terça-feira, 29 de agosto de 2023

Dívida: Os primeiros 5000 anos

 Esta resenha foi publicada em resistir.info. Eu já comprei o livro, na língua original (inglês), em e-book. A versão brasileira impressa pode ser encontrada em sebos, como a estante virtual. O livro trata de questões muito importantes, fundamentais. Trata-se de um autor que foi muito atuante nos movimentos de massa contra o poder financeiro que adotaram o nome de Occupy Wall Street.

Jorge Figueiredo

Capa de 'Debt: The First 5000 Years'.

Debt: The First 5000 Years, de David Graeber (1961-2020), é um livro ambicioso pelo âmbito da sua investigação – âmbito que não é apenas temporal é, também e sobretudo, conceitual. Este livro só poderia ser escrito por um antropólogo, nunca por um economista vulgar formatado pela teoria econômica mainstream. No caso de Graeber, por um antropólogo assumidamente anarquista – o que o diferencia dos marxistas, que muitas vezes tendem a desprezar ou ignorar aspectos subjetivos e superestruturais dos problemas sociais. Por tudo isso, trata-se de um livro diferente do habitual nas histórias econômicas.

A investigação de Graeber é extensa (542 p.). Ela incide em aspectos pouco estudados (ou quase inteiramente ignorados) pela teoria econômica convencional. Ela principia logo por uma questão que parece auto-evidente mas não é, a de que “as dívidas têm de ser pagas”. No primeiro capítulo, intitulado “Sobre a experiência de confusão moral”, Graeber recorda que este princípio tão arraigado nas mentes de toda a gente não é realmente uma declaração econômica e sim uma declaração moral. E afirma: “Se a história mostra alguma coisa, é que não há melhor meio de justificar relações fundadas sobre a violência, para fazê-las parecerem morais, do que reformulá-las na linguagem da dívida – acima de tudo porque fazem imediatamente parecer que é a vítima que está a fazer algo errado. Os mafiosos entendem isso, assim como os comandantes do exércitos conquistadores”. Daí o programa revolucionário único, desde o mundo antigo: “Cancelar as dívidas e redistribuir a terra”. Na Mesopotâmia já era assim e então não havia FMI.

“Nossa tendência para ignorar isto é mais peculiar quando se considera quanto da nossa linguagem moral e religiosa contemporânea emergiu originalmente de modo direto destes mesmos conflitos. Termos como “cálculo” (reckoning), ou “redenção” são apenas os mais óbvios, tomados da antiga finança. Num sentido mais amplo, o mesmo se pode dizer de “culpa”, “liberdade”, “perdão” e mesmo “pecado”. Argumentos acerca de quem realmente deve a quem têm desempenhado um papel central na modelação do nosso vocabulário básico do certo e do errado”, diz Graeber.

O segundo capítulo arrasa um dos mitos propalados por todos os manuais de política monetária, o de que o comércio teria tido o escambo (barter) como origem. Aqui Graeber atira-se aos economistas como gato a bofe e é demolidor. “Qual é a diferença entre uma mera obrigação, um senso de que convém comportar-se de um certo modo, ou mesmo que deve alguma coisa a alguém, e uma dívida propriamente dita?”, pergunta Graeber. E responde de forma cristalina: “A resposta é simples: dinheiro. A diferença entre uma dívida e uma obrigação é que uma dívida pode ser precisamente quantificada. Isto exige moeda”.

O MITO DO ESCAMBO

Assim, não é só a moeda que torna a dívida possível: a moeda e a dívida surgiram em cena exatamente ao mesmo tempo. Tal como também tem apontado Michael Hudson, não faltam exemplos através dos séculos para o confirmar. Dessa forma, uma história da dívida é também uma história da moeda – uma não pode existir sem a outra. No entanto, “quando economistas falam das origem da moeda, a dívida é sempre algo como uma reflexão posterior. Primeiro veio o escambo, depois a moeda, o crédito só se desenvolveu mais tarde”. Mas trata-se de uma cronologia profundamente errada martelada na cabeça de gerações de economistas. Na verdade, o escambo é um mito fantástico concebido para apresentar a invenção da moeda como um mero facilitador de trocas. Trata-se na verdade do grande mito fundador da disciplina da teoria econômica, que remonta a Adam Smith.

Imposto de palhota.

A demonstração de Graeber é concludente e ele alinha incontáveis exemplos históricos para demonstrar a falsidade deste mito fundador, com exemplos tomados em todos os continentes. Acrescentarei mais um que não está no livro: Quando o colonialismo português na África quis assalariar a mão-de-obra local criou o “Imposto de Palhota”, para os seus proprietários. Mas os nativos viviam numa economia pré-monetária, não dispunham de moeda e nem dela precisavam. Assim, a única maneira que tinham de obtê-la e poderem pagar esta dívida fiscal – escapando às penas da lei – era serem contratados para trabalhar nas plantações. É mais um caso em que moeda & dívida surgiram em simultâneo, confirmando a tese de Graeber.

O terceiro capítulo chama-se “Dívidas primordiais” e trata dos mitos fundadores da Teoria Econômica. Graeber recorda aí que os manuais correntes de teoria econômica recorrem a exemplos de aldeias imaginárias com trocas por escambo porque é impossível falar de exemplos reais. É bem sabido que os economistas mainstream desde há muito jogaram pela borda fora a teoria do valor trabalho de Smith assim como a sua condenação das sociedades por ações – mas nunca puderam lançar ao mar o mito do escambo porque ele é central em todo o discurso da teoria econômica. Em A riqueza das nações Smith tentava fundar uma nova disciplina como ciência, com o seu próprio objeto de estudo – o que se chama agora “a economia” e que muitos chamam “o mercado”. Graeber discute, no entanto, se tais mercados existem naturalmente e afirma que sem moeda (e sem o papel da política governamental) eles não poderiam existir.

