quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Putin sugere opções militares na Ucrânia

 

Putin sugere opções militares na Ucrânia

 

O líder da Rússia disse em um discurso na televisão estatal que questões centrais da defesa nacional da Rússia estavam em jogo

 por MK Bhadrakumar

28 de dezembro de 2021

 

A televisão estatal Rossiya 1 em Moscou transmitiu no domingo a entrevista coletiva anual do presidente Vladimir Putin, que ele deu na sexta-feira. Ele transmite um quadro muito mais completo da grave crise que está se formando nas relações russo-americanas do que os trechos da mídia russa procuraram transmitir no fim de semana.

Putin, pela primeira vez, advertiu explicitamente que, se os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte se recusarem a fornecer as garantias de segurança que Moscou buscou, seu curso de ação futuro será exclusivamente guiado pelas “propostas que nossos especialistas militares me farão . ” Claramente, não há mais espaço de manobra sobrando.

Isso é tudo menos o clichê da Casa Branca de que “todas as opções estão sobre a mesa”, como quando Washington interveio na Venezuela ou na Síria. Putin deu a entender que, uma vez que as questões centrais da defesa nacional da Rússia estão envolvidas aqui, as considerações militares reinarão supremas.

Ou seja, a Rússia não pode aceitar a expansão da OTAN para o leste e os destacamentos dos EUA na Ucrânia e em outros lugares da Europa Oriental ou a criação de estados anti-russos ao longo de suas fronteiras. E a Rússia espera "chegar a um resultado juridicamente vinculativo das negociações diplomáticas sobre os documentos".

Sem surpresa, Putin também disse que a Rússia buscará obter um resultado positivo nas negociações sobre garantias de segurança. Moscou exige uma reunião antecipada. Curiosamente, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, sublinhou que Moscou não busca uma reunião presidencial entre Vladimir Putin e Joe Biden.

É baixa a probabilidade de que os EUA concordem em dar uma garantia de segurança à Rússia em termos juridicamente vinculativos. Existem obstáculos no caminho. Para começar, Biden simplesmente não tem capital político para conduzir o Congresso em um caminho conciliatório em direção à normalização com a Rússia.

É difícil chegar a um consenso entre os aliados europeus dos Estados Unidos também sobre a complicada questão da expansão da OTAN - isto é, presumindo que Washington seja receptivo às demandas da Rússia - o que não é.

O Ministério das Relações Exteriores da Rússia alertou no fim de semana que não apenas a Ucrânia e a Geórgia, mas uma possível inclusão da Suécia e da Finlândia na OTAN também terá consequências militares e políticas "sérias" que não ficarão sem resposta por Moscou.

 

OTAN e Rússia 

 

Simplificando, a Rússia espera que os Estados Unidos e seus aliados cumpram a garantia dada a Mikhail Gorbachev em 1990 de que a OTAN não se expandiria “uma polegada” mais. (A agência de notícias RT financiada pelo Kremlin publicou no sábado os documentos relevantes desclassificados.)

No entanto, o cerne da questão é que logo após a derrocada no Afeganistão, a retirada da OTAN da Ucrânia iria prejudicar irreparavelmente a sua credibilidade. Na verdade, a OTAN pode definhar se parar de se expandir. A menos que a OTAN possa se concentrar em um "inimigo", ela perde sua amarração e carece de uma razão de ser para sua própria existência.

O sistema transatlântico ficará em desordem se a OTAN começar a derivar. E a OTAN passa a ser a âncora das estratégias globais dos Estados Unidos. É tão simples quanto isso.

No que diz respeito à Ucrânia, o Ocidente mordeu mais do que poderia mastigar quando a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos deu um golpe em 2014 em Kiev para derrubar o governo eleito do presidente Viktor Yanukovich e substituí-lo por uma organização pró-EUA. A agenda de mudança de regime foi promovida sem nenhum entendimento real de que a atual Ucrânia é um país, mas não uma nação.

A Ucrânia foi a criação de Josef Stalin. Em um ensaio brilhante este mês intitulado Ucrânia: Tragédia de uma Nação Dividida, o ex-embaixador Jack Matlock, o enviado americano a Moscou que desempenhou um papel seminal como confidente de Ronald Reagan e Gorbachev nas negociações para o fim da Guerra Fria, advertiu que a Ucrânia não tem futuro sem a ajuda da Rússia.

Por outro lado, o Deep State nos EUA e grandes setores do estabelecimento de política externa e de segurança no Washington Beltway têm alimentado fantasias de que a CIA pode prender a Rússia em um atoleiro na Ucrânia.

Na semana passada, David Ignatius, do The Washington Post, escreveu uma coluna ameaçando Moscou de que enfrentaria uma guerra de guerrilha completa apoiada pelos EUA se ousasse intervir militarmente na Ucrânia. A redação de Matlock virá como uma ducha fria para esses sonhadores.

O principal problema aqui é que Biden pessoalmente se encontra em apuros. Ele teve um papel prático no projeto de mudança de regime na Ucrânia. Se o então presidente Barack Obama delegou o trabalho sujo a Biden ou este o pediu, nunca saberemos. Basta dizer que Biden deve assumir a responsabilidade agora pela bagunça na Ucrânia que se tornou uma cleptocracia, um bastião de neonazistas, um caso de caridade e uma fossa de venalidade e depravação.

 

Da mesma forma, dado seu histórico de ser um devoto fervoroso da estratégia de contenção de Obama contra a Rússia, será uma pílula amarga de engolir para Biden se ele fosse o líder ocidental escolhido pelo destino para subscrever a segurança nacional da Rússia. E isso também, com Vladimir Putin no comando dos negócios no Kremlin, um líder contra quem Obama e Hillary Clinton nutriam ódio visceral.

Crise de refugiados vai crescer

Um passo em falso e a Europa terá um fluxo de refugiados daquele país (população: 45 milhões) de proporções tão maciças bem à sua porta que fará a Síria parecer um piquenique - e isso em um momento em que o fantasma da Iugoslávia está perseguindo o Balcãs.

Da mesma forma, dado seu histórico de ser um devoto fervoroso da estratégia de contenção de Obama contra a Rússia, será uma pílula amarga de engolir para Biden se ele for o líder ocidental escolhido pelo destino para subscrever a segurança nacional da Rússia. E isso também, com Vladimir Putin no comando dos negócios no Kremlin, um líder contra quem Obama e Hillary Clinton nutriam ódio visceral.

