terça-feira, 30 de abril de 2019

A EXTREMA DIREITA COMEÇOU A GUERRA DIGITAL. AGORA, A REAÇÃO

Veja no Der Spiegel (em inglês) como a ascensão do partido neonazista AfD em grande parte se deu pelo fato de eles preencherem de maneira fulminante o espaço digital com suas arengas e fake news contra imigrantes e minorias.  

Abaixo, uma matéria publicada no Outras Palavras reproduzida do The Intercept Brasil, sobre como jovens de afiliação de esquerda e democrática estão finalmente reagindo contra os grupos que com suas mentiras possibilitaram o crescimento do ódio contra o PT e a esquerda, e a eleição (com uma mãozona do judiciário, geral e eleitoral) do capitão em 2018.

Guerrilha digital nos grupos de WhatsApp

Eles ganham confiança na “discussão”, conquistam o posto de administradores e deletam fóruns. Conheça as tática de jovens ativistas para combater a onda fake news em grupos bolsonaristas de conversa por celular
Por Amanda Audi, no Intercept Brasil
Cansada de brigar por causa de política com o pai, um ferrenho eleitor de Jair Bolsonaro, a estudante Brenda Silva decidiu adotar uma estratégia diferente. Em vez de discutir com ele, passou a agir onde sabia que o pai gastava boa parte do tempo: em grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro.
Tudo começou quando Silva foi convidada a entrar nos grupos de que o pai participava. Ela comprou um chip novo, para que não fosse reconhecida pelo número de telefone, e passou a enviar notícias e vídeos – reais – que expunham os problemas do presidente.
A ideia era apenas rebater argumentos, em geral baseados em fake news, que se cansara de ouvir. À época, o principal assunto nos grupos era o atentado à faca contra Bolsonaro. Os integrantes dos grupos diziam, sem provas, que o mandante havia sido o ex-presidente Lula. A estudante rebatia com fatos da investigação. O pai dela ficou possesso, mas Silva não parou até que conseguisse implodir todos os grupos, um a um.
“Eu o vi xingando ‘aquele fake’ sem saber que era a filha dele. Até que minha madrasta reclamou que ele perdia muito tempo brigando nos grupos e ele resolveu sair de todos”, riu a estudante. Mas aí quem não queria parar era ela. “Já tinha tomado gosto pela coisa.”
Silva, que vive em Goiânia, percebeu que invadir o terreno em que bolsonaristas radicais se sentem mais confortáveis – os grupos de WhatsApp – é uma forma efetiva de combater a proliferação de fake news a favor do presidente. A ferramenta de envio de mensagens instantâneas foi essencial para a eleição de Bolsonaro – as evidências indicam que a avalanche de fake news distribuídas no mundo oculto dos grupos de zap beneficiou mais a ele do que a qualquer outro candidato.

Guerrilha digital

A goiana está longe de ser a única “guerrilheira digital” dedicada a combater fake news e intolerância em grupos de mensagens. Em algumas semanas de pesquisa, conheci dezenas de pessoas – eleitoras de Ciro Gomes, Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Marina Silva e Geraldo Alckmin – que resolveram se entregar à tarefa.
É estafante: são até oito horas diárias com os olhos fixos no WhatsApp. “Cada um mantém a sanidade como consegue”, ela desabafou.
É o caso dos 20 editores de uma página de esquerda no Facebook. Durante a campanha eleitoral, eles entraram em grupos bolsonaristas para entender o que pensavam os apoiadores do capitão reformado. Passado o pleito, decidiram continuar por ali, na esperança de mudar opiniões.
A tática escolhida é curiosa, mas vem surtindo efeito: fingindo ser eleitores de extrema direita, eles lançam mão de argumentos ainda mais radicais que os que habitualmente circulam nos grupos.
Um dos participantes, um bacharel em filosofia que mora em São Paulo e pediu para não ser identificado para não ser descoberto nos grupos, posta coisas como: “Bolsonaro não é só um político, ele é Melquisedeque, a presença do Senhor na Terra, o patriarca de uma nova geração de governantes”. Ou: “A Amazônia está pronta para receber o povo de Israel, meu pastor disse que aqui será a nova Jerusalém”.
Ouve, como resposta, habitualmente, que está louco, que Bolsonaro não é Deus e nem poderia entregar a Amazônia a quem quer que fosse. Alguns ficam tão revoltados que saem do grupo. É quando o paulistano se considera vitorioso.
“Eu uso citações da Bíblia, de Handmaid’s Tale, Game of Thrones e outros livros sobre regimes autoritários. Já mandei as máximas do Grande Irmão de [1984, romance clássico de George] Orwell para defender a ditadura militar. Eles não percebem o humor e a caricatura. Mas, se desenvolvem senso crítico, pra mim está bom”, me disse.
Segundo ele, o trabalho do grupo chega a afugentar uma média de 100 pessoas por semana de grupos que espalham fake news pró-Bolsonaro. “Nós vimos que não dá para dialogar com algumas pessoas, então tentamos assustá-las com o próprio radicalismo. É gente a que só conseguimos chegar assim”, prosseguiu.

