segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

MÃOS SUJAS DE SANGUE

Este post vem do site Teoria e Debate, revista do PT. Foi republicado hoje no blog Viomundo, de Luis Carlos Azenha. Qualquer semelhança com a atuação de mídia corporativa de hoje: Jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, rede Globo, Veja, Grupo Bandeirantes, não é mera coincidência.

Mãos sujas de sangue

Última Hora não escondia seu apoio a Getúlio, mas não abriu mão do apuro jornalístico, da criatividade e do respeito aos fatos. Tais opções afrontaram as poderosas famílias proprietárias dos instrumentos de construção da opinião pública no Brasil, que se sentiam no direito de conspirar contra governos legítimos. É assim até hoje, desde 2002, quando Lula ganhou as eleições presidenciais
Wainer faleceu em 1980, orgulhoso de não ter se acovardado diante dos desafios
Wainer faleceu em 1980, orgulhoso de não ter se acovardado diante dos desafios
Foto: Arquivo FolhaPress
(...) Podemos ser dirigidos por la prensa
sin advertilo. Y no existe en ningún diario 
la información por la información; se informa
para orientar en determinado sentido a las
distintas clases e capas de la sociedad, y con el
propósito de que esa orientación llegue a
expresarse en acciones determinadas.

Periodismo y Lucha de Clases, de Camilo Taufic, Akal Ediciones, 1976, pág. 7

Dia 2 de fevereiro de 1951.
Palácio Rio Negro, Petrópolis.
Primeira reunião do ministério de Getúlio Vargas, recém-eleito, na qual seriam anunciadas as diretrizes centrais do novo governo.
Só dois jornalistas presentes: um repórter da Agência Nacional e Samuel Wainer. Iniciava-se, com ferocidade, a conspiração do silêncio da grande imprensa contra Getúlio. O silêncio ensurdecedor foi o primeiro movimento, não o último.
Getúlio certamente percebeu.
Fim da reunião, Wainer é convidado a ficar e jantar com a família.
Terminado o jantar, é chamado por Getúlio à sala de despachos, vasto salão que o presidente usava para conversas reservadas. Falava sempre entre baforadas de charuto e caminhadas de um lado para outro. Iniciou a conversa com rememorações.
– Tu te lembras de uma frase que disseste no dia em que começamos a campanha?
– Não, presidente – respondeu Wainer.
Getúlio puxou-lhe pela memória:
– Era uma frase sobre jornalismo.
Wainer lembrou-se. Voava com o presidente do Rio de Janeiro para o Amazonas e lhe disse:
– Presidente, a imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder.
Dissera mais:
– Perceba que sou o único jornalista destacado para cobrir sua campanha. Note que a do brigadeiro Eduardo Gomes mobiliza pequenas multidões de repórteres e fotógrafos. Toda a grande imprensa está contra sua candidatura.
– Não preciso da grande imprensa para ganhar – retrucou Getúlio na conversa a bordo do avião.
O presidente pensava em Franklin Roosevelt, que nunca tivera apoio dos jornais americanos e sempre vencera as eleições. Pensou e disse.
Wainer ponderou:
– Presidente, ao contrário do que ocorre em países como os Estados Unidos, no Brasil a imprensa tem um fortíssimo poder de manipulação sobre a opinião pública. Não é fácil enfrentá-la.
E completou com a frase que o presidente pretendia que ele lembrasse:
– A imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder.

Getúlio, entre as baforadas de charuto e as passadas pelo salão, perguntou:
– Tu reparaste que hoje não veio ninguém cobrir a reunião?
– Claro que reparei. Hoje foi desencadeada a conspiração do silêncio.
E Wainer acrescentou, ainda:
– O senhor só vai aparecer nos jornais quando houver algo negativo a noticiar. Essa é uma tática normal da oposição, e a mais devastadora.
O presidente não parava de caminhar, e fumava seu charuto, e queria dizer alguma coisa conclusiva, e disse:
– Por que tu não fazes um jornal?
Wainer, perplexo, e feliz, reagiu:
– Presidente, isso é o maior sonho de um repórter como eu. Não seria difícil editar uma publicação que defendesse o pensamento de um governante como o senhor, que tem o perfil de um autêntico líder popular.
Getúlio foi taxativo:
– Então, faça.
Wainer perguntou:
– O senhor quer saber como faria?
– Não – Getúlio respondeu prontamente.
E acrescentou:
– Troque ideias com a Alzira e faça rápido.
– Em 45 dias, dou um jornal ao senhor – reagiu Wainer.
– Então, boa noite, Profeta.
– Boa noite, presidente.