Biden mal escondeu sua antipatia pelo líder russo. Biden trouxe para sua presidência como sua equipe de política externa pessoas conhecidas como russófobas. A atual subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, esteve pessoalmente envolvida na mudança de regime em Kiev em 2014 e agora é responsável pelas políticas dos EUA para a Ucrânia.

 

Os protagonistas em Washington estão delirando. Fundamentalmente, eles imaginavam que a Rússia é uma potência em declínio - um país quebrado, mal-humorado e petulante, nostálgico por seu pedestal de superpotência.

 

As terríveis profecias de um colapso da Rússia tardiamente deram lugar a uma aceitação relutante de que a Rússia é uma potência persistente. O ressurgimento da Rússia - seu poder suave e inteligente - pegou o Ocidente de surpresa.

 

A atualização das forças nucleares e convencionais da Rússia sob Putin produziu resultados surpreendentemente impressionantes. Putin restaurou o orgulho da nação de ser "o herdeiro de uma identidade antiga e duradoura - forjada na época de Pedro, o Grande e que persistiu durante a era soviética - como um ator importante no cenário internacional", para citar um comentário de André Latham, um professor americano de relações internacionais, intitulado Relatórios do declínio da Rússia são muito exagerados.

Por que essa crise neste momento? O cerne da questão é que os EUA decidiram que devem primeiro cortar as asas da Rússia antes de enfrentar a China.

 

Rússia e China

 

Embora não haja uma aliança militar formal entre Moscou e Pequim, a Rússia fornece "profundidade estratégica" à China simplesmente por ser uma grande potência que busca políticas externas independentes e compartilha uma visão alternativa à chamada ordem internacional liberal em termos de uma ordem mundial democratizada com base na Carta das Nações Unidas e na multipolaridade.

 

As relações Rússia-China estão no mais alto nível da história.

 

O pragmatismo da elite russa é legião. Os americanos aparentemente pensaram que o Kremlin poderia ser aplacado de alguma forma. As declarações de Putin devem ter sido um choque grosseiro. A questão é que as demandas maximalistas e a postura minimalista da Rússia são uma e a mesma.

 

Isso não deixa margem para manobras e negociações, mesmo para um político consumado como Joe Biden.

 

“Não temos para onde recuar”, disse Putin, acrescentando que a Otan poderia instalar mísseis na Ucrânia que levariam apenas quatro ou cinco minutos para chegar a Moscou. “Eles nos empurraram para uma linha que não podemos cruzar. Eles chegaram ao ponto em que simplesmente devemos dizer-lhes: ‘Pare!’ ”

 

Este artigo foi produzido em parceria pela Indian Punchline e Globetrotter, que o forneceu ao Asia Times.

 

M K Bhadrakumar é um ex-diplomata indiano.

 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

UM ARTIGO SOBRE O ÁGAPE DO PRERRÔ COM LULA

 Do Brasil 247

 

Ato do Prerrogativas com Lula e Alckmin inicia simbolicamente a reconciliação do País

O jantar que colocou na mesma mesa Lula e Geraldo Alckmin mostrou "como será possível reconciliar o Brasil", diz Luís Costa Pinto

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(Foto: Ricardo Stuckert)

Por Luis Costa Pinto, do Jornalistas pela Democracia

Quando às 21h30, as estridentes e mal posicionadas caixas de som do restaurante Figueira Rubayat, quase na esquina das ruas Haddock Lobo com Estados Unidos, nos Jardins, em São Paulo, começaram a tocar a melancólica “Grândola, vila morena” na noite do último domingo, o evento do Grupo Prerrogativas que homenagearia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva contabilizava uma hora e meia de atraso. Havia quase três horas, contudo, que Lula estava numa ampla sala reservada costurando com a maestria dos grandes estilistas a colcha de retalhos destinada a cobrir o Brasil numa Frente Ampla.

 À mesa, com o ex-presidente convocado a celebrar a própria resiliência na luta por resgatar os direitos políticos e a honra pessoal, estavam ou tinham estado lideranças de movimentos sociais e de partidos políticos diversos como um dos coordenadores do Movimento dos Sem Terra João Paulo Rodrigues, Vilma Reis e Douglas Belchior da Coalizão Negra por Direitos; juristas ou grandes advogados como Celso Antônio Bandeira de Mello, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Alberto Zacharias Toron, e um dos anfitriões da noite, Marco Aurélio de Carvalho; o jovem ciminalista Pierpaolo Bottini, um dos mais bem-sucedidos defensores de alvos da Lava Jato, estava lá junto com o nem tão jovem assim Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, também criminalista que virou uma espécie de porta-voz das prerrogativas defendidas pelo Prerrô; o economista e ex-ministro Bresser Pereira; o ex-deputado e ex-vice-governador paulista Almino Affonso; além de um rol de nomes da política contemporânea de amplo diapasão ideológico e partidário: Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação que lidera os cenários mais realistas da disputa pelo governo paulista; Márcio França, que tece um entendimento com Haddad para evitar divergências estéreis na corrida pelo mesmo cargo; o governador de Pernambuco, Paulo Câmara, e o prefeito do Recife, João Campos, ambos do PSB, escoltados pelo presidente dos socialistas, Carlos Siqueira. Deles depende a condução do entendimento entre França e Haddad. 

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Marília Arraes, deputada pelo PT de Pernambuco, prima e desafeta do jovem prefeito Campos, também sentou à mesa. Martha Suplicy, que ensaia um regresso aos palanques com apoio de petistas, idem. Gilberto Kassab, presidente do PSD, não só foi como levou consigo o senador Omar Aziz, que disputará pelo PSD o governo do Amazonas e presidiu a CPI da Covid no Senado. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, o senador Jaques Wagner, os governadores Rui Costa, da Bahia, e Welington Dias, do Piauí, e o ex-senador e o ex-ministro Aloizio Mercadante garantiam o quórum petista em todas as conversas. Ex-prefeito de Manaus, ex-senador pelo Amazonas, derrotado nas prévias presidenciais do PSDB, Arthur Virgílio fez questão de ir ao evento. 