Os Agentes das Fanfics

Após dinamitar os grupos de que o pai participava, Brenda Silva percebeu que descobrira uma maneira de enfrentar as notícias falsas e postagens intolerantes que infestam os grupos pró-Bolsonaro. E resolveu ir adiante, ao lado de pessoas que encontrou no Twitter para somar esforços.
A equipe que ela reuniu, chamada de Agentes das Fanfics, tem integrantes no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Distrito Federal. Ninguém se conhece pessoalmente, mas todos conversam diariamente em redes sociais. O lema é “resistência e deboche”, me disse a bacharel em Direito Stefany Oliveira, de Juiz de Fora.
A trupe concebeu uma estratégia peculiar, que até aqui tem se mostrado praticamente infalível: ganhar a confiança dos participantes, conquistar o posto de administrador e deletar o grupo. Montei um passo a passo para explicar como ela funciona:
Agentes das Fanfics sugerem que “esquerdistas” iriam invadir e destruir grupos bolsonaristas – justamente o que eles mesmos estavam fazendo
Ao receber o convite para entrar num grupo bolsonarista, um dos integrantes da equipe entra e começa a conversar, de modo amistoso, com os demais participantes.
Com o passar dos dias, pessoa constrói uma imagem confiável no grupo. Segundo Silva, isso requer tempo, dedicação e muito sangue frio para ler notícias falsas ou opiniões radicais, machistas, misóginas etc. Nesse meio tempo, outros integrantes da trupe são chamados a entrar no grupo.
Após algumas semanas, começa a ação combinada. Geralmente, o integrante há mais tempo no grupo é atacado por um colega de equipe. O “veterano” então procura o administrador do grupo para reclamar da bagunça e das brigas constantes e pede poderes de moderador para retirar pessoas “mal intencionadas” da conversa.
Assim que se torna administrador, o infiltrado avisa os companheiros. É a senha para o grupo ser invadido e ter início um bombardeio de figurinhas (stickers) – geralmente depreciativas a Bolsonaro.
Em seguida, o administrador infiltrado deleta todos os integrantes, matando o grupo.
Desde janeiro, quando o trabalho começou, que a trupe de Silva ostenta cerca de 30 grupos desmantelados, a maioria deles com centenas de participantes. Entre eles, estão agrupamentos batizados de Apenas direita, 100% Bolsonaro, Olavo x Mourão, Mulheres Conservadoras, Brasil com Bolsonaro, Avante Capitão, Mulheres de Direita, O Filho Pródigo (em homenagem a Carlos Bolsonaro), Aliança Israel Brasil, Solteiros Cristãos e Direita unida com Bolsonaro.
Enquanto eu escrevia este texto, eles empreendiam a estratégia noutros dois. “Uso as coisas que escuto do meu pai em casa para me passar por ‘minion’ nos grupos e conseguir virar administradora”, me contou Silva.
No começo, os Agentes das Fanfics usavam o emoticon de um cérebro para se reconhecerem em grupos bolsonaristas. O símbolo ficava camuflado em meio a bandeiras de Israel e Estados Unidos, que costumam ser usados por bolsonaristas no nome do perfil.
Hoje, eles dizem que é possível diferenciar quem é infiltrado ou não só pelo jeito que a pessoa fala. Segundo eles, ‘minions’ não costumam debater os assuntos das postagens e têm uma obsessão particular pelo PT. Infiltrados tentam dialogar e preferem falar do governo Bolsonaro.
A trupe elabora as próprias fake news, sempre contra o governo. É infalível sugerir que um integrante do primeiro escalão do presidente “é de esquerda”, o mais grave dos pecados capitais para os bolsonaristas radicais. Com requintes de ironia, os Agentes das Fanfics sugeriram que “esquerdistas” iriam invadir grupos de bolsonaristas para acabar com eles – que era justamente o que eles estavam fazendo.
“Percebemos que muita coisa que inventamos saía dos grupos de que participávamos e voltava depois como mensagem encaminhada. Então, sabíamos que tinham ‘passeado’ por outros grupos”, me contou o auxiliar administrativo Fábio Alexandre, que vive em Brasília.
“Num dos grupos, eu dei a letra de que só compartilhavam notícias sem fonte e nunca discutiam nada relevante para o país. Claro que muitos me rechaçaram, mas outros tantos concordaram”, comemorou Douglas Godoy, do Rio Grande do Sul, que pediu para não revelar a profissão.
O “resultado”, claro, é muito pequeno se considerado o imenso universo de grupos do WhatsApp. “Mas é um trabalho que alguém precisa fazer. A gente sabe que é enxugar gelo. Mas algumas pessoas já deixaram de ser afetadas pela toxicidade desses grupos”, diz Alexandre. “Se pelo menos 10% dos integrantes de cada grupo que implodimos não entrar pra outro, já estou satisfeita”, falou Oliveira.
A “guerrilha” não se restringe a grupos organizados. Há “lobos solitários” fazendo a mesma coisa, ela me contou. “Tempos atrás eu estava trabalhando em um grupo, e alguém de fora começou a destruí-lo. Até hoje não sei quem era.”


GEORGE MONBIOT CONTRA O CAPITALISMO

Essencial ser radical o suficiente. Do Outras Palavras.

Monbiot: para pensar além do capitalismo

Avança, também em novos públicos, a noção de que o sistema atual precisa ser superado. Mas como fazê-lo, sem resvalar para um socialismo burocratizado e autoritário? Estão surgindo elementos para uma nova saída
Durante a maior parte da minha vida adulta lutei contra “o capitalismo corporativo”, o “capitalismo de consumo” e o “capitalismo clientelista”. Demorou um tempão até eu perceber que o problema não é o adjetivo, mas o substantivo. Enquanto algumas pessoas rejeitaram o capitalismo com prazer e sem demora, eu fiz isso devagar e relutantemente. Em parte porque não via alternativa clara: ao contrário de alguns anticapitalistas, nunca fui entusiasta do comunismo de Estado. Fui também inibido por causa de seu status religioso. Dizer no século 21 que “o capitalismo está fracassando” era como dizer “Deus está morto” no século 19: uma blasfêmia secular. Requer um grau de autoconfiança que eu não possuia.
Mas conforme fui ficando mais velho, reconheci duas coisas. Primeiro, que é o sistema, e não qualquer variante do sistema, que nos conduz inexoravelmente em direção ao desastre. Segundo, que não é necessário produzir uma alternativa definitiva para dizer que o capitalismo está falido. A declaração vale por si. Mas isso também exige de nós um esforço diferente, para desenvolver um novo sistema.
As falhas do capitalismo derivam de dois de seus elementos fundadores. O primeiro é o crescimento perpétuo. O crescimento econômico é resultado da busca de acumular capital e extrair lucro. Sem crescimento o capitalismo entra em colapso, mas o crescimento perpétuo num planeta finito leva inexoravelmente à calamidade ambiental.
Aqueles que defendem o capitalismo argumentam que, conforme o consumo muda de bens para serviços, o crescimento econômico pode ser dissociado do uso de recursos naturais. Semana passada um estudo publicado no jornal New Political Economy, de Jason Hickel e Giorgos Kallis, examinou essa premissa. Ele revela que, embora uma dissociação relativa tenha ocorrido no século XX (o consumo de recursos materiais cresceu, mas não tão rápido quanto o crescimento econômico), houve no século 
XXI uma reassociação: até aqui o crescimento do consumo de recursos igualou ou excedeu a taxa de crescimento econômico. A dissociação absoluta necessária para evitar a catástrofe ambiental (redução do uso de recursos materiais) nunca foi alcançada, e parece impossível enquanto o crescimento econômico continuar. O crescimento verde é uma ilusão.
Um sistema baseado no crescimento perpétuo não pode funcionar sem periferias e externalidades. Precisa sempre haver uma zona de extração – da qual os materiais são retirados sem pagamento integral – e uma zona de descarte, onde os custos são despejados na forma de detritos e poluição. Como a escala de atividade econômica aumenta até o capitalismo afetar tudo, da atmosfera ao solo oceânico mais profundo, o planeta inteiro torna-se uma zona de sacrifício: todos habitamos a periferia da máquina-de-fazer-lucros.
Isso nos conduz em direção à catástrofe, numa escala tal que a maioria das pessoas não consegue imaginar. O colapso que ameaça os sistemas que dão suporte à vida é de longe maior que a guerra, a fome, a peste ou a crise econômica, já que provavelmente incorporará todos os quatro. As sociedades podem se recuperar desses eventos apocalípticos, mas não das perdas de solo, de uma biosfera abundante e de um clima habitável.
O segundo elemento definidor é o pressuposto bizarro de que uma pessoa está autorizada a ter, da riqueza natural do mundo, uma parte tão grande quanto seu dinheiro pode comprar. Esse sequestro dos bens comuns causa outros três deslocamentos. Primeiro, disputa pelo controle exclusivo de bens não reproduzíveis — o que implica violência ou supressão jurídica dos direitos de outras pessoas. Segundo, falta de solidariedade pelas pessoas, numa economia baseada na pilhagem, no espaço assim como no tempo. Terceiro, tradução do poder econômico em poder político, pois o controle sobre recursos essenciais leva ao controle sobre as relações sociais que o cercam.
No New York Times de 19/4, o Nobel de economia Joseph Stiglitz quis fazer uma distinção entre capitalismo bom, que chamou de “criação de riquezas”, e capitalismo mau, que chamou de “saque de riquezas” (ou rentismo). Entendo sua distinção. Mas, do ponto de vista do meio ambiente, criação de riquezas é saque de riquezas. Crescimento econômico, ligado intrinsecamente ao progressivo uso de recursos materiais, significa sequestrar riqueza natural, tanto dos sistemas vivos quanto das gerações futuras.
Apontar para tais problemas é atrair uma enxurrada de acusações, muitas das quais baseadas nesta premissa: o capitalismo resgatou centenas de milhões de pessoas da pobreza – e agora você quer empobrecê-las novamente. É verdade que o capitalismo, e o crescimento econômico que produz, melhoraram radicalmente a prosperidade de um grande número de pessoas, ao mesmo tempo em que destruíram a prosperidade de muitos outros: aqueles cuja terra, mão-de-obra e recursos foram sequestrados para abastecer o crescimento em outros lugares. Grande parte da fortuna das nações ricas foi – e é – construída sobre escravidão e expropriação colonial.
Assim como o carvão, o capitalismo trouxe muitos benefícios, Mas, como o carvão, ele agora causa mais mal do que bem. Assim como descobrimos meios melhores e menos prejudiciais de gerar energia que o carvão, precisamos descobrir meios de gerar bem-estar humano melhores e menos prejudiciais que o capitalismo.
Não tem volta: a alternativa ao capitalismo não é nem o feudalismo nem o comunismo de Estado. O comunismo soviético tinha mais em comum com o capitalismo do que os defensores de qualquer desses sistemas ousariam admitir. Ambos os foram (ou são) obcecados com a geração de crescimento econômico. Ambos estão dispostos a infligir níveis surpreendentes de destruição na busca deste e de outros fins. Ambos prometiam um futuro em que trabalharíamos apenas algumas horas por semana mas exigem, ao contrário, um trabalho brutal e sem fim. Ambos são desumanizadores. Ambos são absolutistas, e insistem que o seu, e apenas o seu, é o único Deus verdadeiro.
Como seria um sistema melhor? Não tenho uma resposta acabada, e não acredito que alguma pessoa a tenha. Mas penso ver um esboço rudimentar emergindo. Parte dele é proporcionado pela civilização ecológica proposta por Jeremy Lent, um dos maiores pensadores da nossa era. Outros elementos vêm da economia da rosquinha de Kate Raworth e do pensamento ambiental de Naomi Klein, Amitav GhoshAngaangaq AngakkorsuaqRaj Patel e Bill McKibben. Parte da resposta está na noção de “suficiência privada, luxo público”. Outra parte surge da criação de um novo conceito de justiça, baseado neste simples princípio: toda geração, em todo lugar, terá direitos iguais ao usufruto da riqueza natural.
Acredito que nossa tarefa seja identificar as melhores propostas de vários pensadores diferentes e articulá-las numa alternativa coerente. Como nenhum sistema econômico é apenas um sistema econômico, mas penetra em todos os aspectos de nossa vida, precisamos de muitas mentes, de várias disciplinas – econômicas, ambientais, políticas, culturais, sociais e logísticas – trabalhando colaborativamente para criar uma maneira melhor de nos organizar, que atenda às nossas necessidades sem destruir nossa casa.
Nossa escolha se resume a isso. Acabar com a vida, para permitir que o capitalismo continue, ou acabar com o capitalismo para permitir que a vida continue?
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segunda-feira, 29 de abril de 2019