Samuel Wainer, até ali, notabilizara-se como um repórter brilhante, raro, cuja maior façanha fora a entrevista que fizera com Getúlio, no Rio Grande do Sul, na fazenda Santos Reis, de propriedade de um dos irmãos dele, Protásio.
Nela tirou do presidente a afirmação categórica – “Eu voltarei como líder de massas” –, senha que indicava sua candidatura à Presidência, depois de todo aquele tempo de ostracismo. Era fevereiro de 1949.
A entrevista, publicada pela cadeia dos Diários Associados, teve uma repercussão extraordinária. Em outubro de 1950 Getúlio se elegia, voltava como líder de massas e presidente da República, e Wainer permaneceria ao lado dele, apesar de alguns desencontros, até o suicídio.
Naquele fevereiro de 1951, Samuel Wainer, 39 anos, não tinha a exata dimensão da grandeza daquele sonho de criação de um jornal nem, provavelmente, de toda a dimensão da tempestade que se abateria sobre sua vida. Ao propor que conversasse com Alzirinha, sua filha querida e extremamente ativa, Getúlio havia dado o sinal verde para a empreitada.
Viver é correr riscos, Wainer sabia disso, e iria arriscar. Encontrara sua razão de viver: o jornal Última Hora, que começou a ser concebido em março de 1951 e ganhou as ruas em 12 de junho do mesmo ano. Rapidamente, tornou-se um impressionante sucesso, graças, sobretudo, à criatividade dos jornalistas que o produziam e à capacidade de Wainer, seu espírito de liderança e sua coragem.
E, também, porque Última Hora não escondia ser uma publicação a favor de Getúlio, reconhecidamente uma liderança popular.
O jornalista sabia que não ia enfrentar moinhos de vento, mas monstros verdadeiros, uma realidade adversa, poderosos interesses, encarnados em robustas famílias oligárquicas que dominavam a imprensa brasileira, como infelizmente até hoje. Teve de enfrentar até uma CPI, cuja motivação exclusiva era a criação do jornal que dirigia, sob a acusação de que recebera recursos do Banco do Brasil, como se os outros órgãos de comunicação não o recebessem rotineiramente.
Só ele não podia receber empréstimos de banco oficial, só com ele se transformava em escândalo. A direita brasileira, Carlos Lacerda à frente, sabia como utilizar-se da mídia para tentar atingir o coração de um projeto reformista em andamento.

Lacerda era dono da Tribuna da Imprensa, que nascera graças à ajuda da Igreja Católica e de alguns empresários amigos, mas nunca se tornara um jornal influente. Sua voz só ganhou ressonância quando Roberto Marinho franqueou-lhe os microfones da Rádio Globo e Chateaubriand, as telas da TV Tupi. Foi com o poderio desses aliados, sobretudo, que ele bombardeou o Última Hora, sem nunca se preocupar com a veracidade dos fatos, esgrimindo sua incomparável capacidade de caluniar.
O jornal mais influente, então, e pouca gente hoje se lembra disso, era o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, cujo dono era o violento, arrogante e irascível Paulo Bittencourt. Todos os meios de comunicação se uniram contra o Última Hora, intruso indesejável naquele seleto clube. E o que, de pronto, incomodou o clube de elite da imprensa brasileira foi o impressionante sucesso do novo jornal, cuja tiragem rapidamente alcançou ou ultrapassou a dos concorrentes.
No lançamento da Última Hora no Rio Grande do Sul, o encarregado da saudação, depois dos habituais elogios, ressalvou que o jornal só havia se viabilizado com a ajuda do governo federal. Wainer, tímido no uso da palavra, resolveu falar, que ficar calado era levar desaforo pra casa. Depois de abordar as dificuldades do empreendimento, cujo auxílio havia sido muito menor do que aventara o jornalista gaúcho, disse:
– Quero aconselhar a todos que me ouvem a se tornarem donos de jornal. Não há nada melhor no Brasil.
– Afirmei, e passei a oferecer exemplos ferinos, sem mencionar nomes. Não era necessário: todos sabiam de quem eu falava. “Um dono de jornal pode ser alcoólatra e será tratado pela sociedade como homem sóbrio”, exemplifiquei. Era Paulo Bittencourt. Pode ser um assassino, e será recebido como cidadão respeitável. Era Tenório Cavalcanti, dono daLuta Democrática. Pode ser um gângster, e será encarado como exemplo de austeridade. Era Assis Chateaubriand. Enfim, pintei o dono de jornal como uma pessoa acima do bem e do mal, fora do alcance da lei. Era nesse clube que eu tentaria entrar em 1951, sem saber com precisão o que me aguardava.