Moedas, mercados e impostos são portanto determinados pelos que têm o poder. Graeber cita o exemplo de Madagascar, onde uma das primeiras coisas que fez o seu conquistador (1901), o general francês Galieni foi aplicar um imposto per capita. “Não só o imposto era alto como só podia ser pago em francos malgaxes”, explica Graeber. Por outras palavras, ele imprimiu dinheiro e a seguir exigiu que todos no país lhe devolvessem algum. É divertido (para nós hoje, não para os malgaxes) ver os nomes que lhe atribuíram:   “impôt moralisateur”, “imposto educacional”, ou “taxa moralizadora”. A ideia era ensinar aos nativos o valor do trabalho... Em suma, Estados criam mercados e mercados exigem Estados. Nenhum deles pode continuar sem o outro.

O capítulo “Crueldade e redenção” recorda que quase tudo é aceitável para ser utilizado como moeda:   vinho, sal, galinhas, arenques, etc. Exemplo: plantadores da Virgínia colonial conseguiram aprovar uma lei obrigando os lojistas a aceitarem tabaco como pagamento. Na verdade a moeda “é quase sempre algo a pairar entre uma mercadoria (commodity) e uma unidade de conta de dívida (debt-token). No caso da moeda metálica cunhada pelo poder político ela pode mesmo atingir valor mais alto do que o metal (ouro ou prata) nela contido.

A REDENÇÃO

A ambivalência da moeda como título de dívida e como poder do Estado manifesta-se também na etimologia. Graeber tem observações agudas a respeito: “Por que, por exemplo, nos referimos a Cristo como o “redentor”? O significado primário de “redenção” é comprar alguma coisa de volta, ou recuperar algo de que se abriu mão em garantia por um empréstimo; adquirir algo pelo reembolso de uma dívida. É especialmente impressionante pensar que o próprio núcleo da mensagem cristã, a própria salvação, o sacrifício do próprio filho de Deus para resgatar a humanidade da danação eterna, devesse ser enquadrado na linguagem de uma transação financeira”.

Depois de recordar a famosa “Lei do Jubileu” – a qual estipulava que todas as dívidas seriam automaticamente canceladas no “ano do Sabbath” (depois de sete anos) e que todos os que padeciam o cativeiro de dívidas seriam libertados – Graeber recorda que “Na Bíblia, tal como na Mesopotâmia, 'liberdade', referia-se acima de tudo à libertação dos efeitos da dívida”.

O capítulo cinco tem um título que lembra os de livros antigos:   “Um breve tratado sobre os terrenos morais das relações económicas”. Começa por considerar que “para contar a história da dívida, então também é necessário reconstruir como a linguagem do mercado acabou por impregnar todos os aspetos da vida humana – chegando a fornecer a terminologia para as vozes morais e religiosas que contra ela se levantam”. Entretanto, será necessário distinguir entre dívidas propriamente ditas e obrigações – não são a mesma coisa. Graeber, como antropólogo, corrobora a tese com numerosos casos retirados da experiência africana. A etimologia ajuda. Graeber recorda: “Em inglês, 'thank you' deriva de 'think'. Originalmente significa, 'Recordarei o que fez por mim' – o que habitualmente não é verdadeiro – mas em outras línguas (o português 'obrigado' é um bom exemplo) o têrmo padrão segue a forma do inglês 'much obliged' – que realmente significa 'Eu sou seu devedor'. O francês merci é ainda mais ilustrativo: deriva de 'piedade' ('mercy'), como que a implorar por piedade; ao dizer isto você está simbolicamente a colocar-se em poder do seu benfeitor – uma vez que um devedor é, afinal de contas, um criminoso”.

JOGOS COM SEXO E MORTE

“Jogos com sexo e morte” é o título bombástico do sexto capítulo (quem diria num livro sobre a história da dívida...). Graeber aí conta o caso de Neil Bush (irmão do George W.), o qual, durante a tramitação do divórcio com a sua esposa, admitiu múltiplas infidelidades com mulheres que, afirmou, apareciam misteriosamente no seu quarto de hotel após importantes reuniões de negócios na Tailândia e em Hong Kong. E cita um um episódio da audiência em tribunal:

"Tem de admitir que é extraordinário", observou um dos advogados da sua esposa, "um homem ir à porta de um quarto de hotel, abrir, encontrar uma mulher ali e ter relações sexuais com ela".
"Era muito invulgar", respondeu Bush, admitindo, no entanto, que isso lhe tinha acontecido em várias ocasiões.
"Eram prostitutas?"
"Não sei".

E Graeber conclui: “De facto, tais coisas parecem quase normais quando o big money entra em jogo”. Os exemplos que menciona são vastos, desde tempos antigos até à atualidade, eles vão desde a tribo dos Tiv (Nigéria Central) até aos Nuer (Sudão do Sul), aos Lele (Congo ex-belga). Em todos os casos as relações de casamento estão estreitamente relacionadas a relações de propriedade (prendas, dote) e/ou de endividamento.

Quanto às histórias de terror que assombram essas tribos e o povo do Haiti (zumbis, mortos-vivos, etc), elas são explicáveis sobretudo por uma razão histórica muito concreta:   o comércio de escravos que ali grassou desde o século XVIII. Ele está indissoluvelmente ligado à história da dívida e do crédito:

“O Comércio Atlântico de Escravos como um todo foi uma rede gigante de acordos de crédito. Proprietários de navios baseados em Liverpool ou Bristol adquiriam bens com crédito facilitado a vendedores locais, esperando fazer lucro com a venda de escravos (também a crédito) a plantadores nas Antilhas e na América, com agentes comissionistas na cidade de Londres finalmente a financiar o negócio através dos lucros do comércio de açúcar e tabaco. Proprietários de navios transportavam suas mercadorias para portos africanos como a Velha Calabar. A própria Calabar era a quintessência do estado mercantil, dominada por ricos comerciantes africanos que se vestiam com roupas europeias, viviam em casas de estilo europeu e em alguns casos enviavam mesmo os seus filhos para a Inglaterra a fim de serem educados”.

Mas não se pense que tais fenômenos foram uma exclusividade do continente africano. Graeber descreve o caso de Bali (Indonésia), hoje um centro turístico, onde o comércio de escravos/as moldou quase todo o sistema social e político.

