quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

 A volatilidade da hegemonia dos EUA na América Latina: desafios à frente para a Maré Rosa - Parte III


por Roger Harris

 

Uma maré rosa crescente tem trazido vitórias eleitorais de esquerda na América Latina e Caribe, protestando contra o modelo neoliberal imposto pelos EUA e seus colaboradores. O neoliberalismo não conseguiu atender às necessidades dos povos da região e está perdendo sua legitimidade como protótipo para o desenvolvimento.

 

No entanto, os países da região devem, necessariamente, envolver-se numa ordem financeira mundial dominada pelos EUA, o que limita as possibilidades de desenvolver as suas economias com êxito.

 

Águas turbulentas

 

Os bancos centrais dos EUA e outros países ocidentais – o que o presidente nicaraguense Daniel Ortega chama de "gangue de assassinos que controlam a economia global" – mantiveram baixas taxas de juros durante grande parte da última década, o que encorajou os países da América Latina e do Caribe a tomar grandes empréstimos.

 

A partir de 2021, as taxas de juros foram sendo lentamente elevadas. Coincidentemente, a pandemia atingiu e os países em desenvolvimento foram forçados a se endividar ainda mais para financiar medidas Covid e amortecer os efeitos do deslocamento econômico. Nestes tempos voláteis, o valor do dólar dos EUA subiu nos mercados internacionais.

 

Para as nações em desenvolvimento isso significou pagamentos de juros mais altos, juntamente com a fuga de capitais para os mercados financeiros dos EUA, em particular. A inflação, alimentada pelas sanções dos EUA e aliados contra a Rússia, interrompeu cadeias de suprimentos internacionais, tornando os bens menos disponíveis e mais caros. Além disso, as grandes corporações extraíram lucros em excesso.

 

A Maré Rosa encontra com uma contracorrente de direita

 

Paradoxalmente, esses mesmos problemas sobre os quais os governos de esquerda protestaram, agora se tornaram deles para resolver uma vez no poder e em um momento de crescente dificuldade econômica. O que a Reuters chama de "direita órfã" na América Latina e no Caribe pode estar em baixa, mas não morto.

 

México

 

No México, AMLO está convocado para a corrida presidencial de 2024. O popular presidente está atualmente defendendo reformas eleitorais contenciosas e a expansão do bem-estar. O crescimento econômico está estagnado e o país continua a ser atormentado pela horrível violência dos cartéis de drogas. Os EUA estão pressionando fortemente o México a aceitar culturas transgênicas, a privatização do setor de energia e medidas para impedir que os imigrantes atravessem a fronteira para a "terra dos livres".

 

Argentina

 

A Argentina, um dos principais fornecedores globais de grãos e soja, está no terceiro ano de seca. A economia está em frangalhos, com a inflação a rondar quase 100%, os salários estagnados e uma enorme dívida contraída pela administração de direita amterior.

 

A atual vice-presidente e ex-presidente (2003-2007) Cristina Fernández de Kirchner (CFK) é a provável candidata à esquerda na próxima corrida presidencial em outubro. Ela pode vir a enfrentar o ex-presidente de direita Mauricio Macri no que seria uma disputa polarizadora. CFK, que escapou por pouco da morte quando a arma do assassino encravou, está enfrentando grandes desafios legais de "lawfare" por corrupção. Atualmente, a direita é a favorita para vencer nas pesquisas.

 

Bolívia

 

O presidente Arce enfrentou uma tentativa de golpe de Estado de um mês no departamento de Santa Cruz, na Bolívia. As forças de direita estabeleceram bloqueios e atacaram violentamente sindicalistas e camponeses, causando danos consideráveis à economia nacional antes que um acordo fosse alcançado. O momento do próximo censo nacional foi o ponto de discórdia ostensivo, mas o propósito maior e contínuo era desestabilizar a administração esquerdista.

 

Peru

 

O sempre mercurial Peru teve cinco presidentes em três anos. Depois de vencer por uma margem muito pequena, a legislatura majoritária de direita perseguiu tanto o presidente Castillo que ele literalmente tem sido incapaz de governar. Eles até bloquearam sua capacidade de deixar o país enquanto ele está sendo investigado por várias acusações de corrupção. Castillo está pendurado lá pelas unhas, tendo sobrevivido a duas tentativas de impeachment (e outra em andamento) e a cerca de cinco reorganizações de gabinete.

 

Honduras

 

Depois de mais de 12 anos de governos alinhados aos EUA em Honduras, o presidente Castro herdou um judiciário, militar e policial de direita fortemente entrincheirados e uma economia fraca. Um estado de emergência foi imposto no final de novembro para lidar com a extorsão generalizada por gangues.

 

A nova presidente procedeu com cautela, dadas as suas opções restritas. A legislatura aprovou sua revogação das zonas de livre comércio ZEDE. Mas o embaixador dos EUA interferiu nos assuntos hondurenhos, opondo-se à revogação.

 

Chile

 

Gabriel Boric tem tentado se posicionar como a "boa" esquerda não autoritária. Na campanha e no cargo, ele criticou Cuba, Venezuela e Nicarágua, criando desunião entre os estados latino-americanos de esquerda. Maduro, da Venezuela, retribuiu o elogio rotulando-o de "esquerda covarde"; Ortega, da Nicarágua, o chamou de "cãozinho de colo" da Casa Branca.

