrações menores. O governo Macron acaba de aprovar uma nova lei "antivandalismo", tornando praticamente impossível demonstrar legalmente. A República Francesa neoliberal ortodoxa de Macron tornou-se, provavelmente, tão repressora da oposição interna como os regimes "populistas" de direita na Polônia, Hungria, Turquia.

A repressão violenta de Macron à oposição política é responsável por pelo menos duas mortes, 23 manifestantes cegados de um olho, milhares de feridos gravemente. Foi condenada pela ONU e pela União Europeia. Mas Macron nunca reconheceu esses ferimentos, que raramente são mostrados na mídia. O noticiário da TV concentra-se em imagens sensacionais da violência (à propriedade) dos vândalos do Black Block à margem das manifestações dos Coletes Amarelos, nunca das vítimas humanas da violência sistemática do governo. Um slogan popular proclamado no Magic Marker no colete amarelo de um demonstrante diz: “Acorde! Desligue sua TV! Junte-se a nós!"

Como os Coletes Amarelos não têm porta-vozes reconhecidos, a propaganda do governo, apoiada pela mídia, teve liberdade para desumanizá-los para justificar o tratamento desumano a eles. Macron, do alto de sua presidência monárquica, no começo fingiu ignorar seu levante, depois tentou comprá-los com migalhas (muito poucas migalhas, que foram rejeitadas) e depois denunciou-os como "uma multidão cheia de ódio". (Nota: Na vida real, os coletes amarelos são em geral pessoas de meia-idade de baixa renda, com famílias das províncias cuja marca registrada são os gestos de simpatia e os churrascos improvisados.) No entanto, para Macron e a mídia constituem uma conspiração radical de “40.000 militantes da extrema direita e extrema esquerda ”, muitas vezes caracterizados como“ anti-semitas ”, que ameaçam a República.

Não é de admirar que, sujeitados a crescente violência e calúnias contínuas, o número de coletes amarelos dispostos a sair às ruas para protestar a cada semana tenha diminuído ao longo de 27 semanas. Mas eles ainda estão lá fora e seu canto favorito diz: “Aqui estamos nós! Aqui estamos! E se Macron não gostar? Aqui estamos nós! ”(On est là! Même e Macron ne veut pas, On est là!)

Felizmente, nas últimas semanas, a Liga pelos Direitos do Homem e outros grupos humanitários finalmente passaram a protestar contra a brutalidade policial, enquanto comitês de artistas e acadêmicos têm assinado petições em apoio à luta dos Coletes Amarelos pelos direitos democráticos, condenando o governo e a mídia. Ao mesmo tempo, os coletes amarelos estão convergindo cada vez mais com os ecologistas (“Fim do Mês / Fim do Mundo / Mesmo Inimigo / Mesma Luta”) e feministas (as mulheres desempenham um grande papel no movimento).

Também com os trabalhadores, muitos deles atuantes como opositores da burocracia em seus sindicatos. As etiquetas vermelhas de CGT em Coletes Amarelos são agora vistas frequentes em demonstrações. Philippe Martinez, o secretário geral da CGT, que até agora tem sido sarcástico e negativo sobre os Coletes Amarelos, foi forçado a admitir que a causa de sua ascensão foi o fracasso dos sindicatos, “um reflexo de todas as ausências sindicais. Ele estava se referindo a “pequenas e médias empresas, aposentados, pessoas pobres, desempregados e muitas mulheres” (o grupo demográfico dos Coletes Amarelos) que os sindicatos tem ignorado.


Os Coletes Amarelos ainda estão aqui, na briga, mantendo a brecha aberta. A crise na França está longe de terminar. Se e quando os outros grupos oprimidos e raivosos na França - os trabalhadores organizados, ecologistas, imigrantes norte-africanos, estudantes que lutam contra as “reformas” educacionais de Macron - também desligarem suas TVs e entrarem nas ruas, as coisas poderiam mudar radicalmente. O objetivo declarado do Colete Amarelo é levar a França a um impasse e impor mudanças a partir de baixo.

E se eles tiverem sucesso? Sabemos aonde o “sucesso” de partidos estruturados como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha levou. Talvez uma federação horizontal de grupos-base autônomos tentando reinventar a democracia pudesse ter melhor sucesso.