NOTÍCIA FRESCA! UMA PEQUENA ANÁLISE DAS ELEIÇÕES NA ESPANHA

Do Guardian do dia 29 de Abril



A vitória dos socialistas espanhóis é o sinal mais recente da retomada da centro-esquerda da Europa

Vitória do PSOE na eleição de domingo vem à custa do centro-direita que tentou flanquear os extremistas

Jon Henley   correspondente de assuntos europeus
 @jonhenley

 Uma vitória socialista decisiva na eleição espanhola no domingo pode ser vista na Europa como evidência de uma recuperação de centro-esquerda - mas também ressalta os perigos de cortejar a extrema direita os para conservadores moderados.

O Partido Socialista de Pedro Sánchez (PSOE) conquistou 123 assentos e 29% dos votos nas eleições de domingo, bem acima dos 85 assentos e 23% em 2016. O conservador Partido do Povo (PP) perdeu metade de seus votos e a metade de seus parlamentares, terminando em segundo com 66 lugares.

Em uma paisagem cada vez mais fragmentada - os dois principais partidos da Espanha poderiam no passado esperar 80% dos votos entre eles - os cidadãos de centro-direita conquistaram 57 cadeiras, o anti-austeridade Podemos Unidos e seus aliados 42, e a extrema-direita Vox 24.

O resultado justificou a campanha modesta, mas determinada, de Sánchez, demonstrando que os partidos de centro-esquerda ainda podem ganhar as eleições europeias seguindo políticas socialmente liberais de centro-esquerda e atacando a extrema direita.

Também consolida o que está começando a parecer uma reviravolta nas fortunas dos partidos socialdemocratas do continente, depois de alguns anos catastróficos de queda devastada pela austeridade da crise financeira de 2008.
Os socialdemocratas da Suécia conseguiram permanecer o maior partido do país no ano passado e - talvez um desafio maior - formar um governo depois, enquanto a centro-esquerda chegou ao topo nas eleições finlandesas neste mês pela primeira vez em 20 anos.

Atualmente, os socialdemocratas estão liderando as pesquisas na Dinamarca, que deve ter uma eleição geral neste verão, e os socialistas de Portugal parecem estar prestes a se reeleger no final deste ano, e até mesmo o Partido Democrata da Itália está começando a subir nas pesquisas.

A esquerda talvez se inspire na popularidade das políticas de Sánchez. Desde que se tornou primeiro-ministro no ano passado, depois de o conservador Mariano Rajoy ter sido derrotado em um voto de desconfiança, o líder socialista elevou o salário mínimo da Espanha em 22% e deu aos 2,5 milhões de trabalhadores do setor público um aumento salarial de 2,5%.

Mas Sanchez também bateu na extrema direita, usando a ameaça do Vox, nacionalista, anti-imigração e reacionário - o primeiro grupo de extrema direita a ganhar mais de um assento no parlamento desde o retorno da Espanha à democracia após a morte do general Franco - para mobilizar eleitores de esquerda. Um governo apoiado pela extrema-direita arriscou "fazer o país voltar 40 anos", disse ele.

Igualmente significativo na vitória dos socialistas foi o dramático colapso do PP de centro-direita, que sob a liderança de Pablo Casado adotou cada vez mais uma postura de extrema direita socialmente conservadora em questões que vão desde impostos, aborto e imigração até independência política e “politicamente correto”.