HONRA E DEGRADAÇÃO

Honra e dívida são conceitos associados. Graeber aponta: “Homens que vivem pela violência, sejam soldados ou gangsters, são quase invariavelmente obcecados com honra e assaltos à honra são considerados as justificações mais óbvias para atos de violência. Por outro lado, a dívida. Falamos tanto de dívidas de honra como de honrar dívidas. De facto a transição de uma para a outra dá a melhor pista de como emergem dívidas de obrigações”. Analisa a seguir os reflexos que isso tem na consciência das partes, tanto do senhor como do escravo, uma vez que a honra é por definição algo que só existe aos olhos de outros.

Mas o que tem tudo isto a ver com as origens da moeda? A resposta de Graeber é surpreendente: tudo. Ele explica: “Algumas das mais genuínas formas arcaicas de moeda que conhecemos parecem ter sido usadas precisamente como medidas de honra e degradação: isto é, o valor da moeda era, em última análise, o valor do poder de transformar outros em moeda. Ele alinha exemplos, que vão desde a Irlanda Medieval, à Mesopotamia. à Grécia Antiga e à Roma Antiga.

A INVENÇÃO DA CUNHAGEM

A invenção da cunhagem foi uma transformação social, a qual é analisada no capítulo “Crédito versus barras de ouro”. Ela se deu independentemente na Grande Planície ao norte da China, no vale do Ganges ao norte da Índia e nas terras em torno do Mar Egeu, entre os séculos 600 e 500 AC. Desde então, por mais de mil anos, estados de todo o mundo começaram a efetuar a sua própria cunhagem. Aquela invenção substituía o sistema de crédito. Contudo, afirma Graeber, “cerca de 600 DC, no tempo em que a escravatura estava a desaparecer, toda a tendência foi subitamente revertida. O cash secou. Por toda a parte houve um movimento de retorno ao crédito”. Verifica-se assim que houve períodos dominados pelo crédito e outros dominados pelo ouro e a prata.

Por que o ouro perdeu a dominância?, pergunta Graeber. A sua resposta é que “O fator único mais importante parece ser a guerra. O ouro (bullion) predomina, acima de tudo, em períodos de violência generalizada. Há uma razão simples para isso. Moedas de ouro e de prata são diferentes de arranjos de crédito devido a uma característica espetacular: elas podem ser roubadas. Uma dívida, por definição, é um registro, bem como uma relação de confiança”. Assim, conclui, “sistemas de crédito tendem a dominar em períodos de relativa paz social”, ao passo que “períodos caracterizados pela guerra e pilhagem generalizada tendem a ser substituídos pelo metal precioso”. Como de costume, Graeber alinha exemplos extensos que vão da Mesopotamia (3500-800 AC), Egito (2650-716 AC) e China (2200-771 AC).

O capítulo seguinte trata das Eras Medievais (600 AC-1450DC) na Índia, na China, no Oriente Próximo, no Extremo Oriente e na Europa (há que admirar o conhecimento enciclopédico de Graeber). Vem a seguir o capítulo referente à da Era dos Grandes Impérios Capitalistas (1450-1971), com cinco partes: “Cobiça, terror, indignação, dívida”; “O mundo do crédito e o mundo do juro”; “Moeda-crédito impessoal”; “Então o que é o capitalismo?” e “Apocalipse”.

Finalmente, o último capítulo tem o título muito exato de “O começo de algo ainda a ser determinado (1971-presente)”. De facto, desde que em Agosto de 1971 Nixon tornou o dólar inconvertível, tornando-o uma moeda puramente fiduciária, ninguém sabe realmente o que vem aí. O desvanecimento das reservas-ouro do banco central dos EUA, através de trapalhices obscuras é um facto abordado por Graeber com um nível de minúcia raramente visto em textos de economistas mainstream. É notável uma das conclusões a que chega Graeber:   “Em parte, estes sistemas funcionam porque ninguém sabe como eles realmente funcionam” (!). Parece honesto dizer isto, embora vá contra os diáconos da teocracia do livre mercado. Estes estão longe de recordar “o papel da guerra e do poder militar” na “estranha capacidade de criar moeda a partir do nada”. Além disso, prossegue Graeber, “A criação de bancos centrais representou uma institucionalização permanente daquele casamento de interesses entre belicistas e financeiros que começara a emergir na Renascença italiana e que acabou por se tornar o fundamento do capitalismo financeiro”.

Em suma, trata-se de um livro estimulante e de grande erudição. Não se trata de um manual para quem quer respostas prontas e instantâneas e sim para quem tem a ambição de ir tão fundo quanto possível no entendimento das questões analisadas. Tal como as obras de Michael Hudson e Prabhat Patnaik, este livro de David Graeber é uma lufada de ar fresco num mundo infestado com as patacoadas das teorizações vulgares. Ele deveria ser lido pelos bons estudantes de ciências econômicas. No entanto, não é provável que faculdades dominadas pela ideologia neoliberal o recomendem.

28/Agosto/2023

Ver também:
  • pt.wikipedia.org/wiki/David_Graeber
  • Edição brasileira: Dívida: os Primeiros 5. 000 Anos
  • Esta resenha encontra-se em resistir.info

     

    segunda-feira, 28 de agosto de 2023

    O show de Alok e a violência no país. Por J. Carlos de Assis

    Desigualdade, concentração de renda, empobrecimento da população. Tudo isto tem consequências, cada vez mais evidentes. Esta dinâmica vem ocorrendo ao longo de muitas décadas, com períodos de atenuação relativa que não tiveram força nem duração necessárias para reverter. Você acredita que não vai piorar ainda mais?

     Do Diário do Centro do Mundo

    Atualizado em 28 de agosto de 2023 às 15:18
    Apoie o DCMShow de Alok na Praia de Copacabana. Foto: Marcos de Paula/Prefeitura do Rio

    Show significa mostrar. O que o show de Alok mostrou, em lugar de arte, é que o Rio de Janeiro está rendido totalmente à criminalidade. Durante o tempo do espetáculo, previsto para duas horas, o banditismo correu solto em frente ao Copacabana Palace, o espaço glamoroso da cidade de cem anos atrás. Agora, ele testemunhou, nas areias à sua frente, uma verdadeira guerra entre bandidos e espectadores, com o resultado absolutamente espantoso de mais de 500 detenções.