P.S. Últimas notícias: a CGT acabou de realizar sua convenção e votou por unanimidade por “convergência” com os Coletes Amarelos, algo em que nosso grupo em Montpellier vem trabalhando há meses. Amanhã, pela primeira vez, estamos nos reunindo com os outros grupos de Coletes Amarelos em nossa região. “On ne lâche rien!” (Nada nos escapa, não cedemos).


Richard Greeman é um acadêmico marxista há muito ativo nas lutas pelos direitos humanos, anti-guerra, antinuclear, ambiental e trabalhista nos EUA, na América Latina, na França e na Rússia. Greeman é mais conhecido por seus estudos e traduções do romancista e 



domingo, 19 de maio de 2019

IMPÉRIO E A DESTRUIÇÃO DO CLIMA

Peguei no Counterpunch. Mostra bem como não dá para defender a Terra sem se opor ao imperialismo. Os links são em inglês, assim como a versão original do artigo que pode ser encontrada aqui





As Crises Interligadas: Guerra e Caos Climático

por RICHARD MOSER 



“Nem tudo o que é enfrentado pode ser alterado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado.”
- James Baldwin

A mudança climática é a crise máxima de todos os tempos e as forças armadas dos EUA são o principal multiplicador de crises.

Ao nos aproximarmos do horizonte do desastre climático, certamente parece que a fase predatória da história humana - da qual a guerra é apenas o exemplo mais gritante - está relacionada à nossa relação predatória com a natureza. No centro da tempestade está a crise interligada do militarismo e da destruição do clima.

Vamos evoluir para além da guerra perpétua e do império global ou enfrentar o caos climático.

A crise climática está enraizada em um conjunto de instituições entrelaçadas com uma causa comum de poder sobre os outros e uma estratégia compartilhada de violência, pilhagem e fraude. Os militares são o eixo central, desempenhando um papel fundamental na intensificação da crise climática.

Considere os fatos básicos. As forças armadas exército dos EUA são:

+ A força global mais poderosa que protege petróleo e protege a infraestrutura de petróleo;
+ O principal diretor - juntamente com os grandes banqueiros e gigantes do combustível fóssil - dos planos das elites para lidar com a crise que se aproxima. Os militares e as grandes corporações não estão em negação climática - eles estão no controle - e planejam mantê-lo assim, enquanto o clima se deteriora.

+ O enorme consumo da máquina de guerra e a captura estratégica de combustíveis fósseis e sua gestão da crise nos bastidores sugere seu verdadeiro papel: patrocinador das grandes corporações de petróleo e co-criador da crise climática.

O domínio dos combustíveis fósseis e a supremacia do império dos EUA estão baseados não em vitória na guerra ou em conhecimento do mercado ou no "valor agregado" à economia, mas no seu poder político. Esse poder torna essas indústrias destrutivas e perdulárias extremamente lucrativas. O Império do Petróleo depende de financiamento público maciço, isenções cuidadosamente elaboradas à lei e imunidade em relação danos econômicos, sociais e ambientais que ele inflige

Os militares só conseguem manter a ficção de que protegem nossa segurança ocultando seu papel de destruidor das próprias coisas de que realmente precisamos para sobreviver: um ambiente saudável e uma sociedade democrática. Os gigantes dos combustíveis fósseis só podem manter a ficção de que são atores lucrativos em mercado livre, ganhando trilhões de dólares em subsídios diretos e indiretos e eliminando seu custo maior: a poluição.

Mark Jacobson, diretor do programa Atmosphere / Energy da Universidade de Stanford, fala sobre os verdadeiros custos das escolhas futuras.

“[Um] sistema eólico-hídríco-solar utiliza metade da energia gasta em um sistema de combustível fóssil e também elimina os custos de saúde e clima acarretados pelos combustíveis fósseis. Os consumidores americanos pagarão apenas US $ 1 trilhão por ano em custos de energia com o Green New Deal, enquanto sob um sistema de combustível fóssil, pagarão US $ 2 trilhões por ano em custos de energia e US $ 600 bilhões por ano em custos de saúde de poluição do ar e incorrerão US $ 3,3 trilhões por ano em custos climáticos globais devido às emissões dos EUA, para um custo econômico total de US $ 5,9 trilhões por ano. Assim, um sistema solar eólico-eólico custa à sociedade um sexto do sistema de combustíveis fósseis”.