Foi uma estratégia desastrosa, com eleitores do PP radicais indo quer para o Vox (supondo, presumivelmente, que o original era preferível à imitação) ou Ciudadanos, e os eleitores de esquerda decidindo que era mais importante do que nunca aparecer e votar.

A súbita implosão do PP e a divisão da ampla direita da Espanha em três facções diferentes refletem uma clara tendência europeia: partidos de centro-direita que tentam superar a extrema direita populista adotando suas políticas ultraconservadoras, políticas de nação em primeiro lugar, e retórica, são punidos nas pesquisas - e não apenas pela extrema direita.

Mais recentemente, a coalizão governista de quatro partidos da Holanda, liderada pelo partido conservador VVD, do premiê Mark Rutte, perdeu nas eleições para a câmara alta para o novo partido de extrema-direita Fórum para a Democracia (FvD) e a Esquerda Verde, e agora tem que buscar alianças com a oposição para aprovar a legislação.

Mais espetacularmente, o voto para o anteriormente dominante CSU, o partido da Bavária irmão da CDU de centro-direita de Angela Merkel, desmoronou em outubro como uma campanha linha dura que visava contrapor a alternativa de extrema-direita da Alemanha (AFD) não conseguiu reconquistar a direita. eleitores e ao mesmo tempo ofendeu seus partidários mais moderados.

Como outros líderes de centro-esquerda que, em uma política europeia cada vez mais polarizada e fragmentada, se saíram melhor do que esperavam nos últimos meses, Sánchez não achará fácil construir ou manter a maioria no parlamento.

Mas se era esperado o há muito tempo colapso dos tradicionais partidos socialdemocratas da UE como uma das principais histórias das eleições parlamentares europeias do mês que vem, agora parece que a central direita pode estar em dificuldades ainda maiores.

NEOLIBERALISMO NOS PROLEGÔMENOS

Uma historinha minha

                
Corria o ano de 1977. Ainda não havia sido derrubado o Xá da Pérsia, portanto tinha havido só um choque do petróleo, o de 1973, que ocorreu logo depois da guerra do Yom Kipupur no Oriente Médio. O presidente dos EUA era Jimmy Carter, o do Brasil o general-presidente Ernesto Geisel.

Um ano e meio antes, em 1975, eu havia sido contratado pelo governo federal brasileiro como um reforço para um grupo de profissionais que atuavam em um órgão de planejamento e deliberativo que avaliava e decidia sobre os grandes investimentos nas indústrias de aço e de metais não ferrosos no país. Funcionava sob o Ministério da Indústria e do Comércio, cujo titular era o empresário nacionalista Severo Gomes, que era o dono dos Cobertores Parahyba.

Pois nessa época eu havia sido encarregado de visitar algumas grandes empresas siderúrgicas para instruir o processo de licitação de uma nova fábrica de tubos de aço sem costura. Como havia apenas uma dessas fábricas, a Mannesmann, em Belo Horizonte, o CONSIDER – esse o nome do organismo para o qual eu trabalhava, e o governo queria atrair algum outro grande produtor desses tubos. Para isso, minha chefia programou a visita a grandes produtores: no México, nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e na Itália. Um périplo.

Nos EUA a visita foi para a United States Steel, então uma das maiores empresas siderúrgicas do mundo, com uma visita a instalações industriais na cidade de Gary, antes de um encontro com executivos em Chicago – que estava em outro estado, mas apenas a 40 km de Gary. Em Chicago, meu cicerone levou-me para um almoço em ou próximo ao John Hancock Center, o edifício mais alto da cidade e um dos mais altos do mundo.

Antes ou depois de terem me oferecido uma prostituta, que recusei, fui levado para um encontro com executivos da U.S. Steel em um Private Club. Sabe esses lugares que aparecem em alguns filmes estadunidenses de décadas atrás, que VIPs costumavam usar para serem bajulados por garçons e outros serviçais, e encher a cara com privacidade? Pois foi isso.

Foi lá que um dos presentes, executivo da empresa de que não me lembro de nem o cargo, veio com uma afirmação que parece irrelevante hoje, mas que me surpreendeu pela solenidade com que foi pronunciada. Dizia mais ou menos assim: por muitos anos ele achou que o trabalho de sua empresa fosse produzir aço. Não mais. Agora, na U.S. Steel, o objetivo das atividades seria o de fazer dinheiro.

Achei essa afirmação pitoresca. Nessa época o Consenso de Washington ainda não tinha sido formulado oficialmente – só seria divulgado com esse nome uns quinze anos mais tarde. Não sabia que os princípios da ideologia neoliberal, que marcaria o estado brasileiro a partir da eleição de Fernando Collor, estavam embutidos nessa afirmação de um pomposo executivo engravatado para um funcionário de terceiro escalão do governo brasileiro (também engravatado na época). Hoje sabemos que essa frase baseia e motiva todas as côrtes e tropas do capital financeiro dominante.

Estivemos esse tempo todo sem enxergar a estrutura e a dinâmica do processo neoliberal, à medida que ele foi se expandindo quase silenciosamente, com o arrogante lema TINA (não existe alternativa, sigla em inglês), tomando a Academia, a Mídia, os Bancos Centrais, quadros mais graduados do funcionalismo. E governos moderados, e governos de centro-esquerda.  

A esquerda tradicional não foi capaz de conhecer e enfrentar esse processo. Bem vindas novas esquerdas.

terça-feira, 23 de abril de 2019

NOVO LIVRO DE STIGLITZ NA PRAÇA

Recém lançado nos EUA, logo deve ganhar uma tradução brasileira. Este artigo é dele, Joseph Stiglitz, para divulgar. Depois das ditaduras do século 20, e dos golpes do século 21, aqui e no mundo, duvido que se possa domar o capitalismo a ponto de fazê-lo servir as pessoas ao invés de garantir a acumulação de riqueza cada vez mais concentrada, para o 1% dos 1%, às custas de todos os demais. Mas é o que tem movido pessoal da esquerda estadunidense, como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio Cortez e alguns outros. A conferir.

A tradução a seguir é do artigo do Stiglitz, publicado no New York Times, publicada pelo Conversa Afiada. 


"Capitalismo progressista" não é um paradoxo!

Nobel Stiglitz mostra por que o neoliberalismo é um fracasso, viu Míriam?
publicado 22/04/2019
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O problema é que ela e o Murrow não dominam o Inglês...