    Foram centenas de assaltos, múltiplos roubos de celulares, agressões com brutal violência física, cercos de turistas e arrastões. Um destes se revelou particularmente cruel: um bando de uns vinte criminosos, semelhantes a cães raivosos, separou um turista da multidão, arrastou-o para o lado do mar e o cercou, espancando-o violentamente até quase matá-lo ali mesmo. Para quem assistiu, foi um show jamais visto de capitulação da cidade ao banditismo.

    A primeira ideia que me ocorreu, quando soube do número de presos, foi de questionar quantos outros bandidos continuaram soltos, fora do alcance dos 1.200 policiais anunciados para dar conta da segurança do evento. Sabíamos que haveria violência, pela experiência de réveillons passados em Copacabana, mas neste foi um excesso. E coloca outra questão: como será o próximo, e os que virão a seguir, dada a absoluta falta de perspectiva de solução para a insegurança crescente da cidade?

    Comecei como repórter de polícia no Rio, nos anos 70, por três meses, tempo suficiente para não me entusiasmar em continuar com esse tipo de jornalismo, no qual não via muito futuro por sua baixa cobertura pela imprensa “séria” da época. Hoje, a Tevê Globo dedica ao crime quase metade de sua programação de notícias. Não é escolha. É imposição dos fatos. São centenas de mortes mensais em confrontos de bandidos entre si e com a polícia, e dezenas de mortos inocentes por balas perdidas.

    Ou a sociedade se mobiliza no sentido de reagir a essa situação, ou seremos todos definitivamente dominados pela criminalidade. Já não é uma questão de governos federativos isoladamente: é uma questão do “governo”, em seu conjunto, pois é assim que o desafio se coloca à cidade e ao país, e é assim que o povo vê os responsáveis por combater o crime. O problema é similar ao das mudanças climáticas: ou agimos todos juntos, ou afundamos no mesmo barco!

    A imobilidade contra o crime, nos níveis como chegou em cidades como Rio e São Paulo, já tomando conta de outras metrópoles, é um caminho aberto para o fascismo. Como disse acima, o povo vê a segurança como responsabilidade “do governo”, não de algum nível de governo em particular. Se não há resposta institucional eficaz para o crime generalizado, todo o sistema governamental fica comprometido. Em algum momento as vítimas passam a culpar o regime político.

    Estamos vendo a Argentina resvalar para uma situação ingovernável, reprisando a experiência histórica de sublevações de rua de duas décadas atrás. A crise social levou à insegurança, e a insegurança está levando, de novo, ao questionamento do regime. Não há vencedores nessa batalha – ou melhor, os vencedores que existem, como sempre, são as classes dominantes, que retiram benefícios de qualquer situação, já que seus interesses pessoais prevalecem sobre os interesses comuns.

    A associação do fascismo a uma reação política degenerada contra criminalidade extrema é quase automática. Quando a insegurança chega a limites insuportáveis, a própria sociedade apela para uma ordem autoritária, dispensando os mecanismos democráticos, reconhecidos como ineficazes. É isso que tornou possíveis figuras como Mussolini e Hitler, e este é um risco que nós próprios corremos se a ordem democrática que estamos construindo não der resposta à crise de segurança.

    Por outro lado, não há como ignorar o fato de que, por trás da criminalidade, existe uma questão social não resolvida, associada ao extremismo político neoliberal das últimas quatro décadas no mundo – e levado ao paroxismo no Brasil de Temer e Bolsonaro. Foram tempos de concentração de renda, de alto desemprego, de salários baixos e índices de desenvolvimento insuficientes. Tudo isso gera degradação social, e a degradação social leva à criminalidade e à violência, difíceis de controlar.

    Não há mágica para a solução de um problema tão complexo. Como as iniciativas dos governos se distribuem entre várias prioridades, só uma forte pressão da Sociedade Civil pode levá-los a concentrar esforços e recursos na questão da segurança, que se revela absolutamente imprescindível. O primeiro passo para isso é uma tomada de consciência coletiva da sua urgência. E, para isso, certamente, serviu o show de Alok, na praia ensanguentada em frente ao Copacabana Palace.

    Para mim, a questão da segurança tornou-se pessoal. É que minha família jamais sairia do Rio, mesmo porque é todo o país que sofre os efeitos da criminalidade. Em razão disso resolvi ousar. Com economistas amigos, escrevemos as linhas mestras de um programa para enfrentar, simultaneamente, o desemprego e a criminalidade nas metrópoles. Chama-se “Programa Cidade Cidadã”. É um desafio para que todos façam o mesmo, na tentativa de buscar uma ação comum com os governos.


    sábado, 26 de agosto de 2023

    Silenciando os cordeiros: Como funciona a propaganda

     

     Do resistir.info, um site - português que considero dos mais importantes para mim e para quem acompanha este blog. Procurei "traduzir" em algumas partes para o português do Brasil, para facilitar o fluxo da leitura por nós brazucas. O John Pilger, jornalista e documentarista, australiano como Julian Assange, é muito importante, sua indignação deve ser conhecida e partilhada por todos os que querem decência e justiça neste infeliz planeta.


    John Pilger [*]

    Os grandes atores dos media.

    Na década de 1970, conheci um dos principais propagandistas de Hitler, Leni Riefenstahl, cujos filmes épicos glorificavam os nazis. Aconteceu estar hospedada na mesma pousada no Quênia, onde ela tinha um contrato como fotógrafa, tendo escapado ao destino de outros amigos do Führer.

    Ela disse-me que as "mensagens patrióticas" dos seus filmes não dependiam de "ordens" de cima", mas sobre o que ela chamou de "vazio submisso" do público alemão. E isso incluía as pessoas educadas da burguesia? – perguntei. "Sim, especialmente eles", disse ela.

    Penso nisto quando olho para a propaganda que agora consome as sociedades ocidentais. É claro que somos muito diferentes de Alemanha nos anos 1930. Vivemos em sociedades ditas da informação. Somos globalistas. Nunca estivemos mais cientes, mais em contacto e melhor conectados.

    Mas estaremos? Ou vivemos numa sociedade mediática onde a lavagem cerebral é insidiosa e implacável, e a perceção é filtrada de acordo com as necessidades e mentiras do Estado e do poder corporativo?