Carlos Lacerda perseguiu Wainer implacavelmente. Wainer e o jornalÚltima Hora, indissociáveis. E, ao fazer isso, tinha um objetivo central: atingir Getúlio. Era um golpista convicto, o que lhe importava eram os fins. Os meios, ora, os meios. Nunca se incomodou com a veracidade dos fatos. Lacerda era a voz da direita, a personificação do conservadorismo brasileiro. Brandia seu verbo brilhante, elevado às alturas pelo restante da imprensa, irmanada contra Getúlio, fundado num moralismo visceral, hipócrita, e quase sempre mentiroso, sem qualquer fundamento. As vestais sempre agem assim.
O udenismo tardio que nos assalta frequentemente, querendo atingir Lula, vem de lá, com as mesmas características, com a mesma falta de compromisso com a verdade, embora hoje não carregue, por falta de atores à altura, o brilho dos ataques de Lacerda. São apenas espectros do “Corvo”, apelido apropriado com que Wainer o brindou, sequenciado por outro, “Mata-Mendigos".
A luta que se processou, ali, no território do jornalismo – que era, sem dúvida, também, inseparavelmente, o da política – envolveu, de um lado, como já dissemos, um jornal que se colocara ao lado de um projeto político em andamento, o Última Hora, e, de outro, o restante da imprensa brasileira, convicta de seu pensamento conservador, protagonista das lutas contra quaisquer avanços reformistas, contra melhorias salariais para os trabalhadores, contra a reforma agrária, contra o controle do petróleo pelo Estado, contra as liberdades sindicais, contra a soberania do país.
A mídia hegemônica no Brasil guarda essa característica de há muito – nunca admitiu avanços sociais, propostas de reformas progressistas, nenhum governo que tivesse qualquer matiz de esquerda.
O restante da grande imprensa se constituía em outro projeto político. A imprensa hegemônica era, como é, o sustentáculo do que havia de mais atrasado e conservador no Brasil, e o Última Hora pagou o preço de ir na contramão disso, e apoiar Getúlio. Um preço alto.
Os meios de comunicação dominantes não aceitavam qualquer intruso, e não por ser intruso apenas, mas sobretudo porque era um protagonista com ideias diferentes daquele bloco, o avesso daquele bloco. O ataque de que foi vítima pode, também, ter sido provocado pelo fato de Wainer ter valorizado a redação, começado a pagar salários dignos a seus profissionais, atraído figuras destacadas do jornalismo brasileiro, como Paulo Francis e Nelson Rodrigues. A vida como ela é: foi provocado por tudo isso.


O aspecto principal do ataque ao jornal Última Hora, no entanto, foi o fato de estar ao lado do projeto político que Getúlio Vargas iniciara em 1951, pretendendo dar continuidade ao que começara entre 1930 e 1945, cuja nódoa era a ditadura entre 1937 e 1945. Agora, vinha como líder de massas e abençoado pelas urnas um Getúlio democrático e com um projeto político mais avançado, o que exasperava ainda mais a direita brasileira.
Última Hora não escondia que apoiava Getúlio, sem, no entanto, deixar de lado o apuro jornalístico, a criatividade, o respeito aos fatos. Isso era uma afronta àquelas poucas famílias que haviam se apoderado dos instrumentos de construção da opinião pública no Brasil, famílias que se sentiam no direito de conspirar contra governos legítimos, como no caso do de Getúlio.
E como será logo depois, com a tentativa de não permitir a posse de Juscelino.
E como será em 1964, quando conduz, com os militares, o golpe que cobriria a Nação com um manto de terror e dor.
É assim hoje, há uma década, desde 2002, quando Lula ganhou as eleições presidenciais. Observo, de passagem, e tenho insistido nisso, que somos o único país do mundo em que o alvo principal da oposição é um ex-presidente. Uma característica a ser registrada, a favor de Lula.