O Conversa Afiada reproduz do New York Times artigo de Joseph E. Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia (clique aqui para ler o original, em Inglês):
Apesar das menores taxas de desemprego desde o fim dos anos 1960, a economia americana está falhando com seus cidadãos. Cerca de 90% viram seus rendimentos estagnarem ou declinarem nos últimos 30 anos. Isto não é surpreendente, dado que os Estados Unidos têm o nível mais alto de desigualdade entre os países avançados e um dos níveis mais baixos de oportunidade - com a sorte dos jovens americanos mais dependentes da renda e educação de seus pais do que em outros lugares.
Mas as coisas não precisam ser assim. Existe uma alternativa: o capitalismo progressista. O capitalismo progressista não é um paradoxo; podemos de fato canalizar o poder do mercado para servir à sociedade.
Nos anos 80, as “reformas” regulatórias de Ronald Reagan, que reduziam a capacidade do governo de conter os excessos do mercado, foram vendidas como grandes estimuladores da economia. Mas aconteceu exatamente o contrário: o crescimento desacelerou e, ainda mais estranho, isso aconteceu na capital mundial da inovação.
A corrida do açúcar produzida pela liberalidade do presidente Trump em relação às empresas na lei tributária de 2017 não lidou com nenhum desses problemas de longo prazo e já está desaparecendo. Espera-se que o crescimento seja um pouco abaixo de 2% no próximo ano.
É esse nível que nós regredimos, mas não precisamos permanecer nele. Um capitalismo progressista baseado na compreensão do que dá origem ao crescimento e ao bem-estar social nos apresenta uma saída para esse atoleiro e um caminho para elevar nossos padrões de vida.
Padrões de vida começaram a melhorar no final do século XVIII por duas razões: o desenvolvimento da ciência (aprendemos a aprender sobre a natureza e usamos esse conhecimento para aumentar a produtividade e a longevidade) e desenvolvimentos na organização social (como sociedade, aprendemos a trabalhar em conjunto, por meio de instituições como o Estado de Direito e democracias com pesos e contrapesos).
A chave para ambos eram sistemas de avaliação e verificação da verdade. O perigo real e duradouro da gestão Trump é o risco que ela representa para esses pilares de nossa economia e sociedade, seu ataque à própria ideia de conhecimento e expertise, e sua hostilidade às instituições que nos ajudam a descobrir e avaliar a verdade.
Existe um pacto social mais amplo que permite que uma sociedade trabalhe e prospere em conjunto, e isso também tem se desgastado. A América criou a primeira sociedade verdadeiramente de classe média; agora, uma vida de classe média está cada vez mais fora do alcance de seus cidadãos.
Os Estados Unidos chegaram a esse triste estado porque nos esquecemos de que a verdadeiras fontes de riqueza de uma nação são a criatividade e a inovação de seu povo. Pode-se ficar rico adicionando ao bolo econômico da nação ou pegando uma fatia maior do bolo explorando outros - abusando, por exemplo, do poder de mercado ou de informações privilegiadas. Nós confundimos o árduo trabalho de criação de riqueza com a apropriação de riqueza (ou, como dizem os economistas, rent-seeking), e muitos de nossos jovens talentosos caíram no canto da sereia de ficarem ricos rapidamente.
Começando com a era Reagan, a política econômica desempenhou um papel fundamental nessa distopia: assim como as forças da globalização e da mudança tecnológica estavam contribuindo com a crescente desigualdade, adotamos políticas que agravaram as iniquidades sociais. Mesmo com teorias como "economia da informação" (lidando com onipresentes situações em que a informação é imperfeita), "economia comportamental" e "teoria dos jogos", que surgiram para explicar por que os mercados por si só não são eficientes, justos, estáveis ou aparentemente racionais, nós confiamos nos mercados e reduzimos as proteções sociais.
O resultado é uma economia com mais exploração - sejam práticas abusivas no setor financeiro ou no setor de tecnologia, quando usam nossos próprios dados para obter vantagem ao custo de nossa privacidade. O enfraquecimento da fiscalização antitruste e a falha da regulamentação para acompanhar as mudanças em nossa economia e as inovações na criação e alavancagem do poder de mercado fizeram com que os mercados se tornassem mais concentrados e menos competitivos.
A política tem desempenhado um papel importante no aumento da rent-seeking a por parte das empresas e na desigualdade que a acompanha. Os mercados não existem no vácuo; eles precisam ser estruturados por regras e regulamentos, e essas regras e regulamentos devem ser cumpridos. A desregulamentação do setor financeiro permitiu que os banqueiros se engajassem em atividades excessivamente arriscadas e mais exploradoras. Muitos economistas entenderam que o comércio com os países em desenvolvimento reduziria os salários americanos, especialmente para aqueles com habilidades limitadas, e destruiria empregos. Poderíamos e deveríamos ter prestado mais assistência aos trabalhadores afetados (assim como devemos prestar assistência aos trabalhadores que perdem seus empregos como resultado da mudança tecnológica), mas os interesses corporativos se opuseram a isso. Um mercado de trabalho mais fraco significava, convenientemente, custos de mão-de-obra doméstica mais baixos para complementar as empresas de mão-de-obra barata empregadas no exterior.
Estamos agora em um ciclo vicioso: a maior desigualdade econômica está levando, em nosso sistema político movido por dinheiro, a mais desigualdade política, com regras e desregulamentação mais fracas, causando ainda mais desigualdade econômica.
Se não mudarmos esse curso, a situação provavelmente piorará, já que as máquinas (inteligência artificial e robôs) substituem uma fração crescente da mão de obra de rotina, incluindo muitos dos empregos dos vários milhões de americanos que ganham a vida dirigindo.
A prescrição vem a partir do diagnóstico: ela começa reconhecendo o papel vital que o Estado desempenha ao fazer os mercados servirem à sociedade. Precisamos de regulamentações que assegurem uma forte concorrência sem exploração abusiva, realinhando o relacionamento entre as empresas e os trabalhadores que elas empregam e os clientes que eles deveriam servir. Devemos ser tão resolutos no combate ao poder do mercado quanto o setor corporativo no combate para aumentá-lo.
Se tivéssemos restringido a exploração em todas as suas formas e estimulado a criação de riqueza, teríamos uma economia mais dinâmica e com menos desigualdade. Poderíamos ter contido a crise dos opiáceos e evitado a crise financeira de 2008. Se tivéssemos feito mais para diminuir o poder dos oligopólios e fortalecer o poder dos trabalhadores, e se tivéssemos responsabilizado nossos bancos, a sensação de impotência poderia não ser tão difundida e os americanos poderiam ter mais confiança em nossas instituições.
Existem muitas outras áreas nas quais a ação do governo é necessária. Os mercados, por si só, não oferecem seguro contra alguns dos maiores riscos que enfrentamos, como desemprego e incapacidade. Eles não fornecem pensões de forma eficiente com baixos custos administrativos e seguros contra a inflação. E eles não fornecem uma infraestrutura adequada ou uma educação decente para todos, nem se envolvem o bastante com pesquisa básica.
O capitalismo progressista se baseia em um novo contrato social entre eleitores e autoridades eleitas, entre trabalhadores e empresas, entre ricos e pobres, e entre aqueles com empregos e aqueles que estão desempregados ou subempregados.
Parte deste novo contrato social é uma opção pública expandida para muitos programas agora fornecidos por entidades privadas - ou não oferecidos de qualquer forma. Foi um erro não incluir a opção pública no Obamacare: ela teria fortalecido a liberdade de escolha e ampliado a competição, reduzindo os preços. Mas também é possível projetar opções públicas em outras áreas, por exemplo, para aposentadoria e hipotecas. Este novo contrato social permitirá que a maioria dos americanos volte a ter uma vida de classe média.
Como economista, sempre me perguntam: podemos nos dar ao luxo de fornecer essa vida de classe média para a maioria, ou mesmo para todos os americanos? De alguma forma, nós fizemos isso quando éramos um país muito mais pobre nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Em nossa política, em nossa participação no mercado de trabalho e em nossa saúde, já estamos pagando o preço por nossos fracassos.
A fantasia neoliberal de que mercados sem restrições proporcionarão prosperidade a todos deveria ser posta de lado. É tão fatalmente falha quanto a noção, após a queda da Cortina de Ferro, de que estávamos vendo “o fim da história” e que em breve todos os países seriam democracias liberais com economias capitalistas.
Mais importante, nosso capitalismo explorador moldou quem somos como indivíduos e como sociedade. A desonestidade desenfreada que vimos da Wells Fargo e da Volkswagen ou de membros da família Sackler ao promoverem drogas que eles sabiam ser viciantes - isso é o que se pode esperar de uma sociedade que enaltece a busca de lucros como principal objetivo, para citar Adam Smith, “como se por uma mão invisível”, para o bem-estar da sociedade, sem considerar se esses lucros derivam da exploração ou da criação de riqueza.