    Os Estados Unidos dominam o ocidente e os media mundiais. Todas, exceto uma, as dez maiores empresas de media, estão sediadas nos EUA. A Internet e os media sociais – Google, Twitter, Facebook – são fundamentalmente de propriedade e controlo americano.

    Durante a minha vida, os Estados Unidos derrubaram ou tentaram derrubar mais mais de 50 governos, a maioria democracias. Interferiram em eleições democráticas em 30 países. Lançaram bombas sobre pessoas em 30 países, a maioria deles pobres e indefesos. Tentaram o homicídio de líderes de 50 países. Lutaram para reprimir os movimentos de libertação em 20 países.

    A extensão e a escala desta carnificina são em grande parte não relatadas e não reconhecidas; os responsáveis continuam a dominar vida política anglo-americana.

    Nos anos que antecederam a sua morte, em 2008, o dramaturgo Harold Pinter fez dois discursos extraordinários, que quebraram o silêncio.

    "A política externa dos EUA", disse ele, é "melhor definida da seguinte forma: beije meu traseiro ou eu dou-lhe um pontapé na cabeça. É tão simples e tão tosco como isto. O que há de interessante é que é incrivelmente bem-sucedido. Os EUA possuem as estruturas de desinformação, uso da retórica, distorção da linguagem, que é muito persuasiva, mas na verdade são pacotes de mentiras. É uma muito bem sucedida propaganda. Eles têm o dinheiro, têm a tecnologia, têm todos os meios para saírem impunes, e conseguem-no".

    Cordeiro conformista, cartoon.

    Ao aceitar o prêmio Nobel Pinter disse o seguinte:   "Os crimes dos Estados Unidos têm sido sistemáticos, constantes, viciosos, sem remorso, mas muito poucas pessoas realmente falaram sobre eles. Tem que se dar o mérito à América. Exerceu uma manipulação bastante cirúrgica do poder em todo o mundo, disfarçada como uma força para o bem universal. É um brilhante, mesmo cômico, altamente bem-sucedido ato de hipnose".

    Pinter era meu amigo e possivelmente o último grande sábio político – antes da dissidência política ter sido assimilada e aburguesada. Perguntei-lhe se a "hipnose" a que se referia era o "vazio submisso" descrito por Leni Riefenstahl. "É a mesma coisa", respondeu. "Significa que a lavagem cerebral é tão completa que somos programados para engolir pacotes de mentiras. Se nós não reconhecemos a propaganda, podemos aceitá-la como normal e acreditar. Isto é o vazio submisso".

    Nos nossos sistemas de democracia corporativa a guerra é uma necessidade econômica, o perfeito casamento de subvenção pública e lucro privado: socialismo para ricos, capitalismo para os pobres. No dia seguinte à ação do 11 de setembro em Nova Iorque, os preços das ações das indústrias bélicas dispararam. O derramamento de sangue estava a chegar, o que é ótimo para negócio.

    Hoje, as guerras mais lucrativas têm sua própria marca. São as "guerras para sempre": Afeganistão, Palestina, Iraque, Líbia, Iêmen e agora Ucrânia. Todas são baseadas em pacotes de mentiras.

    O Iraque é a mais infame, com suas armas de destruição em massa que não existiram. A destruição da Líbia pela NATO em 2011 foi justificada por um massacre em Benghazi que não aconteceu. O Afeganistão era uma guerra de vingança pelo 11 de setembro, que nada tinha a ver fazer com o povo do Afeganistão.

    Hoje, as notícias do Afeganistão são sobre o mal que os talibãs fazem, mas não sobre o roubo de 7  bilhões de dólares que o Presidente Biden ordenou, reservas bancárias do país que estão causando sofrimento generalizado. Recentemente, a Rádio Pública em Washington dedicou duas horas ao Afeganistão – e 30 segundos para seu povo faminto.

    Na reunião de cúpula de Madrid, em Junho, a NATO, controlada pelos Estados Unidos, adotou um documento de estratégia que militariza o continente europeu e escala a perspectiva de guerra com Rússia e China. Propõe "ações de guerra em múltiplos domínios contra concorrentes com armas nucleares". Por outras palavras, guerra nuclear.

    Disseram: "O alargamento da NATO foi um êxito histórico". Li isto incrédulo. Uma medida deste "êxito histórico" é a guerra na Ucrânia, cujas notícias são principalmente não notícias, mas uma ladainha unilateral de política externa agressiva, distorção e omissão. Eu já relatei uma série de guerras e nunca conheci uma propaganda tão generalizada.

    Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia em resposta a quase oito anos de assassinatos e destruição criminosa no Donbass, uma região de língua russa, na sua fronteira. Em 2014, os Estados Unidos patrocinaram um golpe em Kiev que destituiu o presidente democraticamente eleito da Ucrânia, amigo da Rússia, empossando um sucessor que os americanos deixaram bem claro ser o seu homem.

    Nos últimos anos, mísseis americanos "defensivos" foram instalados no leste da Europa, Polônia, Eslovênia e República Checa, quase certamente dirigidos à Rússia, acompanhados por falsas garantias, desde a “promessa” de James Baker a Gorbachev, em Fevereiro de 1990, de que a NATO nunca se expandiria para além da Alemanha.

    A Ucrânia é a linha de frente. A NATO efetivamente atingiu a própria fronteira russa através da qual o exército de Hitler invadiu a União Soviética em 1941, deixando mais de 23 milhões de mortos no país.

    Em dezembro de 2021, a Rússia propôs um plano de segurança de longo alcance para a Europa. Isso foi descartado, ridicularizado ou suprimido nos media ocidentais. Quem leu suas propostas passo a passo? Em 24 de Fevereiro, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy ameaçou desenvolver armas nucleares a menos que os Estados Unidos armassem e protegessem a Ucrânia. Isto foi a gota de água. No mesmo dia, a Rússia invadiu – de acordo com os media ocidentais, um ato infame não provocado. A história, as mentiras, as propostas de paz, o acordos solenes sobre o Donbass em Minsk não contaram para nada.

    Em 25 de Abril, o secretário de Estado da Defesa dos EUA, General Lloyd Austin, voou para Kiev e confirmou que o objetivo dos Estados Unidos era destruir a Federação Russa – a palavra que ele usou foi "enfraquecer". Os Estados Unidos tinham conseguido a guerra que queriam, travada por procuração dos EUA, financiando e armando um peão dispensável.