 

Embora ele possa agradar aos EUA, os índices de popularidade do presidente Boric despencaram. Ele chegou ao cargo na onda popular por uma nova Constituição para substituir a da era Pinochet, mas que caiu em um referendo em 4 de setembro com apenas 38% de aprovação. A economia está em declínio e o povo indígena mapuche está em revolta.

 

Colômbia

 

O novo presidente progressista tem que triangular cuidadosamente com a direita entrincheirada e o colosso do norte. A Colômbia é o único "parceiro global" da OTAN na América Latina, e o presidente Petro propôs trazer a OTAN para a Amazônia. A fundação neoliberal e congenitamente anticomunista de Soros também está trabalhando em estreita colaboração com o novo governo.

 

Apesar dessas restrições, o presidente Petro reabriu as relações com a Venezuela, revertendo o papel anterior da Colômbia como substituto dos EUA para atacar seu vizinho. Petro avançou com sua iniciativa de Paz Total com o ELN e outras guerrilhas armadas, com base no Acordo de Paz de 2016. Além disso, a nova administração procura negociar acordos pacíficos com paramilitares de direita e cartéis de drogas. Enquanto isso, a produção ilícita de cocaína na Colômbia, o maior fornecedor do mundo, tem tido um aumento recorde.

 

Petro também foi bem sucedido em conseguir que sua reforma tributária fosse promulgada para financiar seus ambiciosos programas sociais. No entanto, suas políticas energéticas apresentam escolhas problemáticas entre a extração para o lucro e a redução para o meio ambiente.

 

Brasil

 

Lula venceu Bolsonaro por 1,5%. Dada a inesperada proximidade da votação e as posições de extrema direita de Bolsonaro, para não mencionar sua confusão com a crise da Covid e a má gestão geral, alguns analistas consideraram a eleição mais uma rejeição a Bolsonaro do que uma afirmação de Lula. Uma parcela significativa do eleitorado acredita, sem provas, que Lula é um criminoso corrupto que roubou a eleição.

 

Por mais de três semanas depois que Bolsonaro perdeu, caminhoneiros de direita bloquearam as rodovias do Brasil em protesto, e evangélicos atacaram do lado de fora das bases militares pedindo que o exército anulasse a votação. Bolsonaro não concedeu, nem comentou, nem sequer apareceu em público. Seu vice-presidente Hamilton Mourão ofereceu a desculpa de que seu chefe tinha uma doença de pele que o impedia de usar calças!

 

Por fim, Bolsonaro pediu a anulação de mais da metade dos votos por causa de um suposto bug no sistema eletrônico, o que lhe permitiria permanecer presidente do Brasil. A autoridade eleitoral independente reafirmou a vitória legítima de Lula.

 

O Partido dos Trabalhadores de Lula perdeu algumas das principais cidades e estados e carece de uma maioria efetiva no legislativo nacional, forçando imediatamente Lula a moderar sua agenda econômica depois que sua proposta inicial fez os mercados financeiros despencarem. O companheiro de chapa de Lula e agora vice-presidente Geraldo Alckmin é um político de centro-direita, que foi incluído na chapa para atrair esse eleitorado. Lula tomará posse em 1º de janeiro.

 

Prognóstico para a Maré Rosa

 

Os recentes sucessos de esquerda da Maré Rosa foram consideráveis, mas podem ser transitórios, sujeitos ao fluxo e refluxo da arena eleitoral. Além disso, essa Maré Rosa é limitada pela política social-democrata ideologicamente ligada à acomodação de suas próprias burguesias, o que inibe até que ponto a mudança social pode ser alcançada.

 

Significativamente, nenhuma nova revolução acompanhou essa atual onda de vitórias eleitorais de esquerda. Tampouco há novas revoluções atualmente no horizonte. Os países socialistas existentes de Cuba, Venezuela e Nicarágua têm estado envolvidos em lutas defensivas contra as campanhas para mudança de regime dos EUA. Seus futuros são mais restritos do que há uma década. E sua sobrevivência contínua não é de forma alguma garantida.

 

Abrangendo o hemisfério está a presença contínua dos EUA. Globalmente, Washington tornou-se mais agressivo na afirmação de seu domínio e mais unificado em sua missão imperialista, agora que os democratas se tornaram o principal partido da guerra.

 

Enquanto isso, nuvens recessivas estão se acumulando sobre a economia mundial, o que impedirá os programas sociais dos governos de esquerda. Ao contrário da Maré Rosa anterior de 2008, este não será impulsionado por um boom de commodities comparável.

 

No entanto, olhando para o novo ano, o presidente venezuelano Maduro observou em uma reunião do Fórum de São Palo de partidos regionais de esquerda: "Estamos diante de uma onda favorável para os povos, para o modelo antineoliberal, para o modelo pró-independência avançado".

 

Roger Harris faz parte do conselho da Força-Tarefa sobre as Américas, uma organização anti-imperialista de direitos humanos de 32 anos.

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