O carbono, o metano, os derrames de petróleo e os fluidos usados em fracking que destroem a nossa única casa são - pelas maravilhas da contabilidade capitalista - simplesmente desaparecidos como custo de fazer negócios.

Entenda isso: as corporações gigantes reivindicam a propriedade legal dos combustíveis fósseis criados pela natureza; eles possuem as máquinas e o trabalho para refiná-los e transportá-los; eles escondem e controlam a fórmula para fraturar fluidos como um segredo comercial. Mas os mesmos produtos químicos tóxicos, os derramamentos de óleo, os resíduos de carbono e metano - sem os quais nenhum combustível fóssil é produzido ou consumido - não são propriedade deles, mas nossa. Apenas os lucros permanecem com as corporações. A poluição é considerada pelos atores corporativos e governamentais como uma “externalidade” que não é contada. Mas, seus venenos não são externos à natureza ou aos nossos corpos e já estamos pagando por isso com a sexta extinção, morte prematura para milhões e centenas de bilhões de dólares por ano.

Se os verdadeiros custos do petróleo, do gás e do carvão fossem contabilizados na equação dos capitalistas - incluindo os enormes subsídios públicos - os gigantes do combustível fóssil iriam rapidamente de estar entre as corporações mais ricas e mais conectadas do mundo para a condição de órfãos falidos. Mas esses custos são encobertos pela máquina de guerra porque isto é essencial para a própria necessidade militar de esconder os verdadeiros custos da guerra.

O poder das corporações e dos militares não é, de modo algum, produto de algum mercado livre mítico. Em vez disso, é um sistema econômico - bem manipulado, bem mantido e bem reforçado pelos militares dos EUA. Como o centro de uma roda gigante do infortúnio, as forças armadas dos EUA são o ponto central que ancora e protege o poder corporativo global que está nos empurrando para o precipício planetário.

Conhecemos isso uma vez, vamos aprender de novo

Mais de meio século atrás, Martin Luther King deu nome ao inimigo: os trigêmeos do mal do racismo, militarismo e exploração. Em nosso tempo, os trigêmeos do mal têm um novo e monstruoso irmão: a destruição do clima. King estava chamando nossa atenção para as interconexões entre todas as formas de opressão e exploração. Cinquenta anos depois, os elos se tornaram mais intensos e mais óbvios.

Juntamente com a crise e as instituições interligadas, nossa conturbada relação com o planeta é a única consequência mais reveladora de uma cultura de dominação profundamente enraizada. Desde o início, os impérios europeus usaram a Doutrina da Descoberta para reivindicar a posse de terras “descobertas” porque os nativos que viviam ali eram “outros” pagãos sem direitos que os europeus deveriam respeitar. Os nativos eram ameaças a serem assimilados ou eliminados pela guerra. A dominação dos "outros" e a dominação da natureza estão ligadas desde então. Como a nossa hostilidade à natureza, a guerra não é simplesmente uma política ou ação - a guerra é uma cultura - uma maneira de entender e agir no mundo.

É a mesma cultura que subjaz ao nosso império, à nossa economia falida e ao sistema político falido. Todo o racismo, a exploração de classes, a misoginia, a homofobia, a desigualdade - todo o ódio e medo de “outros” - são concentrados, ampliados e implicados na degradação do planeta.

Essas ideias antigas de domínio continuam nos sistemas modernos. Juntos, eles são como os “loops de feedback” sobre os quais os cientistas do clima nos alertam. E eles são tão perigosos.

Hoje em dia enfrentamos uma constelação de poderosas instituições que ampliaram o poder corporativo ao fundir a corporação com o Estado. É difícil ver as fronteiras entre os grandes bancos, as empresas petrolíferas, os gigantes da mídia e o governo dos EUA, porque eles estão unidos em propósito, projeto e cultura.

Para onde vamos daqui? Organizar!

O que não é óbvio são as implicações que a natureza interligada da regra corporativa guarda para nossas ações e estratégias de mudança. Quais são os elos fracos do sistema? Há tempo para mudanças incrementais? Receio que nós nos tenhamos colocado em um beco: é paz e revolução ou catástrofe climática.

Podemos começar deixando ilusões de lado. A natureza entrelaçada e crescente da crise tornará quase impossível consertar a ordem existente, porque a crise foi criada pelo atual sistema de governança corporativa.