VEBLEN, E O REGIME CAPITALISTA DE NOSSOS DIAS

Este artigo de Ann Jones saiu no Tom Dispatch. Em tempos de confusão como o atual, é importante examinar paralelos geográficos (EUA) e históricos (100 anos atrás), e aproveitar a análise de um importante pensador como Veblen.

O original, em inglês, você encontra aqui. Tem vários links que não incluí na tradução que fiz, e que vai abaixo.


O homem que viu Trump chegando há um século
Um guia do leitor para os perturbados
Por Ann Jones

Diariamente distraído com o bombardeio de discursos sobre o POTUS  (presidente dos EUA)? Aqui vai, então, uma pequena sugestão. Focalize sua mente por um momento em uma simples (mas profundamente complexa) verdade: estamos vivendo em um Momento Veblen.

Trata-se de Thorstein Veblen, o maior pensador americano de quem você provavelmente já ouviu falar (ou esqueceu). Sua vida profissional - de 1890 a 1923 - coincidiu com a primeira Era Dourada da América, assim chamada por Mark Twain, cujo romance com esse título satirizou a corrupção gananciosa dos cavalheiros mais ilustres do país. Veblen tinha um senso de humor igualmente sombrio e sarcástico.

Agora, na segunda (maior e melhor) Era Dourada dos EUA, em um mundo de desigualdade impressionante, acredite em mim, é útil lê-lo novamente.

Nos seus tempos de estudante em Johns Hopkins, Yale e, finalmente, Cornell, já dominando várias línguas, ele estudou antropologia, sociologia, filosofia e economia política (o antigo termo para o que hoje é chamado de economia). Isso foi quando os economistas estavam preocupados com as condições da vida real dos seres humanos, e não teriam ficado satisfeitos só com os dados de um "mercado livre" ilusório.

Veblen conseguiu seu emprego inicial, ensinando economia política com um salário de US $ 520 por ano, em 1890, quando a Universidade de Chicago abriu suas portas pela primeira vez. Em dias bem anteriores aos escândalos de admissão nas universidades estadunidenses, essa escola foi fundada e financiada por John D. Rockefeller, o clássico barão ladrão da Standard Oil. (Pense nele como o Mark Zuckerberg de sua época).  Mesmo meio século antes de o economista de livre mercado Milton Friedman ter capturado o departamento de economia de Chicago com o dogma que serve à classe dominante, Rockefeller chamou a universidade de “o melhor investimento” que ele já fez. Ainda assim, desde o início, Thorstein Veblen estava lá, preparado para concentrar sua mente em Rockefeller e seus comparsas, na nata da classe alta e nos aproveitadores mais implacáveis ​​por trás daquela Era Dourada.

Ele já estava fazendo perguntas que merecem ser levantadas novamente no mundo dos  1% de 2019. Como essa classe senhorial tão notável se desenvolveu na América? Para que propósito isso serviu? O que os membros da classe de lazer faziam com seu tempo e dinheiro? E por que tantos das classes mais baixas, impiedosamente sobrecarregadas e sub-remuneradas, toleraram um arranjo social tão peculiar e desequilibrado no qual foram tão claramente os perdedores?

Veblen abordou essas questões em seu primeiro e ainda mais conhecido livro, The Theory of the Leisure Class, publicado em 1899. O influente crítico literário e romancista William Dean Howells, o “decano das letras americanas”, captou perfeitamente o efeito do estilo brilhante, com a face de jogador científico de pôquer de Veblen, em uma revisão deslumbrada. "Na calma impassível com que o autor persegue sua investigação", escreveu Howells, "aparentemente não há ânimos a favor ou contra uma classe de lazer. Seu caso é simplesmente descobrir como e por que e o que é. Se o resultado é deixar o leitor com um sentimento que o autor nunca mostra, isso parece ser apenas o efeito dos fatos”.

O livro teve uma grande repercussão. Deixou divertidos os leitores presunçosos e tolos da classe do lazer. Mas os leitores já em revoltar, no que veio a ser conhecido como a Era Progressista, saíram com desprezo pelos ricos imundos (um sentimento que hoje, com um plutocrata presunçoso e insensato na Casa Branca, deveria ser muito mais comum do que é).

O que Veblen Viu

“A expressão atualmente comum, “classe do lazer”, foi invenção de Veblen, e ele teve o cuidado de defini-la:  “O termo  “lazer“, como é usado aqui, não conota indolência ou quietude. O que ele denota é o consumo não produtivo do tempo. “O tempo é consumido de forma não produtiva (1) a partir de um sentimento de indignidade do trabalho produtivo e (2) como uma evidência da capacidade pecuniária de proporcionar uma vida de ócio.”

Veblen observou um mundo em que aquela classe do lazer, voltando seu nariz coletivo para as massas trabalhadoras, estava em torno dele, mas também viu evidências de outra coisa. Seus estudos antropológicos revelaram culturas anteriores cooperativas e pacíficas que não haviam sustentado tal classe ociosa. Nelas, homens e mulheres trabalharam juntos, motivados por um orgulho instintivo de mão-de-obra, um desejo natural de imitar os melhores trabalhadores e uma profunda preocupação parental - uma inclinação parental como ele chamou - pelo bem-estar das gerações futuras. Como filho de imigrantes noruegueses, o próprio Veblen cresceu em uma fazenda de Minnesota, no meio de uma comunidade de língua norueguesa muito unida. Ele sabia exatamente o que era uma cultura cooperativa e o que era possível, mesmo em um mundo dourado (e profundamente empobrecido).

Mas a antropologia também registrou muitas sociedades sobrecarregadas de classes que salvaram os homens da classe alta para os “empregos honrados”: governo, guerra, ofício sacerdotal ou esportes. Veblen observou que tais arranjos provocavam um comportamento agressivo e dominante que, com o tempo, fez com que as sociedades mudassem para pior. De fato, aqueles homens agressivos de classe alta logo descobriram o prazer especial que havia em pegar o que queriam “tomando”, como Veblen denominou. Uma maneira tão agressiva de viver e agir, por sua vez, tornou-se a definição de “proeza” viril, admirada até mesmo pela classe trabalhadora submetida a ela. Em contraste, o trabalho real - a produção trabalhosa dos bens necessários à sociedade - foi desvalorizado. Como Veblen colocou, “A obtenção [de bens] por outros métodos além da apreensão passa a ser considerada indigna do homem em seu melhor estado”. Parece que há mais de um século, os homens dominantes da Era Dourada anterior já estavam, como nosso presidente, produzindo sua própria publicidade.