    Quase nada disso foi explicado para as audiências ocidentais, com a narrativa de que a invasão da Ucrânia pela Rússia é arbitrária e imperdoável. É crime invadir um país soberano. Não há "mas" – exceto para um país.

    Quando começou a atual guerra na Ucrânia? E quem começou? De acordo com a ONU, entre 2014 e 2022, cerca de 14 000 pessoas foram mortas pelo regime de Kiev na guerra civil no Donbass. Muitos dos ataques foram realizados por neonazis.

    Assista a uma reportagem da ITV News de maio de 2014, pelo jornalista veterano James Mates, sobre quem bombardeou a cidade de Mariupol, incluindo os civis, pelo batalhão neonazi ucraniano Azov. No mesmo mês, dezenas de pessoas de língua russa foram queimadas vivas ou sufocadas no prédio de um sindicato em Odessa sitiado por bandidos fascistas e seguidores do colaborador nazi e o fanático antissemita Stephen Bandera. O New York Times chamou estes bandidos de "nacionalistas".

    "A missão histórica de nossa nação neste momento crítico", disse Andreiy Biletsky. fundador do Batalhão Azov, "é liderar as raças brancas do mundo numa cruzada final pela sobrevivência, uma cruzada contra os Untermenschen (subhumanos), liderados pelos semitas".

    Desde fevereiro, uma campanha de autonomeados "monitores de notícias" (principalmente financiada por americanos e britânicos com ligações aos governos) procuraram manter o absurdo de que neonazis não existem na Ucrânia.

    Apagamento, um termo outrora associado aos expurgos de Stálin, tornou-se uma ferramenta de jornalismo mainstream. Em menos de uma década, uma "boa" China foi apagada e uma China "ruim" substituiu-a: passou de fábrica do mundo para um novo Satanás.

    Grande parte dessa propaganda tem origem no EUA e é transmitida através de seus procuradores e "think tanks", como o famigerado Instituto Australiano de Política Estratégica, a voz da indústria armamentista, e pelo zelo de jornalistas como Peter Hartcher, do Sydney Morning Herald, que rotulou os que difundem influência chinesa como "ratos, moscas, mosquitos e pardais" e apelou a que estas "pragas" fossem "erradicadas".

    As notícias sobre a China no ocidente são quase inteiramente sobre as ameaças de Pequim. Apagadas deveriam ser as 400 bases militares americanas que cercam a maior parte da China, um colar que vai da Austrália ao Pacífico e Sudeste Asiático, Japão e Coreia. A ilha japonesa de Okinawa e a ilha coreana de Jeju são como armas carregadas apontadas à queima-roupa para o coração industrial da China. Um funcionário do Pentágono descreveu isso como um "laço".

    A Palestina tem sido objeto de desinformação desde que me lembro. Para a BBC, há o “conflito” de “duas narrativas”. A ocupação militar mais longa, mais brutal e sem lei dos tempos modernos não é mencionada. O desafortunado povo do Iêmen mal existe. Para os media são um não-povo. Enquanto os sauditas despejam bombas de fragmentação dos EUA e conselheiros britânicos trabalham ao lado de oficiais sauditas, mais mais de meio milhão de crianças enfrentam a fome.

    Essa lavagem cerebral por omissão tem uma longa história. A matança da Primeira Guerra Mundial foi suprimida por jornalistas que foram condecorados pelo seu desempenho e confessaram-no em Memórias. Em 1917, o editor do Manchester Guardian, CP Scott, confidenciou ao primeiro-ministro Lloyd George: "Se as pessoas realmente soubessem [a verdade], a guerra pararia no dia seguinte, mas não sabem e não podem saber".

    A recusa em ver pessoas e acontecimentos como em outros países são vistos é um vírus dos media do ocidente, tão debilitante quanto a Covid. É como se víssemos o mundo através de um espelho unidirecional, no qual "nós" somos morais e benignos e "eles" não. É um visão profundamente imperial.

    A história, que é uma presença viva na China e na Rússia, raramente é explicada e raramente compreendida. Vladimir Putin é Adolf Hitler; Xi Jinping é Fu Man Chu. Conquistas épicas, como a erradicação de pobreza extrema na China, são pouco conhecidas. Isto é absolutamente perverso e limitador.

    Quando nos permitiremos compreender? Formar jornalistas em estilo fábrica não é a resposta. Nem o são as maravilhosas ferramentas digitais, que são um meio, não um fim, como a máquina de escrever e a impressora.

    Nos últimos anos, alguns dos melhores jornalistas foram afastados dos media convencionais. "Atirados pela janela" é o termo a usar. Os espaços outrora abertos a rebeldes, para jornalistas fora do discurso oficial, que expunham verdades, fecharam.

    Julian Assange no presídio de Belmarsh, Reino Unido.

    O caso de Julian Assange é o mais chocante. Quando Assange e o WikiLeaks ganhavam leitores e prêmios para o Guardian, o New York Times e outros jornais de grande circulação, ele era célebre.

    Quando o “Estado sombra” se opôs e exigiu a destruição de discos rígidos e o assassinato da personagem Assange, ele foi tornado inimigo público. O então vice-presidente Biden chamou-o de "terrorista de alta tecnologia". Hillary Clinton perguntou: "Não podemos simplesmente atirar um drone a esse tipo?"

    A campanha de abuso e vilipêndio que se seguiu contra Assange – o Relator da ONU sobre tortura chamou-lhe "violência psicológica" – levou a imprensa liberal ao seu ponto mais baixo. Sabemos quem são. Penso neles como colaboracionistas, como os jornalistas do governo francês pró-hitleriano de Vichy.

    Quando os verdadeiros jornalistas se levantarão? Sítios inspiradores na internet já existem:   Consortium News, fundado pelo grande jornalista Robert Parry; Grayzone de Max Blumenthal, Mint Press News, Media Lens, Declassified UK, Alborada; Electronic Intifada; WSWS; Znet; Information Clearing House; CounterPunch; Independent Australia; o trabalho de Chris Hedges; Patrick Lawrence; Jonathan Cook; Diana Johnstone; Caitlin Johnstone e outros que me perdoarão por não mencioná-los aqui.