Os trigêmeos do mal identificados por King não eram simplesmente ideias soltas ou atitudes hostis. Cada um deles tem uma base sistemática e institucional cuja longa história é justificada e oculta com histórias de capa repetidas milhares de vezes pela mídia corporativa. Essas narrativas também estão relacionadas. “Fundamentalismo de livre mercado” é para o poder corporativo o que “daltonismo” é para o vasto sistema penal militarizado e a “guerra humanitária” é para o império: um bom discurso liberal que promove a transição das velhas formas de dominação e exploração para novas.

A natureza interligada da crise significa que a tarefa à frente é monumental. Nossas ações devem ser verdadeiramente históricas em sua varredura e consequências, ou seremos derrotados. Podemos começar por pressionar  contra a crise sistemática interligada com um movimento de movimentos frouxamente interligados. Como Michael Eisenscher escreveu:

“O que compele essas diferentes linhas de luta progressiva a tecer uma nova tapeçaria progressiva é o reconhecimento de que nenhum desses movimentos pode alcançar seus objetivos sem atingir os objetivos dos outros. Não seremos capazes de descarbonizar nossa economia com êxito se não desmilitarizarmos também a política externa dos EUA”.

Nós precisamos um do outro para vencer.

Nossas rebeliões contra as mudanças climáticas e a guerra devem continuar o trabalho e estender a visão que a revolução negra iniciou.

“A revolução negra é muito mais que uma luta pelos direitos dos negros. Está forçando os EUA a enfrentar todas as suas falhas inter-relacionadas - racismo, pobreza, militarismo e materialismo. Está expondo os males profundamente enraizados em toda a estrutura da nossa sociedade. Revela falhas sistêmicas mais do que superficiais e sugere que a reconstrução radical da própria sociedade é a verdadeira questão a ser enfrentada.” Martin Luther King Jr., “Um Testamento de Esperança”, 1969

“Falhas inter-relacionadas.” “Enraizado profundamente enraizado em toda a estrutura.” “Sistemática, em vez de superficial.” Devemos ver o que King viu. Diga-me a última vez que simples eleições realizaram a “reconstrução radical da sociedade”. Em vez disso, o projeto revolucionário tem o maior potencial para superar a crise climática.

Ok, Espertinho: Mas você e qual exército?

Você me pegou. Neste artigo e nos que se seguem, analiso os sistemas interligados de guerra e crise climática. Se não conhecemos o inimigo, nunca podemos vencer. Mas que tal conhecer a nós mesmos? As melhores estratégias, ideias e análises são estéreis sem um exército de organizadores e ativistas para transformar ideias em forças materiais reais que devem ser levadas em conta.
Enquanto as energias frescas e a criatividade de novos movimentos políticos são a nossa melhor esperança, ainda enfrentamos os mesmos velhos problemas de organização: “você e qual exército?” Rebelião de Extinção, Greve da Juventude pelo Clima e About Face estão reunindo as tropas que precisamos – assim como muitas outras tendências e organizações. Ocupar Sandy nos mostrou como uma adaptação centrada nas pessoas para o desastre climático pode funcionar. Ações contra mais guerras do petróleo na Venezuela e no Irã têm o potencial de unir as duas questões.
Mas ainda precisamos construir um exército de organizadores. O trabalho face-a-face é o método mais trabalhoso, é verdade, mas também o mais eficaz. Isso realmente torna a organização do caminho mais rápido para a construção de bases e a construção de movimentos. Lento é o novo rápido.
Enquanto o Partido Verde inventou o Green New Deal, é Sanders - operando na margem esquerda do sistema bipartidário disfuncional - que tem a coisa mais próxima do número bruto de voluntários que mudam as demandas. Só isso já significa que precisamos de envolvimento contínuo e coordenação entre as várias tendências que visam desafiar o sistema. Podemos nos tornar maiores do que a soma de nossas partes, se tivermos a habilidade política para permitir a união e a luta em nossos relacionamentos políticos.

