sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

BOAVENTURA, DIALOGANDO COM LULA

 Peguei no Counterpunch, em inglês!

2 de dezembro de 2022

10 Sugestões para Lula, novo presidente do Brasil

por Boaventura de Sousa Santos

 

Prezado Presidente Lula,

 

Quando visitei você (Luiz Inácio Lula da Silva) na prisão em 30 de agosto de 2018, no breve tempo que durou a visita, experimentei um turbilhão de ideias e emoções que permanecem tão vívidas hoje quanto eram então. Pouco tempo antes, estávamos juntos no Fórum Social Mundial, em Salvador da Bahia. Na cobertura do hotel onde você estava hospedado, trocamos ideias com o político brasileiro Jacques Wagner sobre sua prisão. Você ainda tinha alguma esperança de que o sistema judicial suspendesse a vertigem persecutória que havia descido sobre você. Eu, talvez por ser sociólogo jurídico, estava convencido de que isso não aconteceria, mas não insisti. Em um ponto, eu tive a sensação de que você e eu estávamos realmente pensando e temendo a mesma coisa. Pouco tempo depois, eles estavam prendendo você com a mesma indiferença arrogante e compulsiva com que eles estavam tratando você até aquele ponto. O juiz Sergio Moro, que tinha ligações com os EUA (é tarde demais para ser ingênuo), cumpriu a primeira parte de sua missão colocando-o atrás das grades. A segunda parte seria mantê-lo trancado e isolado até que "seu" candidato (Jair Bolsonaro) fosse eleito, aquele que daria a Moro uma plataforma para chegar à presidência da república mais tarde. Esta é a terceira fase da missão, ainda em andamento.

 

Quando entrei nas instalações da polícia federal do Brasil, senti um calafrio quando li a placa que marcava que o presidente Lula da Silva havia inaugurado essas instalações 11 anos antes como parte de seu vasto programa para atualizar a polícia federal e o sistema de investigação criminal no país. Um turbilhão de perguntas me assaltou. Teria a placa permanecido lá por esquecimento? Por crueldade? Ou para mostrar que o feitiço se virou contra o feiticeiro? Que um presidente de boa-fé entregou o ouro ao bandido?

 

Fui acompanhado por um jovem e agradável policial federal que se virou para mim e disse: "Lemos muito seus livros". Fiquei chocado. Se meus livros fossem lidos e a mensagem entendida, nem Lula nem eu estaríamos lá. Eu balbuciei algo nesse sentido, e a resposta foi instantânea: "Estamos seguindo ordens". De repente, o teórico jurídico nazista Carl Schmitt veio à minha mente. Ser soberano é ter a prerrogativa de declarar que algo é legal, mesmo que não seja, e impor burocraticamente sua vontade com a normalidade da obediência funcional e a consequente banalização do terror de Estado.

 

Foi assim que cheguei à sua cela, e certamente você nem suspeitava da tempestade que estava acontecendo dentro de mim. Ao vê-lo, me acalmei. Fui confrontado com dignidade e humanidade que me deram esperança para a humanidade. Tudo estava normal dentro da anormalidade totalitária que o cercou ali: as janelas, o aparelho de ginástica, os livros e a televisão. Nossa conversa foi tão normal quanto tudo ao nosso redor, incluindo seus advogados e Gleisi Hoffmann, que era então secretária-geral do Partido dos Trabalhadores. Conversamos sobre a situação na América Latina, a nova (velha) agressividade do império e o sistema judicial que se converteu em um golpe militar ersatz.

 

Quando a porta se fechou atrás de mim, o peso da vontade ilegal de um Estado mantido refém por criminosos armados com manipulações legais caiu de volta sobre mim mais uma vez. Eu me preparei entre a revolta e a raiva e a performance bem-comportada esperada de um intelectual público que, em sua saída, tem que fazer declarações à imprensa. Fiz de tudo, mas o que realmente senti foi que deixei para trás a liberdade e a dignidade do Brasil aprisionadas para que o império e as elites a seu serviço pudessem cumprir seus objetivos de garantir o acesso aos imensos recursos naturais do Brasil, a privatização da seguridade social e o alinhamento incondicional com a geopolítica da rivalidade com a China.

 

A serenidade e a dignidade com que enfrentastes um ano de confinamento é a prova de que os impérios, especialmente os decadentes, muitas vezes calculam mal, precisamente porque só pensam a curto prazo. A imensa e crescente solidariedade nacional e internacional, que faria de você o preso político mais famoso do mundo, mostrou que o povo brasileiro começava a acreditar que pelo menos parte do que foi destruído a curto prazo poderia ser reconstruído a médio e longo prazo. Sua prisão foi o preço da credibilidade dessa condenação; a vossa liberdade subsequente foi a prova de que a convicção se tornou realidade.