Durante todo o segundo governo de Getúlio, Wainer foi perseguido como um cão danado por toda a imprensa e especialmente por Carlos Lacerda, e era perseguido assim com o objetivo central de atingir Getúlio, o verdadeiro alvo de toda essa operação midiática, que tinha respaldo militar. A mídia, quando isso cabia, em clima de Guerra Fria, nunca se envergonhou de ser vivandeira de quartéis. Hoje, felizmente, os quartéis não estão abertos para o assalto midiático.
Wainer foi objeto de uma feroz CPI – e ele confessa que errou ao patrocinar a criação dela, acreditando na superioridade da base aliada de então, que o abandonou às feras. Foi acusado de não ser brasileiro, de favorecimento por bancos oficiais. Foi condenado e preso, e tudo isso, rigorosamente, por ter ousado criar um jornal que se dispôs, desde o início, a defender aquele projeto político, com a clareza de que seria a única publicação a fazê-lo, ao menos a única em condições de confrontar a mídia hegemônica.
O jornal sobreviverá até o meio-dia de 21 de abril de 1972, antes de chegar à maioridade dos 21 anos. A venda se consuma por US$ 1,5 milhão, feita a um grupo de empreiteiros liderado por Maurício Alencar, que já havia arrendado o Correio da Manhã. Passara pela tentativa de golpe contra Juscelino, pelo governo do próprio Juscelino, pelo efêmero Jânio Quadros, pelas turbulências do governo Goulart, até sentir  se abater o terror da ditadura sobre o país.
O momento heroico da trajetória do Última Hora, no entanto, foi inegavelmente o governo Getúlio, quando foi protagonista da história, quando estava na barricada em defesa de um projeto político, combatendo o outro partido, o da mídia hegemônica, de cuja trincheira partiam os ataques mais violentos e mortíferos contra o presidente Getúlio Vargas, até conseguir com que ele, para não passar à história como covarde, desse um tiro no coração e adiasse o golpe por dez anos.
Wainer, que morreu em setembro de 1980, conseguiu terminar a existência podendo se orgulhar de não ter se acovardado diante dos desafios de seu tempo. Como o fizera, a seu modo, o líder que ele mais admirou, Getúlio Vargas.



Talvez, para lembrar a grandeza do jornal, caiba lembrar sua atuação nos instantes finais de Getúlio.
Luís Costa, plantonista no Catete, chama Wainer ao telefone, aos prantos, entre soluços, na manhã do dia 24 de agosto de 1954:
– O presidente acaba de dar um tiro no coração.
Wainer corre para a oficina do jornal, onde o clima era de absoluta comoção, operários em lágrimas, outros desmaiados. À cabeça de Wainer, que não perdia o senso político e o espírito jornalístico, veio a manchete do dia anterior:

Só morto sairei do Catete
Refletiu alguns minutos, poucos. A manchete, incrivelmente forte, continuava lá, intacta, composta em chumbo. À época, para que se entenda, havia o hábito de guardar algumas páginas na estante para a eventualidade de republicar alguma coisa.
Assaltou-lhe a ideia de republicar aquela histórica primeira página exatamente como saíra na véspera. Mas como? Como fazer a ligação com o suicídio, um dia depois? Decidiu.

“Ele cumpriu a promessa.”
  
Só morto sairei do Catete

Logo abaixo, Wainer descreveu o suicídio do presidente. Wainer foi testemunha, naquele dia, da reação cheia de ódio, de indignação do povo que apoiava Getúlio, que saiu pelas ruas do Rio de Janeiro atacando todos os jornais inimigos do presidente morto. E procuravam por Lacerda. Ao contrário do que imaginava a direita raivosa, a população sabia de quem era a culpa pelo suicídio. Essa ideia deconstrução da opinião pública pela imprensa deve ser sempre relativizada, medida, pesada e sopesada. Nunca se está lidando, como às vezes se pensa, com um rebanho de cordeiros, como imaginava a imprensa de ontem, e como raciocina a mídia de hoje.
Wainer chegara a escrever um minieditorial em que conclamava a que se mantivesse a calma. Temia que a direita pudesse usar isso para esmagar as massas desesperadas. Tão grandes foram as manifestações que não houve condições para que os militares tentassem nada.
O único jornal que pôde circular foi o Última Hora, que no dia vendeu perto de 800 mil exemplares. A oficina não parava de trabalhar. O povo nem sequer esperava que o jornal chegasse às bancas – retirava-os à força dos caminhões distribuidores.
Wainer comandava tudo, emocionado mas firme. Via os outros chorando, copiosamente.
E ele, impassível. Quando percebeu que a operação caminhava bem, saiu da oficina, foi para a redação, para um canto de sua sala, e chorou, chorou, e chorou.
Era o fim de Getúlio, a quem devotara sincera amizade e admiração durante anos, o fim do homem que ele tirara do ostracismo para ser líder de massas e presidente da República.
No choro, e todos os seus companheiros de redação fizeram questão de deixá-lo sozinho para chorar em paz, certamente pensava que as mãos da imprensa hegemônica brasileira daquele momento, daquele partido político que fez de tudo para derrubar o presidente, estavam sujas de sangue. Sabia, e não tinha compaixão por isso, que por mais que lavassem as mãos aquele sangue jamais desapareceria.