Também precisamos reconhecer que organizar é uma prática e não uma ciência. Somos todos eternos principiantes. Eis aqui um lugar para começar de novo: confira o meu blog em befreedom.co. Você encontrará uma série de artigos sobre organização. A organização face a face continua sendo o padrão-ouro para aumentar a consciência, construir organizações e agir. Não há como desafiar a máquina de guerra e enfrentar a crise climática sem ela.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

VENEZUELA, PAÍS ATACADO PELO IMPÉRIO

Tal qual foi a Síria. E Iraque. E Líbia. Matéria publicada no Russia Today, o original, que é rico em linques e ilustrações para aprofundar a informação, pode ser acessado, em inglês, aqui. Já li outras matérias de Eva Bartlett, ela é ótima.


Venezuela não é a Síria ... mas as táticas de guerra da América são as mesmas

Eva Bartlett
Eva Bartlett é uma jornalista freelancer e ativista dos direitos humanos com vasta experiência na Faixa de Gaza e na Síria. Seus escritos podem ser encontrados em seu blog, In Gaza.


Desde que Juan Guaido se declarou presidente interino da Venezuela, a retórica que emana de Washington vem se tornando cada vez mais familiar.
Ela ecoa o tipo de propaganda de guerra bombástica e oca de crise humanitária que tem sido usada repetidamente em nações ricas em recursos, do Afeganistão ao Iraque, à Líbia e à Síria. E agora estamos vendo isso na Venezuela.

A receita para mudança de regime é direta: demonizar a liderança e aqueles que defendem o país; apoiar uma oposição que é inevitavelmente violenta e encobrir seus crimes; sancionar o país e atacar a infraestrutura para criar condições insuportáveis; criar notícias falsas sobre questões humanitárias; possivelmente realizar incidentes de bandeira falsa para incriminar o governo; controlar a narrativa; e insistir que a intervenção é necessária para o bem-estar do povo.

Na Líbia, africanos negros estão sendo vendidos como escravos em um país devastado pelo falso humanitarismo e pelos bombardeios do Ocidente.

Há anos a Venezuela vem resistindo desafiadoramente às guerras econômicas e de propaganda, lideradas pelos EUA e pelo Canadá, bem como às tentativas de golpe de Estado e de assassinato, apenas para ver a retórica contra a Venezuela voltar a crescer nos últimos meses.

Apesar dos rastros de destruição que os esforços de mudança de regime da América deixaram ao longo das décadas em toda a América Latina e no mundo, ao comparar as táticas contra esses países e agora contra a Venezuela, algumas pessoas surpreendentemente insistem que desta vez é diferente.

A Venezuela não é a Síria, dizem eles. Desta vez, argumentam, trata-se realmente de um 'regime corrupto' e 'direitos humanos' - ou, no caso da Venezuela, uma 'crise humanitária'... como se os EUA tivessem os melhores interesses de qualquer pessoa, inclusive seus próprios, no coração.

Eles ignoram as sanções assassinas do Ocidente contra a Venezuela e o apoio à "oposição" violenta - uma oposição que queimou civis vivos - bem como os milhões de dólares gastos para esse apoio

Então, há as ações violentas mais recentes contra a Venezuela, como a tentativa de 23 de fevereiro de colocar caminhões humanitários na Venezuela, e a tentativa de golpe de 30 de abril de Guaido e Leopoldo Lopez (um violento líder da oposição de direita) - uma tentativa claramente rejeitada. por massas de venezuelanos.

Colectivos, o novo 'Shabiha'
Antes de 2011, a mídia corporativa ocidental realmente tinha muitas coisas positivas a dizer sobre a liderança da Síria, elogiando o presidente Assad como um reformista de mente aberta. Quando a operação de mudança de regime começou, Assad e seus aliados tornaram-se inimigos número um. Tanto na Venezuela quanto na Síria, os presidentes Maduro e Assad foram legitimamente eleitos e mantêm amplo apoio entre a população.

No entanto, os meios de comunicação corporativos ocidentais e os políticos que eles repetem consideram rotineiramente os dois países como “ditaduras” e os presidentes eleitos ilegítimos - enquanto apoiam fantoches impopulares e antidemocráticos que eles buscam colocar.

Mas demonizar o governo não é suficiente; Os defensores do governo também são alvos ou simplesmente desaparecem. Na Síria, os defensores são chamados shabiha, inferindo que eles - sim, milhões deles! - são bandidos pagos do governo e, assim, negando suas vozes.