 

Escrevo-lhe hoje primeiro para o felicitar pela sua vitória nas eleições de 30 de Outubro. É uma conquista extraordinária sem precedentes na história da democracia. Costumo dizer que os sociólogos são bons em prever o passado, não o futuro, mas desta vez eu não estava errado. Isso não me faz sentir mais seguro sobre o que devo dizer-vos hoje. Tome estas considerações como uma expressão dos meus melhores votos para si pessoalmente e para o cargo que está prestes a assumir como Presidente do Brasil.

 

1) Seria um erro grave pensar que com a sua vitória na eleição presidencial do Brasil tudo volta ao normal no país. Primeiro, a situação normal antes do ex-presidente Jair Bolsonaro era muito precária para as populações mais vulneráveis, mesmo que fosse menos do que é agora. Em segundo lugar, Bolsonaro infligiu tais danos à sociedade brasileira que são difíceis de reparar. Produziu uma regressão civilizacional ao reacender as brasas da violência típicas de uma sociedade que foi submetida ao colonialismo europeu: a idolatria da propriedade individual e a consequente exclusão social, racismo e sexismo; a privatização do Estado para que o Estado de Direito coexista com o Estado de Ilegalidade; e uma exclusão da religião desta vez na forma de evangelismo neopentecostal. A divisão colonial é reativada no padrão de polarização amigo/inimigo, nós/eles, típico da extrema direita. Com isso, Bolsonaro criou uma ruptura radical que dificulta a mediação educacional e democrática. A recuperação levará anos.

 

2) Se a nota anterior aponta para o médio prazo, a verdade é que a sua presidência será dominada pelo curto prazo. Bolsonaro trouxe de volta a fome, quebrou o Estado financeiramente, desindustrializou o país, deixou centenas de milhares de vítimas da Covid morrerem desnecessariamente e prometeu acabar com a Amazônia. O campo de emergência é aquele em que você se move melhor e no qual tenho certeza de que você será mais bem-sucedido. Apenas duas ressalvas. Você, sem dúvida, retornará às políticas que liderou com sucesso, mas lembre-se, as condições agora são muito diferentes e mais adversas. Por outro lado, tudo tem que ser feito sem esperar gratidão política das classes sociais beneficiadas com as medidas emergenciais. A maneira impessoal de se beneficiar, que é própria do Estado, faz com que as pessoas vejam seu mérito ou direito pessoal nos benefícios, e não o mérito ou a benevolência daqueles que os tornam possíveis. Só há uma maneira de mostrar que tais medidas não resultam nem do mérito pessoal nem da benevolência dos doadores, mas são antes o produto de alternativas políticas: garantir a educação para a cidadania.

 

3) Um dos aspectos mais nocivos da reação trazida por Bolsonaro é a ideologia anti-direitos arraigada no tecido social, visando grupos sociais anteriormente marginalizados (pobres, negros, indígenas, ciganos e LGBTQI+). Manter com toda a firmeza uma política de direitos sociais, econômicos e culturais como garantia de ampla dignidade em uma sociedade muito desigual deve ser o princípio básico dos governos democráticos hoje.

 

4) O contexto internacional é dominado por três mega-ameaças: pandemias recorrentes, colapso ecológico e uma possível terceira guerra mundial. Cada uma dessas ameaças é de alcance global, mas as soluções políticas permanecem predominantemente limitadas à escala nacional. A diplomacia brasileira tem sido tradicionalmente exemplar na busca de acordos, sejam eles regionais (cooperação latino-americana) ou globais (BRICS). Vivemos em um tempo de interregno entre um mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos que ainda não desapareceu totalmente e um mundo multipolar que ainda não nasceu completamente. O interregno é visto, por exemplo, na desaceleração da globalização e no retorno do protecionismo, na substituição parcial do livre comércio pelo comércio por parceiros amigos. Todos os estados permanecem formalmente independentes, mas apenas alguns são soberanos. E entre estes últimos, nem sequer os países da União Europeia devem ser contados. Você deixou o governo quando a China era o grande parceiro dos Estados Unidos e retorna quando a China é o grande rival dos Estados Unidos. Você sempre foi um defensor do mundo multipolar e a China não pode deixar de ser hoje um parceiro do Brasil. Dada a crescente guerra fria entre os Estados Unidos e a China, prevejo que o período de lua de mel entre o presidente dos EUA, Joe Biden, e você mesmo não durará muito.