Nota: A quem quiser conhecer mais profundamente a trajetória daÚltima Hora, além de quaisquer outros livros, sugiro a leitura de Minha Razão de Viver, da Editora Record, longo depoimento do próprio Samuel Wainer, no qual me baseei para produzir este texto. As memórias foram ditadas em três etapas e somam 53 fitas gravadas. Na primeira, iniciada em janeiro de 1980, foram coordenadas por Sérgio de Souza, um dos mais brilhantes jornalistas que conheci, da qual resultaram 35 fitas. Na segunda, e ainda sob a coordenação de Sérgio, mais quatro fitas. E na terceira, conduzida por Marta Góis e finalizada em agosto de 1980, mais catorze fitas.

Emiliano José é professor doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

AS ROUPAS NOVAS DO IMPÉRIO E A OPINIÃO PUBLICADA


Porque o governo dos Estados Unidos se ocupa tanto em  opor-se a toda legislação que no Brasil faça alguma reserva de mercado para a produção cultural nacional? Porque iniciativas como a reativação da sexta frota estadunidense, o estabelecimento de nova base aérea na Colômbia, as pressões contra o programa espacial brasileiro, não são noticiadas pela mídia e grande imprensa do Brasil? Porque a perseguição contra a Wikileaks é tratada sempre como se fosse um caso judicial?
O Império acredita necessitar de controle total. Não consegue, mas usa suas armas para assegurar que esse controle seja o mais amplo possível. Às vezes, até um fiel órgão da imprensa como O Estado de São Paulo se sente obrigado a mostrar que o cônsul estadunidense de São Paulo durante a ditadura era frequente visitador do DOPS, junto com vários empresários ligados à FIESP, durante o período de torturas e suplícios contra presos políticos, como aconteceu há alguns dias.
Internamente lá nos EUA, o estadunidense médio possivelmente acredita no destino manifesto, que dá aos cidadãos daquele país o direito de acesso aos recursos e mercados de outros países, que será reforçado por subornos, pregação ideológica e ações militares, o que der certo.  E de manter uma rede de bases militares no planeta todo, para assegurar que o recado seja entendido, e a punição para os recalcitrantes seja mais rápida.
Para efeitos externos, para além da doutrina de Bill Clinton que avocou publicamente esses direitos para seu país, na total extensão de sua arrogância, a diplomacia e porta-vozes estadunidenses ainda fazem um esforço para legitimar as ações que se relacionam com essa visão. Ainda recorrem esporadicamente ao Conselho de Segurança da ONU, tratam de recrutar aliados para suas ações militares entre outros países, alegam violações de direitos humanos ou internacionais (falsas ou verdadeiras) dos países que eles querem submeter ou punir.
Este império é talvez menos violento do que outros do passado. Não colocam filas de crucificados nas estradas para desencorajar eventuais encrenqueiros, não esquartejam os corpos dos condenados.  Para seus cidadãos comuns, as baixas de guerra têm sido menores: uso de “empresas de segurança”, na realidade exércitos de mercenários em vez de conscritos, aeronaves não tripuladas para bombardear sem riscos para quem as pilota aldeias que abrigam rebeldes do império, com “apenas” alguns milhares de vítimas “colaterais”.
E usam a “soft power”, que inclui os grandes jornais em todo o mundo, a quase monopolística mídia brasileira para difundir sua ideologia e editorar os noticiários no sentido de censurar o que é adverso, dar o maior destaque possível para o que favorece o poder imperial. As grandes corporações, que de fato dirigem os governos em quase todos os países, ao sobrepujar burocracias e os mecanismos da democracia, passam a serem instrumentos de poder do império. Como sucedeu na onda de privatizações feitas na América Latina principalmente na década de 90, mas suas crenças, de caráter quase religioso continuam a pautar opiniões e edição dos noticiários da mídia, ignorando sistematicamente os seus efeitos negativos na economia real. Cá como lá, embora lá as vozes discordantes tenham maior espaço para circular. Aqui, só a mídia alternativa que atua na internet, os blogs “sujos”  de acordo com o José Serra.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