Os deputados fluminenses Marcelo Freixo e Alessandro Molon, construtores de pontes que conduzam a esquerda ao governo do Rio, idem: estavam lá, aparando arestas e se posicionando para receber pontos e nós das tais costuras. Por fim, sempre ao lado de Lula enquanto o evento se dividia entre o que se especulava ocorrer na sala reservada do Figueira e a evidente tietagem ansiosa do salão do restaurante, o fio dourado da estrela que está a ser bordada: Geraldo Alckmin, o centrado e centrista ex-governador de São Paulo que abandonou o PSDB e só arremata ajustes finais para ser convertido em companheiro de chapa presidencial do petista – ou pelo PSB, o que é mais provável, ou pelo PSD. 

Tocada nas rádios portuguesas ao mesmo tempo no 25 de abril de 1974, “Grândola, vila morena” foi a senha para o início do movimento que pôs fim à ditadura iniciada por Antônio Salazar e depôs Marcelo Caetano, o títere do sistema salazarista em Portugal. Encarcerado em Curitiba em razão dos abusos da Lava Jato, no 25 de abril de 2019, quando se estava completando 45 anos da Revolução dos Cravos, Lula recebeu uma gravação de “Grândola, vila morena” na prisão e dançou na companhia de advogados e carcereiros, batendo os pés como faziam os tenentes, cabos e soldados portugueses, no cubículo em que estava confinado na capital paranaense. A passagem é narrada na ótima biografia “Lula, vol. 1” escrita por Fernando Morais. A escolha da canção para marcar o fim das articulações reservadas e o início da parte pública da cerimônia do último domingo não foi ironia nem coincidência. Foi homenagem àquela passagem melancólica que marcou Lula nos seus 580 dias na sede da Polícia Federal em Curitiba.

Rapidamente, o quase fado português deu lugar à vibrante “Anunciação” do pernambucano Alceu Valença. Ao som “das brumas leves que vêm de dentro” Luiz Inácio Lula da Silva atravessou todo o salão do Figueira Rubayat, lotado por 500 pessoas vacinadas e testadas negativamente para Covid-19 (passaporte de vacina e teste de antígeno eram exigidos na entrada do evento), e se instalou diante do pequeno palco improvisado no restaurante. “Tu vens, tu vens...”, cantava Alceu.

No pequeno palco, projetada ao fundo num telão, a imagem do advogado Sigmaringa Seixas pontificava e parecia explicar tudo. Morto no Natal de 2018, vítima de mielodisplasia (doença que provoca disfunções na medula óssea), Sigmaringa foi advogado de presos políticos na ditadura e exerceu mandatos de deputado federal pelo PMDB, PSDB e PT. Era um dos grandes articuladores do mundo jurídico. Amigo pessoal de Lula, recusou mais de um convite para ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, mas participou da definição de nomes diversos para vagas nos tribunais superiores. Quando o ex-presidente foi preso, Sig, como era chamado, acompanhou-o até a carceragem em Curitiba e visitava-o frequentemente até ser impossibilitado de fazê-lo em razão do mal que o vencia. Tendo o anúncio de seu nome aplaudido em respeitosa homenagem dos presentes ao jantar, o semblante sereno e sorridente de Sigmaringa parecia chancelar o que se passava por lá. Podia-se imaginar ouvir até gritos de “Sigmaringa, presente!”, tal era a pertinácia do semblante de Sig naquele palco.

“Estamos aqui para dizer que é necessário recolocar a fome na centralidade da política”, lembrou Vilma Reis, da Coalizão Negra. “A fome no Brasil é um projeto. Quem passa fome, pensa mais nos outros”, completou Douglas Belchior ao lado dela e olhando firme para o ex-presidente. Em seguida, juntos, punhos cerrados emulando gestos de resistência, os dois lideraram os gritos “se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo!”. Foi forte.

Vencida aquela página, o jurista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. Ex-secretário de Justiça e de Segurança Pública de São Paulo, ministro da Justiça por um brevíssimo período sob o período de Michel Temer na presidência, advogado do próprio Temer (prócer do golpe jurídico/parlamentar/classista de 2016 que depôs Dilma Rousseff), Mariz foi contundente. “Presidente Lula”, iniciou, sem se furtar jamais a sublinhar que “foi e será presidente de novo”. E Mariz seguiu de forma ainda mais surpreendente para quem o imaginava com ressalvas políticas dado sua trajetória pessoal: “estou aqui para hipotecar solidariedade à sua candidatura. Receba desse velho advogado, da advocacia brasileira, esta promessa: estaremos ao seu lado! Viva o Brasil, viva Lula!”.

Em seguida, Almino Affonso, 92 anos, decano dos velhos e bons hábitos da Política, assumiu o microfone e narrou em público a história de como sugeriu ao ex-presidente que fugisse da ordem de prisão buscando asilo numa embaixada e como a ideia foi rechaçada e comunicada a ele pelo escritor Fernando Morais. “Você dizia, Lula, que ia buscar provar sua inocência e restaurar seus direitos. Poucos confiavam nisso, poucos tinham a confiança na Justiça que você teve. Abraço-o em homenagem à Justiça”, disse Affonso. O petista já estava no palco e os dois trocaram um longo e simbólico abraço. Era a hora de Lula assumir o microfone e dar os recados diretos de tudo o que já não cabia em tantos símbolos. 

“Eu acredito que a verdade venceu. A verdade vence. A verdade vai continuar vencendo”, estabeleceu ele logo no início de sua fala ao agradecer e homenagear todos os advogados que estavam ali e que haviam lutado diretamente pelo restabelecimento de sua inocência e pela devolução dos direitos políticos que permitirão a candidatura presidencial em 2022 sem quaisquer ameaças jurídicas no horizonte. 