 

5) Você hoje tem uma credibilidade mundial que lhe permite ser um mediador eficaz em um mundo minado por conflitos cada vez mais tensos. Você pode ser um mediador no conflito Rússia/Ucrânia, dois países cujo povo precisa urgentemente de paz, em um momento em que os países da União Europeia abraçaram a versão norte-americana do conflito sem um Plano B; condenaram-se, portanto, ao mesmo destino que o mundo unipolar dominado pelos EUA. Você também será um mediador credível no caso do isolamento da Venezuela e no pôr fim ao vergonhoso embargo contra Cuba. Para realizar tudo isso, você deve ter a frente interna pacificada, e aqui reside a maior dificuldade.

 

6) Você terá que viver com a ameaça permanente de desestabilização. Essa é a marca da extrema direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade do capitalismo neoliberal de coexistir no próximo período em uma forma democrática mínima. Embora global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter a diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa. No Brasil, como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização o caráter de uma guerra religiosa, seja entre católicos e evangélicos, seja entre cristãos fundamentalistas e religiões de origem africana (Brasil), seja entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas, a conciliação é quase impossível. A extrema direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confronto com a realidade real. Com base nisso, ela pode justificar a violência mais cruel. Seu principal objetivo é impedir que você, presidente Lula, termine pacificamente o seu mandato.

 

7) Você atualmente tem o apoio dos Estados Unidos a seu favor. É bem sabido que toda a política externa dos EUA é determinada por razões políticas internas. O presidente Biden sabe que, ao defendê-lo, está se defendendo contra o ex-presidente Trump, seu possível rival em 2024. Acontece que os Estados Unidos hoje são a sociedade mais fraturada do mundo, onde o jogo democrático convive com uma extrema-direita plutocrática forte o suficiente para fazer com que cerca de 25% da população norte-americana ainda acredite que a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020 foi o resultado de uma fraude eleitoral. Essa extrema-direita está disposta a fazer qualquer coisa. Sua agressividade é demonstrada pela tentativa de um de seus seguidores de sequestrar e torturar Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara dos Deputados. Além disso, logo após o ataque, uma bateria de fake news foi colocada em circulação para justificar o ato – algo que pode muito bem acontecer no Brasil também. Assim, hoje os Estados Unidos são um país dual: o país oficial que promete defender a democracia brasileira e o país não oficial que promete subvertê-la para ensaiar o que quer alcançar nos Estados Unidos. Lembremos que a extrema-direita começou como a política oficial do país. O evangelicalismo hiperconservador começou como um projeto americano (ver o relatório Rockefeller de 1969) para combater "o potencial insurrecional" da teologia da libertação. E que se diga, para ser justo, que durante muito tempo o seu principal aliado foi o antigo Papa João Paulo II.

 

8) Desde 2014, o Brasil vive um processo de golpe contínuo, a resposta das elites ao progresso que as classes populares alcançaram com seus governos. Esse processo golpista não terminou com a sua vitória. Só mudou o ritmo e a tática. Ao longo destes anos e sobretudo no último período eleitoral assistimos a múltiplas ilegalidades e até crimes políticos cometidos com uma impunidade quase naturalizada. Além dos muitos cometidos pelo chefe do governo, vimos, por exemplo, altos membros das forças armadas e das forças de segurança pedindo um golpe de Estado e publicamente se alinhando com um candidato presidencial enquanto estava no cargo. Tal comportamento deve ser punido pelo Judiciário ou pela aposentadoria compulsória. Qualquer ideia de anistia, por mais nobres que sejam os seus motivos, será uma armadilha no caminho da sua Presidência. As consequências podem ser fatais.

 

9) É bem sabido que você não coloca uma alta prioridade em caracterizar sua política como sendo de esquerda ou direita. Curiosamente, pouco antes de ser eleito presidente da Colômbia, Gustavo Petro afirmou que a distinção importante para ele não era entre esquerda e direita, mas entre política de vida e política de morte. A política da vida hoje no Brasil é a política ecológica sincera, a continuação e o aprofundamento das políticas de justiça racial e sexual, os direitos trabalhistas, o investimento em saúde pública e educação, o respeito às terras demarcadas dos povos indígenas e a promulgação de demarcações pendentes. É necessária uma transição gradual, mas firme, da monocultura agrária e do extrativismo de recursos naturais para uma economia diversificada que permita o respeito às diferentes lógicas socioeconômicas e articulações virtuosas entre a economia capitalista e as economias camponesa, familiar, cooperativa, solidária, social-indígena, ribeirinha e quilombola que têm tanta vitalidade no Brasil.

 

10) O estado de graça é curto. Não dura nem 100 dias (ver Presidente Gabriel Boric no Chile). Você tem que fazer de tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primórdios. Uma sugestão: restabelecer imediatamente as conferências nacionais (construídas sobre a democracia participativa de baixo para cima) para dar um sinal inequívoco de que há outra maneira mais democrática e mais participativa de fazer política.

 

 

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