MAIS UMA VÍTIMA DA DITADURA

No sábado passado suicidou-se, aos 40 anos de idade, Carlos Alexandre Azevedo, que foi torturado com pancadas e choques elétricos no DOPS de São Paulo  para pressionar seu pai, Dermi Azevedo, que também havia sido preso e torturado. Carlos tinha 1 ano e oito meses na época e nunca conseguiu um equilíbrio de vida, tendo entrado em depressão clínica aos 37 anos. Ignora-se se o cônsul estadunidense da época Claris Rowney Hallwell,  e a turma da FIESP que frequentavam assiduamente o Dops na época da ditadura, presenciaram ou colaboram com a tortura de Carlos Alexandre. o presidente da Ultragás, H. Boilesen, participava.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

PETROBRAS E LULISMO

É interessante este artigo de um líder dos petroleiros, publicado no site Viomundo. Concordo com a maior parte das colocações de Eduardo Cancella. Mas creio ser necessário fazer algumas observações.

Lula, e seus mais próximos colaboradores, incluindo a presidente Dilma, não se declaram de esquerda. Lula inclusive declarou não ser de esquerda. Várias de suas políticas podem ser consideradas como de esquerda, mas subordinadas a posturas e limites que a esta altura devíamos conhecer bem.

Lula é antes de tudo um negociador que não pretende desafiar a correlação de forças entre as classes sociais, ou a postura dos poderosos, a não ser na margem. Nisto seus governos fizeram grandes progressos, em redistribuição de riqueza, maior soberania nas relações internacionais e ausência de políticas ativas contra os direitos dos trabalhadores.

O governo federal do PT (não só a presidente da Petrobras) não lançou novas iniciativas de privatização, mas procura apaziguar o "Mercado" dando blocos de serviços públicos para a exploração (e acumulação) de empresários privados. Tem usado os bancos federais para limitar a usura dos bancos privados. tem exercido controle sobre os preços dos combustíveis através da Petrobras, tomou a inciativa de baixar as tarifas de geração de energia elétrica usando principalmente seu controle sobre as empresas da Eletrobras. Mas está muito aquém do que seria necessário.

Não tem tentado reformar a administração pública. Nisto, cai na lenga-lenga dos privatistas, que alegam que   tudo que é estatal é ineficiente. As estatais podem não ser tão eficientes do ponto de vista da taxa de lucro, mas por ser subordinadas a um poder eleito, podem ser mais eficientes do vista da sociedade. E podem aumentar a sua eficiência, muito:

Eliminando o empreguismo. Partidos políticos não devem ter quotas, nem ter permissão para negociar cargos.

Assegurando a transparência das administrações diretas e das empresas públicas, e controle pela sociedade através de órgãos apartidários e  independentes. Independentes dos partidos e dos interesses privados.

Falta nesses governos uma visão estratégica que se sobreponha às baboseiras de livre mercado.

Entendo que a FUP e o Sindipetro RJ não queiram antagonizar o governo, que afinal tem feito coisas boas, e tem sido bem melhor que os tucanos, ao concentrar suas baterias na presidente da Petrobras. Mas eu não tenho essa limitação. Aqui, a crítica é dirigida ao governo, do qual Maria das Graças Foster é parte integrante e integrada.


RENÚNCIA DO PAPA

Já que a Igreja Católica está em evidência, revelando que há muita coisa pouco divulgada, é bom lembrar a Opus Dei, organização a que pertence o atual governador de São Paulo. Aqui.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O CORRUPTO COMBATE À CORRUPÇÃO


Quando a ditadura brasileira estava em seu início, uma vez alguém telefonou para o laboratório de físico-química metalúrgica do IPT, onde eu fazia estágio, perguntando se lá era o laboratório de corrupção. Se a pessoa tivesse falado em corrosão, estaria certa.   Mas a confusão com a palavra corrupção vinha antes de tudo do seu uso quase obsessivo pela imprensa que havia apoiado o golpe. Não é de hoje que a mídia comercial e os donos do poder aos quais ela serve usam o conceito não para combatê-lo, e assim conseguir ganhos em justiça, eficiência e equidade para a população, mas para perseguir seus próprios objetivos econômicos e políticos.