É uma tática extremamente falsa usada para silenciar as vozes das massas - nos moldes da mídia corporativa ocidental chamando aqueles de nós que realmente questionam, sem mesmo ir até os lugares em questão, de "teóricos da conspiração".

Os shabiha da Venezuela são os colectivos, e são igualmente representados como capangas apoiados pelo governo e designados pelos verdadeiros capangas dos EUA como "terroristas".

Esses colectivos são grupos organizados de pessoas de base que se reúnem como educadores, feministas, aposentados, fazendeiros, ambientalistas, para fornecer assistência médica em suas comunidades, entre outras coisas, ou em defesa de sua nação.

Enquanto caluniam grupos de base coletivos, a mídia corporativa ocidental e políticos vociferantes como Marco Rubio e John Bolton encobrem os crimes reais dos partidários armados da oposição. Um exemplo recente foi o de membros da oposição que incendiaram uma sede do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) de Caracas, deixando uma nota insultando os colectivos.

Na Venezuela, eu passei tempo com o líder de um colectivo de jovens de 170 famílias. O colectivo ajuda os jovens da comunidade em suas necessidades e organiza atividades para eles, além de fornecer produtos acessíveis à comunidade local. Durante as quedas de energia, esse mesmo colectivo apoiou centenas de famílias na obtenção de água potável e de lavagem e no armazenamento de alimentos perecíveis.

Em 30 de março, juntei-me a centenas de membros de uma coletividade de motociclistas que conduziam suas motos por toda a capital, em uma demonstração de apoio ao seu país e em desafio à intervenção estrangeira. Eram mulheres e homens fazendo uma declaração com sua presença física: eles não permitiriam que seu país fosse atacado, de dentro ou de fora.

Um dos organizadores, sabedor de como os colectivos são retratados, disse-me: "Nós não somos terroristas, os terroristas vieram com essa oposição lacaia", e prosseguiu dizendo que os governos levam o terrorismo à Venezuela.

Outro homem na demonstração da motocicleta disse: “Estamos sofrendo por causa do terrorismo que foi implantado por meio de um fantoche dos EUA chamado Juan Guaidó”. Nós dizemos a você Guaidó e nós dizemos a você Trump: "Você levou a nossa água, você tirou a luz, mas você acendeu nossa alma, e nós estamos determinados a defender o país com nossas vidas se for necessário."

Os mesmos motociclistas juntaram-se mais tarde às dezenas de milhares de civis venezuelanos que tomaram as ruas em uma demonstração festiva de apoio ao presidente Maduro. Duas semanas antes, em 16 de março, eu andei por algumas horas em outra manifestação em massa, filmando manifestantes, ouvindo suas opiniões sobre o não presidente Guaido, seu apoio a Maduro, e sua recusa em ver seu projeto bolivariano ser destruído.

Mais cedo naquele dia, circulando por uma hora no moto-táxi que eu havia chamado, procurei os apoiadores da oposição que deveriam ter convergido em vários pontos da cidade, de acordo com as chamadas de Guaido para as ruas. Em um dos locais, em vez disso, encontrei adeptos de Maduro e, finalmente, em outros locais, encontrei um punhado de partidários e, em seguida, algumas dúzias de partidários na fortaleza da oposição, Altimira.

Na Síria, manifestações em massa apoiando o Presidente Assad ocorreram nos primeiros meses de 2011 e nos anos seguintes.
Sanção do país e ataque a sua infraestrutura
Os EUA e o Canadá, durante anos, colocaram a Venezuela sob sanções incapacitantes, uma forma de punição coletiva.

O relator especial da ONU, Idriss Jazairy, em 6 de maio, observou a hipocrisia de impor sanções devastadoras e medidas econômicas relacionadas, e ainda assim afirma-se que elas ajudam o povo venezuelano.

O especialista da ONU Alfred de Zayas apropriadamente qualifica as sanções como uma forma de terrorismo, “porque elas invariavelmente impactam, direta ou indiretamente, os pobres e vulneráveis”.

As cabeças falantes dos EUA minimizam os efeitos drásticos das sanções, mas a realidade de seu efeito é impressionante.

Um relatório recente estimou que as sanções causaram 40.000 mortes em 2017-2018, com mais 300.000 venezuelanos em risco. Recentemente, um menino de seis anos precisando de um transplante de medula óssea e tratamento (provido por uma associação em  acordo com a PDVSA, empresa de petróleo e gás natural da Venezuela) morreu em consequência do seu tratamento ser negado devido a sanções dos EUA contra a PDVSA. .