Como darwinista científico, Veblen viu que tais mudanças se desenvolviam gradualmente a partir de alterações nas circunstâncias materiais da vida. Novas tecnologias, ele entendeu, aceleravam a industrialização, que por sua vez atraia aqueles homens da classe do lazer, sempre à procura da próxima coisa de valor para se apoderarem e se apropriarem delas. Quando "os métodos industriais foram desenvolvidos com tal grau de eficiência que deixam uma margem pela qual vale a pena lutar", escreveu Veblen, os homens vigilantes atacaram como aves de rapina.

Tal constante “predação”, sugeriu ele, logo se tornou o “recurso habitual e convencional” da classe parasitária. Desse modo, uma existência comunal mais pacífica evoluiu para a era industrial sombria e combativa em que ele se encontrava: uma era toldada por predadores que buscavam apenas lucros e poder, e abatendo todos os trabalhadores que tentassem defender-se. Para Veblen, essa mudança não foi apenas "mecânica". Foi uma transformação espiritual.

A Classe Conspícua

Economistas clássicos a partir de Adam Smith tipicamente representaram o homem econômico como uma criatura racional, agindo discretamente em seu interesse próprio. No trabalho de Veblen, no entanto, os únicos homens - e eram todos homens naquela época - que agiam dessa forma eram aqueles barões ladrões, admirados por suas “proezas” pelos caras da classe trabalhadora que eles predavam. (Pense no presidente Trump e em seus seguidores de chapéu MAGA.) Os trabalhadores humildes de Veblen ainda pareciam impulsionados pelo "instinto de emulação". Eles não queriam derrubar a classe de lazer. Eles queriam subir para ela.

De sua parte, os senhores ociosos afirmavam sua superioridade demonstrando publicamente seu lazer ou, como disse Veblen, sua “evidente abstenção do trabalho”. Jogar golfe, por exemplo, como O Donald tem passado boa parte de sua presidência fazendo, tornou-se, ao mesmo tempo, “a marca convencional de realização pecuniária superior” e “o índice convencional de respeitabilidade”. Afinal, escreveu ele, “o princípio permeável e o teste permanente da boa origem familiar é a exigência de um desperdício de tempo substancial e patente. Na versão de Donald Trump da mesma coisa, ele mostrou sua propensão para o consumo conspícuo, tornando-se o proprietário de uma cadeia global de campos de golfe, onde ele realiza seu "lazer conspícuo", esquivando-se de uma tempestade e carregando o que Veblen chamou de "abstenção conspícua do trabalho” a alturas particularmente invejáveis.

Veblen dedicou 14 capítulos d’ A Teoria da Classe do Lazer à análise de todos os aspectos da vida dos plutocratas que viviam em um mundo dourado e da mulher que o acompanhava em suas saídas conspícuas, elaboradamente embaladas em roupas apertadas, saltos altos incapacitantes e “cabelos excessivamente compridos” para indicar quão inadequada ela era para o trabalho e o quanto ela era ainda “parte dos bens móveis do homem ”. “Tais mulheres, ele escreveu, eram” servas a quem, na diferenciação das funções econômicas, foi delegada a função de colocar em evidência a habilidade de seu mestre em pagar. ”(Pense novamente no POTUS e em quem quer que tenha exibido certa vez com certo orgulho possessivo, apenas para pagar uma propina em seguida.)

E tudo isso é só do capítulo sete, “Vista-se como uma expressão da cultura pecuniária”. Hoje, cada um desses capítulos de um século atrás permanece uma pequena obra-prima ainda aplicável de observação, insight e audácia, embora provavelmente tenha sido o 14º e último capítulo que o fez ser demitido da universidade de Rockefeller: “O Ensino Superior como uma Expressão da Cultura Pecuniária”. Quão oportuno é isso?

O (re) atraso dos conservadores

Tanto um economista evolucionista como um economista institucional (dois campos que ele originou), Veblen sustentou que nossos hábitos de pensamento e nossas instituições devem necessariamente “mudar quando as circunstâncias mudam”. Infelizmente, eles frequentemente parecem ancorados em seu lugar, limitados pela inércia social e psicológica do conservadorismo. Mas por que isso deveria ser assim?

Veblen tinha uma resposta simples. A classe de lazer está tão protegida das inevitáveis ​​mudanças que ocorrem no resto da sociedade que só adaptará seus pontos de vista, se é que chega a isso, “tardiamente”. Confortavelmente sem noção (ou calculista), a rica classe de lazer marca passo para retardar as forças econômicas e sociais que contribuem para a mudança. Daí o nome "conservadores". Esses (re) atrasos - a defasagem de tempo imposta pela complacência conservadora - privam e sufocam a vida de todos e o oportuno desenvolvimento econômico da nação (pense em nossa infraestrutura negligenciada, educação, habitação, cuidados de saúde, transporte público - você conhece a lista que vai se alongando atualmente.)

Aceitar e ajustar-se às mudanças sociais ou econômicas, infelizmente, requer um prolongado “esforço mental”, do qual a mente conservadora e despreocupada recua automaticamente. Mas também, disse Veblen, as mentes dos “abjetamente pobres e de todas aquelas pessoas cujas energias são inteiramente absorvidas pela luta pelo sustento diário”. As classes mais baixas eram - e isso parece uma realidade familiar na era dos Trump - tão conservadoras quanto a classe alta simplesmente porque os pobres “não podem arcar com o esforço de pensar para o dia depois de amanhã”, enquanto “os altamente prósperos são conservadores porque têm pouca oportunidade de estar descontentes com a situação atual. Era, naturalmente, uma situação da qual eles, ao contrário dos pobres, faziam um pacote em uma era (tanto a de Veblen quanto a nossa), na qual o dinheiro flui apenas para cima, para 1%.

Veblen deu mais uma volta nesse parafuso analítico. Chamado economista "selvagem", em sua prosa meticulosa e enganosamente neutra, ele descreveu na passagem que segue um processo verdadeiramente selvagem e deliberado:

“Segue-se que a instituição de uma classe de lazer age para tornar conservadoras as classes mais baixas, privando-as tanto quanto possível dos meios de subsistência e reduzindo assim seu consumo e, consequentemente, sua energia disponível, a ponto de torna-las incapazes do esforço necessário para o aprendizado e a adoção de novos hábitos de pensamento. A acumulação de riqueza na extremidade superior da escala pecuniária implica privação no extremo inferior da escala. ”

E a privação sempre se coloca como um obstáculo à inovação e à mudança. Deste modo, o progresso industrial, tecnológico e social de toda a sociedade é retardado ou talvez até mesmo invertido. Tais são os efeitos auto-perpetuantes da distribuição desigual da riqueza. E leitor tome nota: a Classe do Lazer propicia esses resultados de propósito.