Podemos conceituar corrupção em poucas palavras? Ela se manifesta de formas muito diversas, mas creio que a corrupção está presente sempre que, em relações de compra e venda e de poder, usos e normas nominalmente aceitos por todos são violados por alguém em que se confiou para agir dentro deles, ou mesmo impor esses usos e normas, no setor público ou privado.

No período de absolutismo na Europa era normal um nobre assassinar um não nobre e não ser punido por isso pelos burocratas que se encarregavam da justiça.  Era normal bispos e papas viverem uma vida de luxo, moralmente dissoluta e venderem tempos de desconto das penas a serem pagas após a morte no purgatório, que, aliás, foi uma invenção muito conveniente ao poder da igreja. Normal até que aparecessem homens que se voltaram contra essas práticas em nome das pessoas prejudicadas ou para defender alguma mudança nas relações entre as classes sociais.

O termo corrupção se torna de uso comum no estado capitalista, quando alguns intelectuais passam considerar separadamente a riqueza dos poderosos e a riqueza do estado. Mais marcadamente quando foi útil e necessário limitar o poder dos grandes donos de terras, principalmente em favor da emergente burguesia industrial e financeira.

No mundo real, particularmente no Brasil, essa separação nunca ocorreu inteiramente.  Embora em uma verdadeira democracia o estado deva servir a todos em condições de igualdade, na prática alguns são muito mais iguais que os outros, uma “igualdade” expressa no poder do dinheiro, que compra advogados, capangas, políticos e jornais. Todas essas compras podem ser feitas de formas perfeitamente legais, já que nas democracias capitalistas os defensores de direitos iguais para todos, da diversidade de opiniões e da defesa dos menos poderosos não prevalecem, ou acabam por subordinar-se a outros interesses.

Corrupção é inimiga da eficiência, principalmente se a eficiência for medida para além do lucro privado, em função do interesse da sociedade (ou do planeta). É uma forma de roubo, porque desvia dinheiro público para determinadas mãos privadas, e principalmente porque induz o poder público a ações fora do que seria julgado adequado por administradores honestos. É uma forma de ferir a democracia e o interesse comum, tal como a violência política e a manipulação da verdade ou a mentira, praticadas por grandes jornais.
Fiz uma volta para tentar situar melhor o que acontece no Brasil.

Vamos agora falar sobre o PT e seus concorrentes.

Suponhamos que José Sarney, protagonista da ditadura, durante a qual consolidou e ampliou seu império familiar em seu estado de origem, que era da UDN, partido que participou do golpe de 1964 “contra a corrupção e a subversão”, fosse uma pessoa que amealhou sua riqueza e poder de forma legal e ética. Suponhamos que Orestes Quércia, Paulo Maluf, André Franco Montoro, Mario Covas, José Serra, Fernando Henrique Cardoso nunca tenham usado de expedientes ocultos para se financiarem nas eleições (e alguns destes enriqueceram com dinheiro público).

Suponhamos que os programas e práticas de governo desses senhores e de seus partidos tivessem sido baseados no interesse público, e não nos interesses concentrados de grupos econômicos interessados em obter vantagens, indevidas em uma república democrática. Estes políticos conservadores apresentavam-se ideologicamente, como agentes de políticas para toda a sociedade, nunca como representantes de (certos) interesses privados, embora quem acompanhasse de perto a política visse um cenário muito mais complexo e sujo.

Nesse cenário havia surgido o PT, que havia crescido até certo ponto. Um partido que contava muita diversidade em seus quadros, e que realizava muitos debates reais internamente. Sem parar de crescer, o PT, então respeitado mesmo pela maioria de classe média que hoje prefere o discurso da grande mídia, não conseguia passar de certo patamar de votação.  O crescimento trouxe para as fileiras do partido também oportunistas e carreiristas, e a sua direção acabou sendo dominada por grupos que priorizaram a “governabilidade” sobre os propósitos políticos sempre explicitados nas eleições. Começaram e multiplicaram-se acordos com outras forças políticas e com empresários interessados em negócios com o governo. Acordos de que as bases não eram informadas, provavelmente porque se elas soubessem ao menos parte delas denunciariam e todo o público saberia. Falta de transparência é uma das condições para a prática de atos corruptos.