“Perseverar, insistir, é um ato político”, disse Lula. “E eu aprendi isso, a perseverar, a insistir, com Dona Lindu, minha mãe, que criou oito filhos sem ter de onde tirar dinheiro, sem emprego, mas, com muita decência”. Dirigindo-se aos advogados Valeska Teixeira, Rodrigo Zanin e Luiz Eduardo Greenhalgh, lembrou a todos: “eu sempre disse que não trocaria a minha dignidade pela minha liberdade”. Assim, explicava o porquê de não ter pedido asilo em embaixadas, como sugerira Almino Affonso. E prosseguiu: “é hora de perseverarmos juntos para restaurarmos a democracia no País”. Olhando o pelotão de jornalistas que estavam ali para cobrir o evento, para ouvi-lo, para testemunhar o monumental soerguimento da própria biografia política (que é, já monumental); falando diretamente para repórteres da mídia tradicional, que por muito tempo recusava-se a ouvi-lo como se estivesse cumprindo ordens das cúpulas das redações para eliminar personagem púbçica de tamanha dimensão do dia a dia da História do País; Lula deu o recado sem ódios, sem mágoas, sem recalques. Porém, convocando a que se fale verdades: “espero que algum dia a grande imprensa faça a própria autocrítica de tudo o que fizeram contra mim”.

Era hora, portanto, de procurar o ex-governador Geraldo Alckmin em meio ao público, encontra-lo com o olhar e mandar um papo reto. “Não importa se no passado fomos adversários, se trocamos algumas botinadas, se no calor da hora dissemos o que não deveríamos ter dito. O tamanho do desafio que temos pela frente faz de cada um de nós um aliado de primeira hora. É este o verdadeiro motivo pelo qual estamos reunidos aqui esta noite”. Os aplausos quase não deixaram parte do público ouvir a sequência relevante daquela parte do discurso: “eu não decidi a minha candidatura, porque estou com muito juízo, porque sei da responsabilidade que tenho quando disser que sou candidato a Presidente da República. Eu sei que o Brasil que vou pegar em 2023 é muito pior do que o Brasil que eu vou pegar em 2003. Não quero brincar com o povo brasileiro. Quem vai decidir essas coisas é o meu partido. E o meu partido tem História”. Daí, olhando para trás e dando uma piscadela para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, completou sorrindo: “e tem uma presidente que dá bronca que só ela!”. Novamente mirando Alckmin ao longe, referindo-se diretamente à costura da chapa com o ex-governador paulista como vice, sem querer nem poder ferir as susceptibilidades dos presidentes do PSB e do PSD que estavam ali à sua frente, mostrou que é um craque da alfaiataria de Alta Costura. “Quem vai decidir se a gente pode se juntar ou não é o meu partido e o partido dele, Alckmin. Então, nós temos de ter paciência. Nada acontece para o vice antes de acontecer para o presidente”. Quem entende os meandros da política, entendeu. E eram muitos os versados nos meandros, ali. 

Dados todos os recados, o ex-presidente Lula pôde então ficar à vontade sobre o palco e dar-se ao luxo de fazer algo meramente formal, o que é incomum em sua trajetória... ler um discurso escrito. Focado e obediente, leu cerca de trinta páginas – contudo, o que tinha de ser dito já havia sido dito com palavras, com gestos, com músicas, com a presença marcante de semblantes inesquecíveis como o olhar sorridente de Sigmaringa Seixas no fundo do palco. Passava um pouco das onze da noite quando começaram a ser entoados os acordes de “Sem Medo de Ser Feliz”, o jingle histórico de 1989. Lula estava lá, descendo do palco para pôr o pé na estrada depois de mostrar que é capaz de unir e forjar alianças inimagináveis. O ato do Grupo Prerrogativas estava então convertido em revelação de como será possível reconciliar o Brasil.

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

COMO O IMPÉRIO TRATA DE CALAR OS INSUBMISSOS

Caso da perseguição a Julian Assange. Publicado no Brasil 247. Impérios não de dão bem com liberdades democráticas

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Julian Assange (Foto: REUTERS / Simon Dawson)
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Publicado originalmente no ScheerPost.com. Escrito e traduzido por Chris Hedges

WASHINGTON, D.C. – Durante os últimos dois dias, estive assistindo via uma conexão de vídeo de Londres as oitivas para a extradição de Julian Assange. Os Estados Unidos estão apelando a decisão de um tribunal de primeira instância que indeferiu o pedido dos EUA para extraditar Assange – infelizmente, não porque na visão do tribunal ele seja inocente de um crime, porém – como a juíza Vanessa Baraitser concluiu em janeiro – porque o estado psicológico precário do Assange se deterioraria, dadas as “duras condições” do sistema inumano do sistema prisional dos EUA, “induzindo-o a cometer suicídio”. Os Estados Unidos indiciaram Assange em 17 acusações sob o Ato de Espionagem (Espionage Act), acusações que poderiam aprisioná-lo por 175 anos.

Assange, com o seu longo cabelo branco, apareceu na tela no primeiro dia da sala de videoconferência na Prisão de Belmarsh. Ele vestia uma camisa branca, com uma gravata sem nó, solta ao redor do seu pescoço. Ele aparentava estar esquelético e cansado. Os juízes explicaram que ele não estava na sala do tribunal porque estava recebendo a “uma alta dose de medicações”. No segundo dia, aparentemente ele não estava presente na sala de videoconferência da prisão.

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Assange está sendo extraditado porque a sua organização – Wikilieaks – publicou em outubro de 2010 os registros da Guerra do Iraque, os quais documentam numerosos crimes de guerra dos EUA – incluindo imagens de vídeo do fuzilamento de dois jornalistas da agência Reuters e de 10 outros civis desarmados, registrado no vídeo de assassinatos ‘Collateral’, sobre a tortura rotineira de prisioneiros iraquianos, o encobrimento de milhares de mortes de civis e o assassinato de cerca de 700 civis que chegaram perto demais de postos de controle dos EUA. Ele também está sendo visado pelas autoridades dos EUA por outros vazamentos – especialmente aqueles que expuseram as ferramentas de hacking usadas pela CIA, conhecidas como Vault 7 (Cofre 7), que permitem à agência de espionagem vigiar carros, TVs inteligentes, motores de busca na internet e os sistemas operacionais da maior parte dos telefones celulares, bem como de sistemas operacionais como Microsoft Windows, macOS e Linux.

Caso Assange seja extraditado e for considerado culpado de publicar material classificado, isso estabelecerá um precedente legal que porá efetivamente um fim às reportagens sobre segurança nacional, permitindo que o governo use o Ato de Espionagem (Espionage Act) para indiciar qualquer repórter que possua documentos classificados e qualquer denunciante (whistleblower) que vaze informações classificadas.