A Demolição da Democracia

Mas como, na virada do século XIX, a grande experiência da democracia americana chegou a esse ponto? Em seu livro de 1904, The Theory of Business Enterprise, Veblen voltou o foco para o homem mais influente da América: "o Homem de Negócios". Para os economistas clássicos, esse sujeito empreendedor era um gerador de progresso econômico. Para Veblen, ele era "o Predador" personificado: o homem que investe na indústria, em qualquer indústria, simplesmente para extrair lucros dela. Veblen viu que tais predadores não criavam nada, não produziam nada e não faziam nada de importância econômica, mas se apropriavam dos lucros.

É claro que Veblen, que era capaz de construir uma casa com suas próprias mãos, imaginou um mundo livre desses predadores. Ele imaginou um mundo industrial inovador em que o trabalho de produção de bens seria realizado por máquinas atendidas por técnicos e engenheiros. Nas fábricas avançadas de sua mente, não havia papel nem lugar para o Homem de Negócios predatório. No entanto, Veblen também sabia que o predador nativo da  America da Era Dourada Age já estava criando uma espécie de andaime de transações financeiras acima e além do chão de fábrica - uma rede de empréstimos, créditos, capitalizações e coisas do tipo - para que ele pudesse em seguida, aproveitar as “interrupções” da produção causadas por esses ônus para obter ainda mais lucros. Em um piscar de olhos, o predador estava, como Veblen o viu, sempre pronto para ir além, para arremessar uma chave inglesa na máqina, para assumir o papel de "Sabotador".

Aqui a imagem de Veblen dos personagens predatórios que dominaram sua Era Dourada se contrasta com a imagem mais brilhante e mais dourada do executivo empreendedor, saudada pela maioria dos economistas e incentivadores de negócios de seu tempo e do nosso. No entanto, em livro após livro, ele continuou a despir as capas douradas dos magnatas americanos, deixando-os nus no chão da fábrica, com uma mão tocando a maquinaria da vida americana e a outra na caixa registradora.

Hoje, em nossa segunda Idade Dourada ainda mais cheia de purpurina, com um Momento Veblen voltando, suas conclusões parecem óbvias. Na verdade, seus predadores ficam pálidos ao lado de uma única imagem que ele próprio acharia incrível, a imagem de três multi-bilionários santos do nosso próprio Momento Veblen, que possuem mais riqueza do que os 160 milhões de americanos.

A Ascensão do Estado Predatório

Por que, então, quando Veblen viu a tendência plutocrática da América tão claramente, agora ele é negligenciado? Melhor perguntar, quem entre os líderes da América não gostaria de suprimir um gênio tão clarividente? O economista James K. Galbraith sugere que Veblen foi eclipsado pela Guerra Fria, que oferecia apenas duas alternativas, comunismo ou capitalismo - com o sistema capitalista amplamente irrestrito da América apresentando-se como uma norma “conservadora” e não o que realmente era e permanece: a antítese extrema e cruel do comunismo.

Quando a União Soviética implodiu em 1991, deixou apenas uma alternativa: a fantasia triunfal do "mercado livre". O que sobreviveu, em outras palavras, foi apenas a economia pós-Veblen da Universidade de John D. Rockefeller: as doutrinas de "livre mercado" de Milton Friedman, fundador da marca de economia popular entre conservadores e empresários e conhecida como Escola de Chicago.

Desde então, a América foi mais uma vez dominada pelas mãos pesadas dos predadores e dos legisladores que eles compram. A Classe do Lazer de Veblen é agora eclipsada por pessoas ainda mais ricas do que os 1% mais ricos entre os 1%, uma tripulação celestial ainda mais distante do trabalho produtivo de trabalhadores homens e mulheres do que aqueles barões ladrões do século XIX. Por décadas, desde a ascensão do presidente Ronald Reagan nos anos 1980 aos Novos Democratas de Bill Clinton nos anos 1990 ao mundo militarizado de George W. Bush e Dick Cheney ao autocontradado vigarista bilionário agora no Salão Oval, os plutocratas continuaram a despejar seu dinheiro sombrio no processo legislativo. Sua única frustração: que as reformas remanescentes da própria “Era Progressiva” de Veblen e as do New Deal do Presidente Franklin Delano Roosevelt ainda de alguma forma permaneçam (embora por quanto tempo ninguém saiba).

Como Galbraith apontou em seu livro The Predator State, de 2008, os frustrados predadores do século XXI mudaram as táticas de forma sorrateira: eles visaram capturar o próprio governo, para se tornar o estado. E assim eles têm feito. Na era Trump, eles criaram um governo no qual os reguladores atuais são ex-lobistas dos próprios predadores que deveriam restringir. Da mesma forma, os membros do gabinete de Trump são agora os sabotadores: encolhendo o Departamento de Estado, privando escolas públicas, alimentando grandes empresas farmacêuticas com fundos do Medicare, entregando parques nacionais e terras públicas a "desenvolvedores", e negando a ciência e a mudança climática começar uma longa lista. Enquanto isso, nosso Presidente Predador, quando não está jogando golfe, pula sobre o local da desconstrução, acenando com as mãos e lançando abusos, um barão da distração, chamando a atenção enquanto os rapazes (e moças) dos bastidores demolem as instituições da lei e da democracia.

Mais tarde na vida, Veblen, o evolucionário que acreditava que ninguém poderia prever o futuro, não obstante, tinha certeza de que o sistema capitalista americano, tal como era, não poderia durar. Ele pensou que acabaria por desmoronar. Continuou ensinando em Stanford, na Universidade de Missouri e depois na New School for Social Research, e escrevendo uma série de artigos brilhantes e mais oito livros. Entre eles, The Vested Interests and the Common Man (1920) pode ser a melhor soma de suas visões outrora surpreendentes e agora essenciais. Ele morreu aos 72 anos de idade em agosto de 1929. Dois meses depois, o andaime financeiro entrou em colapso e todo o sistema predatório desabou.

Até o fim, Veblen tinha esperança de que um dia os Predadores fossem expulsos do mercado e os trabalhadores encontrassem o caminho para o socialismo. No entanto, há um século, parecia-lhe mais provável que os predadores e sabotadores, colaborando como faziam com políticos e lacaios do governo, acumulassem cada vez mais lucros, mais poder, mais adulação dos homens da classe trabalhadora, até um dia, quando aqueles mesmos plutocratas realmente tivessem capturado o governo e tomado posse do estado, um Homem de Negócios Dourado surgiria para se tornar um tipo de primitivo Senhor da Guerra e Ditador. Ele então presidiria um regime novo e mais poderoso e o triunfo na América de um sistema que eventualmente reconheceríamos e chamaríamos por seu nome moderno: fascismo.

Ann Jones, uma regular do TomDispatch, está trabalhando em um livro sobre democracia social na Escandinávia (e sua ausência nos Estados Unidos). Ela é autora de vários livros, incluindo, mais recentemente, They Were Soldiers: Como os Feridos Retornam das Guerras da América - a História Não Contada, um original do Dispatch Books.