    E quando os escritores se levantarão, como fizeram contra a ascensão do fascismo nos anos 1930? Quando se levantarão os cineastas, como fizeram contra a Guerra Fria nos anos 1940? Quando os humoristas se levantarão, como fizeram há uma geração?

    Tendo mergulhado durante 82 anos num profundo banho de honradez que é a versão oficial da última guerra mundial, não será altura daqueles que deveriam manter os registros corretos declararem a sua independência e decodificarem a propaganda? A urgência é maior do que nunca.

    21/Agosto/2023

    Ver também:
  • La intoxicación lingüística. El uso perverso de la lengua, de Vicente Romano (para descarregamento)
  • O papel dos governos e dos media na propaganda de guerra: A guerra que você não vê, documentário de John Pilger (1h33m)
  • [*] Jornalista, australiano, escritor e documentarista, residente no Reino Unido.

    O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/57764.htm

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    PORNOGRAFIA E MENORES, UMA ANÁLISE DOS EUA

     Que cabe igualmente aqui. Do site ZeroHedge

    Estados unem-se para proteger menores de pornografia, que altera o cérebro

     

    Escrito por Jackson Elliott via The Epoch Times (grifo nosso),

     

    Uma tela exibe uma placa de "sem menores de 18 anos" com o logotipo de um site pornográfico, já que os reguladores consideram exigir que esses sites garantam que estão impedindo que menores sejam expostos ao seu conteúdo. (Lionel Boaventura/AFP via Getty Images)

    A pornografia on-line, gráfica, violenta, desviante e prejudicial que pode afetar permanentemente o desenvolvimento do cérebro pode ser facilmente acessada por crianças.

    E o governo federal pouco está fazendo para impedi-lo, disseram especialistas e legisladores ao Epoch Times.

    Embora mostrar pornografia para crianças seja ilegal sob a lei federal, as regras federais não exigem que os sites pornográficos verifiquem a idade dos usuários.

    Mas, recentemente, esforços bipartidários nas legislaturas estaduais intervieram para proteger as crianças em um punhado de estados.

    É importante – e urgente – porque assistir pornografia violenta prejudica as crianças, disseram o terapeuta Jon Uhler e a psicóloga Amy Sousa ao Epoch Times.

    "Ser mostrada violência ao lado de um sistema de recompensa é incrivelmente problemático porque está enviando ao corpo um sinal de que essa violência é prazerosa", disse Sousa.

    Ao ensinar as crianças a associar o prazer sexual à dor, disse ela, a pornografia pode religar o cérebro do espectador para querer dor ou querer infligir dor.

    Essa religação desfaz a resposta natural do corpo de se sentir angustiado ao ver alguém se machucar, explicou ela.

    E assistir pornografia é mais comum do que muitos imaginam.

    O pornô recebe mais "horas de exibição" anuais do que toda a programação de Hollywood, Netflix e Viacom combinadas, disse Sousa.

     

    A psicóloga Amy Sousa fala em um evento "Save Women's Sports em Nashville, Tennessee, em 27 de abril de 2023. (Jackson Elliott/The Epoch Times)

    Normalizando a violência, criando psicopatas

    "Oitenta e oito por cento dos vídeos pornôs contêm violência contra a mulher, o que basicamente se traduz em 5,1 bilhões dessas visitas por mês", disse Sousa.

    "A pornografia representa um enorme braço de propaganda que está normalizando e dessensibilizando a violência contra as mulheres."

    Ver pornografia ensina os homens a ver as mulheres como objetos, disse Uhler, que tem 15 anos de experiência em aconselhamento e milhares de horas de experiência no tratamento de agressores sexuais.

    As crianças que admitem assistir pornografia também admitem se sentir culpadas por isso, disse ele.

    Ao longo do tempo, envolver-se repetidamente em comportamentos que violam a consciência pode transformar uma pessoa em um psicopata, disse ele.

    "À medida que você impacta a consciência, você impactará negativamente o remorso e a empatia", disse ele. "Essas três coisas são a base da psicopatia."

    E isso, segundo ele, pode abrir as portas para se tornar um predador sexual.

    Ao aconselhar milhares de predadores sexuais, Uhler viu um padrão. Para todos os seus pacientes, o caminho para o desvio sexual envolveu ver pornografia, disse ele.

    "Muitos bons pesquisadores analisaram os efeitos que a pornografia tem no cérebro", disse Uhler.

    "É idêntico às drogas, literalmente em termos do impacto na própria estrutura e na forma como ela se processa."

    Com um número sem precedentes de meninos assistindo pornografia violenta, disse Uhler, o futuro provavelmente renderá uma enorme safra de homens que aprenderam desde a infância a desafiar sua consciência.

    "Estamos em território desconhecido."

    Visões conflitantes sobre restrições

    Apesar desses perigos, o governo federal pouco tem feito para impedir que as crianças acessassem pornografia online, disseram Sousa, Uhler e legisladores.

    "A lei federal [que proíbe o acesso à pornografia para crianças] não é aplicada", disse o senador republicano do estado de Utah, Todd Weiler, ao Epoch Times.

    Ian Andrews, porta-voz do Pornhub, disse ao Epoch Times que a empresa apoia medidas para restringir a visualização de pornografia por crianças, verificando a idade dos usuários. Mas ele duvida que novas leis que exigem a verificação de idade dos usuários ajudem a proteger os menores. O Pornhub é o 12º site mais visitado do mundo, com mais de 2,5 bilhões de visitantes por ano, de acordo com a empresa de pesquisa de consumo Similarweb.

    Andrews argumentou que as leis podem ter o efeito contrário.

    "Levantamos a hipótese durante anos de que, se apenas certas plataformas fossem forçadas a verificar a idade do usuário, ou se uma lei não fosse regulamentada adequadamente, os resultados veriam usuários migrando para as plataformas que não verificam a idade", disse ele.

    "Isso não é mais hipotético. Desde que nos tornamos uma das poucas plataformas na Louisiana a cumprir a lei e instituir a verificação obrigatória de idade, vimos uma queda de aproximadamente 80% em nosso tráfego no estado."