Se a apelação (recurso judicial) dos Estados Unidos for aceita, Assange será julgado novamente em Londres. Não se espera que a sentença sobre a apelação ocorra antes de janeiro de 2022.

O julgamento de Assange em setembro de 2020 expôs dolorosamente quão vulnerável ele tornou-se após 12 anos de detenção, incluindo os sete anos passados na embaixada equatoriana em Londres. No passado, ele tentou o suicídio cortando os seus pulsos. Ele sofre de alucinações e de depressão, toma medicação antidepressiva e o remédio antipsicótico Quetiapine. Depois que se observou que ele caminhava de um lado para o outro na sua cela até colapsar no chão, que ele batia na sua própria face e batia a sua cabeça contra a parede, ele foi transferido por alguns meses para a ala médica da prisão de Belmarsch. As autoridades da prisão descobriram “metade de uma lâmina de barbear” escondida sob as suas meias. Ele chamou repetidamente a linha de ajuda contra suicídio operada pelos Samaritanos, porque pensava em matar-se “centenas de vezes por dia”.

James Lewis, o advogado que representa o governo dos Estados Unidos, tentou desacreditar os relatórios médicos e psicológicos detalhados e perturbadores sobre Assange que foram apresentados ao tribunal em setembro de 2020, tentando caracterizá-lo como um mentiroso e um fingidor. O mesmo advogado desqualificou a decisão da Juiza Baraitser de impedir a extradição, questionou a competência dela e, de forma leviana, ignorou as montanhas de evidências de que os prisioneiros de alta segurança nos EUA - como Assange - são sujeitados à Medidas Administrativas Especiais (Special Administrative Measures – SAMs) e ficam detidos praticamente em isolamento virtual nas prisões supermax (prisões de segurança máxima), sofrem de aflição psicológica. O advogado de acusação atacou o Dr. Michael Kopelman - professor emérito do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College de Londres, quem examinou Assange e testemunhou pela defesa – acusando-o de enganar o ao “ocultar” o fato de que Assange gerou duas crianças com a sua noiva Stella Morris enquanto estava refugiado na embaixada equatoriana em Londres. Ele disse que, caso o governo australiano pedisse, Assange poderia cumprir o seu tempo de prisão na Austrália, sua terra natal, depois que as apelações tivessem sido exauridas, porém evitou prometer que Assange não seria detido em isolamento, ou que ficasse sujeito às SAMs.

A autoridade repetidamente citada por Lewis para descrever as condições sob as quais Assange seria detido e julgado nos Estados Unidos foi Gordon Kromberg – o promotor público assistente do Distrito Leste da Virginia. Kromberg, é o grande inquisidor do governo em casos de terrorismo e segurança nacional. Ele expressou abertamente o seu desdém por muçulmanos e pelo Islamismo e condenou aquilo que ele chama de “islamização do sistema de justiça estadunidense”. Ele supervisionou os 9 anos de perseguição contra o ativista e acadêmico Dr. Sami Al-Arian e, num certo momento, recusou o pedido deste último para postergar a data da sua apresentação ao tribunal para após o feriado religioso de Ramadan. “Eles podem matar-se entre sí durante o Ramadan, portanto podem apresentar-se ao tribunal do júri. Eles só não podem comer antes do pôr do sol”, disse Kromberg numa conversa em 2007 - segundo uma declaração juramentada submetida por um dos advogados de Arian, Jack Fernandez.

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Kromberg criticou a Daniel Hale - o ex-analista da Força Aérea dos EUA que foi recentemente condenado a 45 meses numa prisão supermax (de segurança máxima) por haver vazado informações sobre as matanças indiscriminadas de civis feitas com drones - dizendo que Hale não contribuiu para o debate público, mas “colocou em perigo as vidas das pessoas que fazem a luta”. Ele ordenou que Chelsea Manning fosse aprisionada depois que ela se negou a testemunhar frente a um grande júri que investigava o WikiLeaks. Manning tentou cometer suicídio em março de 2020, enquanto estava detida na prisão da Virginia.

Tendo feito a cobertura do caso de Syed Fahad Hashmi, que foi preso em Londres em 2006, eu tenho uma boa ideia do que aguarda Assange se ele for extraditado. Hashmi também foi detido em Belmarsch e foi extraditado aos Estados Unidos em 2007, onde passou três anos em confinamento solitário sob os SAMs. O seu “crime” foi que um conhecido que ficou no seu apartamento quando ele era estudante de mestrado em Londres tinha capas de chuva, ponchos e meias impermeáveis em depósito guardadas no apartamento dele. Este conhecido planejava entregar estes itens ao al-Qaida. Mas eu duvido que o governo estivesse preocupado com as meias impermeáveis que seriam enviadas ao Paquistão. Suspeito que a razão pela qual Hashmi foi visado – assim como no caso do ativista palestino Dr. Sami Al-Arian e como no de Assange – era que ele não tinha medo e dedicava-se zelosamente à defesa daqueles que estavam sendo bombardeados, alvejados por tiros, aterrorizados e mortos em todo o mundo muçulmano enquanto ele estudava no Brooklyn College.

Hashmi era profundamente religioso e alguns dos seus pontos de vista – incluindo o seu louvor à resistência afegã – eram controversos, porém ele tinha o direito de expressar estes sentimentos. Ainda mais importante, ele tinha o direito de esperar ter a liberdade de não ser perseguido nem aprisionado por causa das suas opiniões – assim como Assange deveria ter a liberdade, como qualquer jornalista, de informar o público sobre o funcionamento interno do poder. Ao enfrentar a possibilidade de ser sentenciado a 70 anos de prisão e tendo já passado quatro anos na cadeia – a maior parte daquele tempo em confinamento solitário – Hashmi aceitou fazer uma delação premiada sobre uma acusação de conspiração para fornecer material de apoio ao terrorismo. A juíza Loretta Preska – que sentenciou o hacker Jeremy Hammond e o advogado de direitos humanos Steven Donziger – o condenou à sentença máxima de 15 anos. Hashmi ficou detido durante nove anos em condições similares às de Guantánamo nas instalações de supermax ADS (Administrative Maximum System) em Florence, Colorado – onde, se considerado culpado em um tribunal estadunidense, é quase certo que Assange seria aprisionado. Hashmi foi liberto em 2019.