Quando cheguei a Caracas, em março, foram três dias na primeira de duas grandes quedas de energia na Venezuela naquele mês. Do primeiro, o governo venezuelano afirma que os EUA atacaram a rede elétrica da Venezuela, através de ataques cibernéticos, usando dispositivos de pulso eletromagnético e ataques físicos.

Segmentar a infraestrutura elétrica não é um conceito estranho para os EUA e, durante a primeira paralisação, até mesmo a Forbes escreveu que “a ideia de um governo como os Estados Unidos interferindo remotamente em sua rede elétrica é realmente bastante realista”.

Horas antes do corte de energia em 7 de março, Marco Rubio previu que a Venezuela “entraria em um período de sofrimento que nenhuma nação enfrentou na história moderna”.

Na Síria, desde 2011 os terroristas têm como alvo estações de eletricidade e usinas elétricas. Os sírios em Alepo viveram por anos sem eletricidade, privados de energia depois que os terroristas assumiram o controle do distrito que abrigava a usina. Aqueles que podiam pagar compraram eletricidade do gerador por Ampere.

Após o bombardeio israelense de 2006 à usina de Gaza, os palestinos sofreram anos de falta de energia por 18 ou mais horas por dia. Atualmente, Gaza tem oito horas de eletricidade por dia.
Claramente, o conceito de infra-estrutura atacante como eletricidade e água é algo com o qual os EUA e os aliados estão intimamente familiarizados, a fim de criar condições de vida infernais para o povo do país ser visado.

Fome e crise de comer no lixo

Na Síria, toda vez que uma área ocupada pela Al-Qaeda e companhia está sendo liberada, a mídia corporativa clama em massa sobre civis famintos, culpando o governo sírio quando, na verdade, o tempo todo a fome é resultado de terroristas que acumulam e controlam comida e ajuda.

A propaganda de civis famintos ressurgiu na Venezuela, com a mídia ocidental alegando uma epidemia de lojas vazias e pessoas comendo lixo.

Jorge Ramos, um jornalista da Univision, afirmou ter filmado três homens comendo fora de uma lixeira muito perto - até mesmo minutos - do palácio presidencial venezuelano, Miraflores. Na realidade, Ramos filmou em Chacao, um reduto da oposição a quase sete quilômetros do palácio, a meia hora de distância no trânsito de Caracas.

No final de março, eu andei com um líder de colectivo de jovens que eu conheci no bairro abaixo de seu distrito de Las Brisas, no oeste de Caracas.

Para ilustrar seu argumento de que o hype do Ocidente sobre a fome em massa era um absurdo, ele bateu em portas do distrito de classe baixa perguntando às pessoas que conhecíamos se estavam famintas e se haviam comido hoje. A maioria dos que conhecemos ficaram confusos com a estranha pergunta (é claro que eles não viram o feed do Twitter de Rubio).

No complexo habitacional no topo da colina de Ciudad Mariche, os moradores da região também estavam convencidos de que não há uma crise humanitária. Um homem me disse: "Não estamos famintos. Temos muitos problemas gerais, mas não morrendo de fome. Esta não é uma crise humanitária. Diga aos seus governos, isso não é uma luta contra Maduro, esta é uma luta contra um povo que está tentando ser livre. ”

Qualquer estado que não os EUA na Síria, Venezuela, "ilegal"

Segundo o valentão do mundo, só os EUA têm o direito de intervir em nações soberanas, apesar de que sua intervenção não convidada ser ilegal.

Os EUA ameaçaram os aliados da Venezuela, incluindo Cuba e Rússia, afirmando estranhamente que a Rússia estava intervindo na Venezuela sem o consentimento do governo, uma alegação que contraria o acordo bilateral entre a Rússia e a Venezuela.

A postura hipócrita dos EUA não prejudicou a aliança da Rússia com a Venezuela, com Moscou anunciando a intenção de criar uma "coalizão de países da ONU para 'combater' a eventual invasão da Venezuela pelos EUA".

Em qualquer caso, como a Síria, a Venezuela não será superada tão facilmente, com suas forças armadas de 200.000 e seus quase 2 milhões de milicianos preparando-se para defender a sua terra.