Todos os outros partidos praticavam desde sempre coisas como acordos antes das eleições com empreiteiras, estabelecimento de consultorias com membros dos partidos para serem contratadas pelos governos que eles conquistassem. No governo municipal de Luiza Erundina, um setor do partido que tratava de uma barganha nunca esclarecida com um grupo imobiliário voltou-se contra a prefeita, que se insurgiu publicamente, embora com eufemismos, contra o acordo e destituiu o secretário municipal responsável por ele. O secretário foi marginalizado, mas a atuação desse mesmo setor acabou por causar a saída de Luiza do PT.

Esse foi o primeiro incidente notável. Recebeu como seria de esperar uma repercussão notável na mídia, mas foi um tanto circunscrito. Mais tarde foram surgindo novos incidentes, alguns mais graves, mas em escala de grandeza bem reduzida comparada às formas de corrupção endêmicas em todo o tecido social, que fazem dos funcionários públicos honestos e dedicados minorias nas instâncias que podem ser corrompidas, e às escandalosas transferências de serviços públicos (e potencial de lucros) e de recursos da União para setores privados sem uma contrapartida para o país que ocorreram principalmente no governo de Fernando Henrique Cardoso, como, aliás, exigia e exige a Constituição.

O PT não inovou em corrupção, nem aumentou as práticas corruptas. Algumas iniciativas dos governos Lula e Dilma contra corrupção: deram força e independência para a polícia federal, nomearam, no início, magistrados independentes, baseados mais em notório saber do que em suas ligações políticas, vêm propondo uma mudança na lei eleitoral visando diminuir o poder dos grandes financiadores privados pela adoção do financiamento público das campanhas.  Seus políticos têm a menor percentagem de corruptos julgados e condenados entre os maiores partidos. A questão dos atos corruptos de membros do PT, descontadas as mentiras da imprensa e os desvios de conduta do STF é mesmo uma questão real?

Sem dúvida é. A adoção de práticas como acordos eleitorais com empresários associados a caixa dois, junto com o caráter cada vez mais centralizado e menos transparente de seus quadros dirigentes, feriu o caráter popular do partido, desmobilizou e desmoralizou muitos quadros, principalmente à esquerda. De certa forma, enfraqueceu o que distinguia o PT de outros partidos, a capacidade de mobilizar pessoas quando necessário para fazer avançar uma agenda mais progressista, ou defende-lo de ataques dos donos do poder de sempre. Isto foi obra da direção do PT, que inclui Lula, José Dirceu, José Genoíno. Teria sido possível crescer até a vitória eleitoral sem essas práticas e sem marginalizar a esquerda do PT? A esta altura, não dá para saber. Em todo caso, o governo do PT é o que a esquerda brasileira tem tido de fato, e que ela prefere a governos conservadores, principalmente com os políticos que a direita tem apresentado.

As questões realmente políticas, as que distinguem valores conservadores de valores emancipatórios, em outras palavras posições de direita e de esquerda, não são nunca diretamente colocadas ou discutidas pela mídia, que é conservadora. Todo brasileiro é contrário às práticas corruptas (dos outros). Com essa unanimidade, é possível a cada um fazer muitas coisas: isentar-se de pagar propinas, denunciar tentativas de concussão, denunciar os atos corruptos que forem detectados e denunciar quem paga as propinas a governantes e jornalistas, como multinacionais e governos estrangeiros cujos interesses muitas vezes colidem com os interesses brasileiros, o que inclui evidentemente o império estadunidense.

É necessário lembrar como a rede Globo atingiu sua condição dominante em televisão e rádio em conluio com a ditadura, como o jornal O Estado de São Paulo foi prevenido pela ditadura de uma mudança cambial, do caráter da associação do grupo Folhas com os órgãos de tortura e assassinatos da ditadura, como a revista Veja tem produzido matérias escandalosamente publicitárias como se fossem reportagens e se associado a criminosos como Carlinhos Cachoeira de forma a atender interesses deste e de seus associados políticos como Demóstenes Torres. Os jornalistas dessas empresas renunciaram, em troca de seus salários, a ser objetivos e não seletivos no noticiário.

Em resumo, chamo de corrupção toda deturpação da democracia pelo poder do dinheiro, algo que deve ser combatido de forma radical, sabendo que não é possível mudar da noite para o dia um instrumento que tem sido muito útil ao jogo das forças econômicas e políticas dominantes neste país. Uma parte dessa corrupção básica tem sido, há muito tempo, o falso discurso moralista propalado pela mídia e adotado por grande parte da classe média brasileira.