As condições de detenção pré-julgamento que Hashmi sofreu foram planejadas para quebrá-lo psicologicamente. Ele foi monitorado eletronicamente 24 horas por dia. Ele só podia receber ou enviar correio à sua família imediata. Ele foi proibido de falar com outros prisioneiros através das paredes. Lhe proibiram de participar de rezas em grupo. Lhe permitiam uma hora de exercícios por dia, numa jaula solitária sem ar fresco. Ele não pôde ver a maior parte das evidências usadas para indiciá-lo – as quais foram classificadas segundo o Ato de Procedimento de Informações Classificadas (Classified Information Procedures Act), promulgado para evitar que agentes de inteligência dos EUA processados judicialmente revelem segredos de estado, para manipular os procedimentos legais. As duras condições debilitaram a sua saúde física e psicológica. Quando ele apareceu em público no tribunal no procedimento final para aceitar a delação premiada, ele estava em um estado quase-catatônico, claramente incapaz de acompanhar os procedimentos ao seu redor.

Se o governo dos EUA chegar ao ponto de perseguir alguém que alegava estar envolvido em mandar meias impermeáveis para o al-Qaida, o que se pode esperar que o governo faça a Assange?

Uma sociedade que proíbe a capacidade de falar, na verdade extingue a capacidade de viver com justiça. A batalha pela liberdade de Assange sempre foi muito mais do que sobre a perseguição a um jornalista. Esta é a batalha mais importante pela liberdade de imprensa  da nossa era. Caso percamos esta batalha, isto será devastador não só para Assange e a sua família, porém para nós mesmos.

As tiranias invertem o estado de direito. Estas transformam a lei num instrumento de injustiça. Elas encobrem os seus crimes numa falsa legalidade. Elas usam o decoro dos tribunais e dos julgamentos para mascarar a sua criminalidade. Aqueles que, como Assange, expõem esta criminalidade para o público são perigosos – eis que, sem o pretexto da legitimidade, a tirania perde a sua credibilidade e nada sobra no seu arsenal senão o medo, a coerção e a violência. A longa campanha contra Assange e o Wikileaks é uma janela para o colapso do estado de direito, para o surgimento daquilo que o filósofo Sheldon Wollin chama de o nosso sistema de totalitarismo inverso, uma forma de totalitarismo que mantém a ficção da velha democracia capitalista – incluindo as suas instituições, iconografia, símbolos patrióticos e retórica – porém, internamente, rendeu-se ao controle total dos ditames das corporações globais e a segurança e vigilância do estado.

Não existe base legal para manter Assange na prisão. Não há base legal para julgá-lo, um cidadão australiano, sob o Ato de Espionagem dos EUA. A CIA espionou Assange na embaixada equatoriana em Londres através de uma empresa espanhola – a UC Global – contratada para prover a segurança da embaixada. Esta espionagem incluía a gravação das conversas privilegiadas entre Assange e os seus advogados, enquanto estes discutiam a sua defesa. Este fato bastaria para invalidar o julgamento. Assange está sendo mantido numa prisão de alta segurança de modo que o estado – como testemunhou Nils Melzer, o Relator Especial sobre Tortura da ONU – possa continuar o degradante abuso e tortura que espera que leve à sua desintegração psicológica, senão física. Os arquitetos do imperialismo, os senhores da guerra, os braços legislativos, judiciais e executivos dos governos controlados pelas corporações e os seus obsequiosos cortesãos do setor de mídia. Prove esta verdade – como Assange, Chelsea Manning, Jeremy Hammond e Edward Snowden o fizeram – permitindo que possamos analisar os mecanismos internos do poder, e você será caçado e perseguido.

O “crime” de Assange é que ele expôs as mais de 15 mil mortes não-relatadas de civis iraquianos. Ele expôs a tortura e o abuso em Guantánamo de uns 800 homens e meninos, com idades de 14 a 89 anos. Ele expôs que, em 2009, Hillary Clinton ordenou que diplomatas dos EUA espionassem o Secretário-Geral da ONU Ban Ki Moon e outros representantes na ONU da China, França, Rússia e o Reino Unido – espionagem que incluía a obtenção do DNA, varredura de írises, impressões digitais e senhas pessoais – como parte de um extenso padrão de vigilância ilegal que incluía a espionagem sobre o Secretário Geral da ONU Kofi Annan durante as semanas que antecederam a invasão do Iraque pelas tropas lideradas pelos EUA em 2003. Ele expôs que Barak Obama, Hillary Clinton e a CIA orquestraram o golpe militar em Honduras em junho de 2009, o qual destituiu o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya, substituindo-o por um regime militar assassino e corrupto. Ele expôs que George W. Bush, Barak Obama e o General David Patraeus executaram no Iraque uma guerra que, segundo as leis pós-Nuremberg, é definida como uma guerra criminosa de agressão, um crime de guerra, o qual autorizava centenas de assassinatos direcionados no Yemen – incluindo os de cidadãos estadunidenses. Ele expôs que os Estados Unidos lançaram secretamente mísseis, bombas e ataques de drones no Yemen, matando dezenas de civis. Ele expôs que a Goldman Sachs pagou 657 mil USD à Hillary Clinton para dar palestras – uma soma tão grande que só pode ser considerada como suborno, e que ela garantiu, em privado, aos líderes corporativos, que ela defenderia os interesses destes, enquanto prometia ao público a regulação e reforma financeira. Ele expôs a campanha interna para desacreditar e destruir o líder do Partido Trabalhista Britânico Jeremy Corbin, feita por membros do próprio partido deste. Ele expôs como as ferramentas de hacking usadas pela CIA e a NSA (National Security Agency – Agência Nacional de Segurança dos EUA) permitem a vigilância em massa do governo sobre as nossas televisões, computadores, telefones celulares e softwares antivírus – permitindo que o governo grave e armazene as nossas conversas, imagens e mensagens privadas de texto, até mesmo de aplicações encriptadas.