    Ampliando as leis

    Os legisladores em alguns estados estão determinados a alterar as leis estaduais para impedir que crianças vejam pornografia.

    Em maio, o Utah aprovou uma lei que exige que sites pornográficos verifiquem se os usuários daquele estado têm pelo menos 18 anos. A Louisiana, que promulgou uma lei semelhante em 2022, foi o primeiro estado a exigir medidas de verificação de idade para acessar sites pornográficos, disse Weiler.

    "Fizemos alguns pequenos ajustes, mas basicamente copiamos a lei da Louisiana em Utah", disse ele.

    A lei da Louisiana exige que os sites pornográficos realizem "métodos razoáveis de verificação de idade" para os usuários da Louisiana.

    Para Weiler, a luta para proteger as crianças de sites pornográficos começou em 2016.

    "Efetivei a primeira resolução no país para declarar a pornografia como uma crise de saúde pública", disse.

    Embora a resolução declarasse que a visualização infantil de pornografia era uma crise de saúde pública, as resoluções não têm força de lei ou quaisquer efeitos de aplicação da lei.

    "E, desde então, cerca de 15 outros estados basicamente copiaram" a resolução, disse Weiler.

    Cinco estados se juntaram a Utah e Louisiana para ir mais longe.

    Virgínia, Mississippi, Texas, Montana e Arkansas adicionaram leis de verificação de idade para sites de pornografia.

    Arizona, Califórnia, Carolina do Sul, Minnesota e Nova Jersey têm projetos de lei em consideração para verificação de idade, de acordo com dados coletados pela Free Speech Coalition (FSC).

    O apoio aos projetos de lei é em grande parte bipartidário, disse Weiler.

    "Esta não é apenas uma questão republicana", disse. "Acho que muitos democratas concordam que as crianças não deveriam estar vendo esse conteúdo."

    Flórida, Iowa, Kansas, Kentucky, Dakota do Sul, Virgínia Ocidental, Missouri, Alabama e Tennessee consideraram projetos de lei que exigem verificação de idade para usuários de pornografia, mas não foram aprovados, de acordo com o FSC.

    Confiando em respostas honestas

    De acordo com a lei federal, o crime de usar "conscientemente" serviços informáticos para exibir obscenidade a menores é punível com prisão, multa e registo de agressor sexual.

    Mas a palavra "conscientemente" fornece uma brecha, disse Uhler.

    De acordo com a lei federal, se um adolescente mentir sobre sua idade para acessar pornografia, os distribuidores de pornografia não podem ser culpados por acreditar nas informações de verificação de idade fornecidas pela criança, disse ele.

    "Como uma criança que quer acessar pornografia vai ser honesta", disse Uhler com ironia.

    Esse sistema coloca a responsabilidade sobre os menores de serem verdadeiros, em vez de sobre os operadores de sites pornográficos para averiguar a verdade, disse Weiler.

    As empresas "tomaram medidas para garantir que meninas de 14 anos em Topeka, Kansas, não estejam acessando sites de apostas online", disse ele. "Eles tomaram medidas para garantir que meninas de 14 anos em Topeka, Kansas, não estejam comprando produtos de vaping e nicotina online. E essas empresas não estão enviando vinho diretamente para meninas de 14 anos."

    Mas a indústria pornográfica não recebeu a mesma pressão regulatória para proteger as crianças de seus produtos, disse ele.

    Qualquer empresa realmente interessada em bloquear o acesso de menores de idade à pornografia que oferece poderia usar uma empresa terceirizada para examinar os usuários antes que eles tenham permissão para acessar o site.

    "A tecnologia está lá", disse Weiler. "Levaria cerca de 30 segundos" para verificar a identidade e a idade de um possível usuário.

    As leis de Utah exigem que a verificação em sites pornográficos exija mais provas do que simplesmente a afirmação de um usuário de que ele ou ela tem 18 anos ou mais.

    Ainda assim, há maneiras de as crianças experientes em tecnologia contornarem isso, disse Weiler.

    Mas mesmo que novas medidas não impeçam todos os menores de acessar pornografia, disse ele, pelo menos protegerão as crianças mais jovens e vulneráveis de ver imagens gráficas que podem lhes causar danos permanentes.

    Uma geração de espectadores de pornôs

    O Pornhub funciona como o YouTube, a plataforma de compartilhamento de vídeos online. Qualquer pessoa pode enviar vídeos e qualquer um pode assisti-los. Em 2021, a empresa diz que removeu mais de 53.000 vídeos porque continham abuso sexual infantil, 6.000 vídeos que incluíam incesto, mais de 1.000 vídeos por abuso de animais e mais de 5.000 vídeos por outros conteúdos obscenos muito gráficos para descrever.

    Para seu horror, a vítima de abuso sexual Victoria Galy descobriu que imagens de seu estupro haviam sido postadas no Pornhub e visualizadas 8 milhões de vezes.

    Galy disse ao comitê de ética da Câmara dos Comuns canadense em fevereiro que o Pornhub dificultou que as vítimas de abuso removessem vídeos de crimes contra elas.

    Para excluir alguns dos vídeos, ela testemunhou, o Pornhub solicitou uma notificação de violação de direitos autorais dela.

    De acordo com a política do Pornhub, qualquer pessoa que solicite a remoção de um vídeo deve fornecer ao site seu nome, endereço postal, número de telefone e endereço de e-mail.

    Os adolescentes são frequentemente os consumidores que assistem a vídeos pornográficos, de acordo com uma pesquisa da Common Sense Media. Os pesquisadores descobriram que cerca de 70% dos adolescentes de 13 a 17 anos admitiram assistir pornografia online.

    A pesquisa perguntou a mais de 1.300 participantes dessa faixa etária sobre sua experiência com pornografia. O adolescente médio admitiu ter encontrado pornografia aos 12 anos, segundo a pesquisa. Alguns começaram a assistir com apenas 10 anos.

    A maioria dos adolescentes que assistem pornografia assistiu a pornografia violenta mostrando estupro, asfixia ou dor, mostraram os resultados da pesquisa.

    Enquanto 45% dos adolescentes disseram que a pornografia dá "informações úteis sobre sexo", cerca de 50% relataram sentir vergonha da pornografia que assistem, segundo a pesquisa.