Ele expôs a verdade. Ele a expôs uma vez após a outra, reiteradamente, até que não houvesse mais dúvidas sobre a ilegalidade, corrupção e falsidade endêmicas que definem a elite dominante global. E ele é culpado apenas por estas verdades.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

UM VOO ALTO POR SOBRE A GEOPOLÍTICA DA ENERGIA

De interesse especial para colegas do IEE-USP. Peguei no Counterpunch, onde estão links para várias das referências feitas no texto. O artigo não traz novidades para quem acompanha a evolução tecnológica e econômica da questão energética, mas dá o devido destaque a alguns problemas básicos atuais, principalmente as implicações da crise sobre países mais pobres e menos ricos.

O que podemos fazer ou perdemos por não fazer.- cidadãos conscientes, politicamente ativos, ou alienados, ignorantes, os donos do poder e seus corpos geradores de ideias e decisões, as academias, os países sub, os países ricos, acerca das decisões que vão nos empurrando para os desastres de desagregação a se deflagrarem com crise do clima?

Aproveito para indicar para quem se interessa em visões planetárias dos problemas e questões ligados à crise do clima. São do Stockholm Environment Institute e Tellus Institute. Dois livretos que podem ser baixados em pdf ou comprados em forma física ou digital. Seus nomes, The Great Transition, e Journey to Earthland.   Nos dois tem o nome do autor do segundo e um dos autores do primeiro, Paul Raskin.


9 de dezembro de 2021

Por que as nações mais pobres não estão caindo pelo imperialismo lavado de verde


 

 Fonte da fotografia: francis mckee - CC BY 2.0

 

Combater o aquecimento global não é apenas produzir um roteiro para emissões líquidas zero de carbono para todos os países. Trata-se também de descobrir a melhor forma de atender às necessidades de energia das pessoas em todo o mundo, ao mesmo tempo que se trabalha para obter zero emissões líquidas. Se os combustíveis fósseis tiverem de ser abandonados, o que agora se tornou uma necessidade urgente devido aos atuais desafios ambientais, os países da África e uma parte significativa da Ásia, incluindo a Índia, precisam de um caminho alternativo para fornecer eletricidade a seu povo. Qual é, então, o melhor caminho alternativo para os países mais pobres seguirem para a produção de eletricidade - se eles não usam a rota do combustível fóssil - que está sendo usada pelos países ricos? Isso, por sua vez, também levanta questões sobre quanto essa rota de fonte de energia alternativa custará aos países mais pobres e quem pagará as contas incorridas ao fazer a mudança para essa nova fonte de energia.

 

As discussões sobre essas questões, que são pertinentes à resolução da crise climática, estiveram completamente ausentes da agenda da COP26, concluída em 13 de novembro. O financiamento de uma trajetória de baixa emissão de carbono foi convenientemente desvinculado dos compromissos de redução das emissões de carbono e agora enfrenta um futuro incerto, com os países desenvolvidos deixando de cumprir sua "promessa" anterior de fornecer financiamento às nações em desenvolvimento para "ajudá-los a se adaptar às mudanças climáticas e mitigar aumentos adicionais de temperatura".

 

Alguns números são importantes aqui para entender até que ponto as nações em desenvolvimento têm contribuído para a atual crise climática e para as emissões de gases de efeito estufa. A União Europeia mais o Reino Unido (UE-Reino Unido) produzem mais do que o dobro das emissões de carbono de todo o continente africano, com menos da metade da população africana. Com menos de um quarto da população da Índia, os Estados Unidos emitem significativamente mais carbono do que a Índia - quase o dobro.

 

Argumenta-se que, como o custo da eletricidade a partir de fontes renováveis agora tem caido abaixo do custo da eletricidade a partir de combustíveis fósseis, deveria ser possível para todos os países, ricos ou pobres, eliminar os combustíveis fósseis completamente e mudar para fontes de energia renováveis sem abordar o questão de financiamento. É verdade que o custo por unidade de eletricidade gerada com energias renováveis é menor hoje do que com combustíveis fósseis. O que, entretanto, foi esquecido aqui é que para os países pobres fazerem essa mudança, eles precisariam construir três ou quatro vezes a capacidade de gerar eletricidade a partir de fontes renováveis para fornecer a mesma quantidade de energia que obtêm atualmente de usinas de combustível fóssil. Isso ocorre porque o fator de capacidade ou o fator de carga da planta (PLF) - quanta eletricidade uma planta produz em comparação com o que ela pode produzir trabalhando continuamente em plena capacidade - para fontes de energia renováveis é cerca de 20-40 por cento do de plantas movidas a combustíveis fósseis. O vento não sopra o tempo todo; nem o sol brilha à noite. Isso significa que um país terá que construir várias vezes a capacidade - e, portanto, investir mais capital - usando a rota renovável para gerar a mesma quantidade de eletricidade que obteria de usinas movidas a combustíveis fósseis.

 

Este nível de investimento em energias renováveis pode não ser um problema para um país rico. Mas para um país pobre que tenta construir sua infraestrutura básica de eletricidade, estradas, ferrovias e outras infraestruturas públicas, incluindo escolas, universidades e instituições de saúde, essa mudança para as energias renováveis não será fácil sem o apoio financeiro dos países ricos. É por isso que os países ricos pedirem aos países pobres que façam promessas de zero líquido sem se comprometer a fornecer-lhes dinheiro é completamente hipócrita. Amanhã, os países ricos podem - e muito provavelmente irão - virar-se e dizer que os países pobres se comprometeram a garantir emissões líquidas zero, e que agora devem tomar empréstimos dos países ricos a altas taxas de juros e cumprir suas promessas, ou então enfrentarão sanções. Em outras palavras, isso levaria a uma nova forma de colonialismo verde.

 

O segundo problema com as energias renováveis como a principal fonte de eletricidade é que existem custos adicionais significativos para configurar a rede para o armazenamento de eletricidade de curto ou longo prazo. Isso serve para equilibrar as flutuações diárias e sazonais que podem surgir. Por exemplo, em 2021, a Alemanha viu uma desaceleração significativa dos ventos no verão, levando a uma queda acentuada na eletricidade gerada pelo vento. No caso deles, a Alemanha equilibrou a baixa produção de energia eólica aumentando a produção de eletricidade a partir de usinas movidas a carvão, fazendo com que suas emissões de gases de efeito estufa aumentassem significativamente. Em um cenário em que não existem usinas movidas a carvão, o que os países farão quando a capacidade de energia renovável flutuar?

 

Embora as flutuações diárias para países que usam fontes de energia renováveis possam ser atendidas com grandes baterias do tamanho da rede, isso não é viável devido às variações sazonais. Esses países terão que usar esquemas de armazenamento com energia hidrelétrica bombeada ou armazenamento de hidrogênio em grandes quantidades para uso em células de combustível. Um esquema hidrelétrico de armazenamento bombeado significa bombear água até um reservatório quando há energia excedente disponível para a rede e usá-la para produzir eletricidade quando há uma escassez. Armazenar hidrogênio em quantidades grandes o suficiente para atender às necessidades sazonais da rede é ainda outra ideia que precisa ser explorada e avaliada quanto à sua viabilidade técnica e econômica.

 

O ponto aqui é que a mudança para uma rede inteiramente baseada em energia renovável, ainda está tecnologicamente distante. Precisamos desenvolver novas tecnologias para armazenamento de energia. E podemos precisar usar fontes concentradas de energia - fóssil ou nuclear - para atender à necessidade de flutuações diárias ou sazonais até aquele momento.

 

A outra possibilidade é usar combustíveis fósseis sem emissões de gases de efeito estufa. Significa não deixar o dióxido de carbono escapar para a atmosfera e, em vez disso, bombeá-lo para reservatórios subterrâneos; ou o que é chamado de captura e sequestro de carbono. Esses projetos de captura de carbono em países ricos foram abandonados na crença de que as energias renováveis resolveriam o problema das emissões de carbono. Agora está claro que ter energias renováveis como a única fonte de energia em uma rede não é suficiente, e o mundo pode precisar também buscar outras soluções.

 

Enquanto isso, a curto prazo, a energia nuclear não parece ser uma solução permanente para avançar em direção a fontes de energia mais limpas, pois “não há tempo suficiente para a inovação nuclear salvar o planeta”, de acordo com um artigo recente na Foreign Affairs. Isso significa que gás, petróleo e carvão são as únicas soluções de curto prazo diante de nós para atender às flutuações de longo e curto prazo na produção de energia. E aqui fica clara a duplicidade dos países ricos. Países ricos como Europa e EUA têm recursos suficientes de gás. Países mais pobres, como Índia e China, não; eles só têm recursos de carvão. Em vez de discutir a quantidade de gases de efeito estufa que cada país deve emitir, os países ricos decidiram se concentrar em qual combustível precisa ser eliminado. Sim, o carvão emite duas vezes a quantidade de dióxido de carbono em comparação com as usinas a gás para a produção da mesma quantidade de energia elétrica. Mas se os países produzirem duas vezes mais eletricidade de usinas movidas a gás do que de carvão, eles ainda produzirão a mesma quantidade de emissões de carbono. Se os EUA ou a UE-Reino Unido estão produzindo mais emissões de carbono do que a Índia ou a África - que têm populações maiores - por que pedir apenas a eliminação gradual do carvão, enquanto nenhuma meta é definida pelos EUA ou UE-Reino Unido para a eliminação gradual de seu carbono emissões pelo uso de usinas movidas a gás?

 

É aqui que a questão da justiça energética se torna importante. O uso de energia per capita dos EUA é nove vezes maior do que o da Índia, enquanto o uso de energia per capita do Reino Unido é seis vezes maior do que o da Índia. Se considerarmos os países da África Subsaariana, como Uganda ou República Centro-Africana, seu consumo de energia é ainda menor, ou seja, os EUA consomem 90 vezes, o Reino Unido 60 vezes mais energia do que esses países! Por que deveríamos então falar apenas sobre quais combustíveis precisam ser eliminados e não sobre quanto os países precisam cortar imediatamente suas emissões de carbono?

 

Não estou levantando aqui a questão de uma parcela equitativa do espaço de carbono e, se um país usou mais do que sua parcela justa do espaço de carbono, como deveria compensar os países mais pobres por isso. Estou simplesmente apontando que, ao falar sobre emissões líquidas zero e eliminação de certos combustíveis, os países ricos continuam em seu caminho de emissões excessivas de carbono, enquanto mudam as metas para outros.

 

A última palavra em hipocrisia é a da Noruega. Em um momento em que está expandindo sua própria produção de petróleo e gás a Noruega, junto com outros sete países nórdicos e bálticos, tem feito lobby junto ao Banco Mundial "para interromper todo o financiamento de projetos de gás natural na África e em outros lugares logo em 2025", de acordo com um artigo intitulado “As políticas climáticas dos países ricos são colonialismo verde” na revista Foreign Policy, que foi escrito por Vijaya Ramachandran, diretor de energia e desenvolvimento do Breakthrough Institute.

 

Embora a Noruega possa ter sido o caso mais flagrante, 20 países adotaram resoluções semelhantes na COP26 para acabar com o “financiamento para o desenvolvimento de combustíveis fósseis no exterior”, de acordo com o Guardian. Para eles, as negociações sobre mudanças climáticas são a forma de manter suas posições energéticas dominantes, negando não apenas as reparações climáticas, mas também financiamentos aos países mais pobres que estão tentando fornecer a seu povo energia de subsistência.

 

É claro que nenhum país do mundo tem futuro se não parar a emissão contínua de gases de efeito estufa. Mas se os países ricos também não encontrarem um caminho para os países mais pobres atenderem o nível mínimo de necessidades de energia, eles verão o colapso de grandes áreas de seus próprios países. É lógico pensar que os países na África Subsaariana podem continuar vivendo com um nonagésimo do consumo de energia dos EUA sem que haja consequências para todos os países?

 

O primeiro-ministro indiano Narendra Modi e seus seguidores podem acreditar que a Índia está se tornando um país desenvolvido, até mesmo uma superpotência. O fato é que, no consumo de eletricidade per capita, a Índia está, de fato, mais próxima da África do que da China ou do clube das nações ricas, dos EUA, do Reino Unido e da UE. Enfrentar o clima sem justiça energética é apenas uma nova versão de colonialismo, mesmo que vestido de verde. Ramachandran afirma que isso é o que é, escrevendo: “Perseguir as ambições climáticas nas costas das pessoas mais pobres do mundo não é apenas hipócrita - é imoral, injusto e colonialismo verde na sua pior forma. ”

 

Artigo produzido em parceria por Newsclick e Globetrotter.