sábado, 14 de outubro de 2023

Chris Hedges: Por que nossos movimentos populares de massa falham

 

A onda de protestos populares globais que eclodiu em 2010 e durou uma década foi extinta. Isso significa novas táticas e novas estratégias, como explica Vincent Bevins em seu livro "If We Burn".

Cartoon de Mr. Fish.

 

Por Chris Hedges / Original para ScheerPost

Houve uma década de revoltas populares de 2010 até a pandemia global em 2020. Essas revoltas abalaram os alicerces da ordem global. Denunciaram a dominação corporativa, os cortes de austeridade e exigiram justiça econômica e direitos civis. Houve protestos em todo o país nos Estados Unidos centrados nos acampamentos de 59 dias do Occupy. Houve erupções populares na Grécia, Espanha, Tunísia, Egito, Bahrein, Iêmen, Síria, Líbia, Turquia, Brasil, Ucrânia, Hong Kong, Chile e durante a Revolução à Luz de Velas da Coreia do Sul. Políticos desacreditados foram expulsos de cargos na Grécia, Espanha, Ucrânia, Coreia do Sul, Egito, Chile e Tunísia. A reforma, ou pelo menos a promessa dela, dominou o discurso público. Parecia anunciar uma nova era.

Depois, a reação contrária. As aspirações dos movimentos populares foram esmagadas. O controle do Estado e a desigualdade social se expandiram. Não houve mudança significativa. Na maioria dos casos, as coisas pioraram. A extrema-direita saiu triunfante.

O que aconteceu? Como uma década de protestos em massa que pareciam anunciar abertura democrática, o fim da repressão estatal, um enfraquecimento do domínio das corporações e instituições financeiras globais e uma era de liberdade levaram a um fracasso ignominioso? O que deu errado? Como os odiados banqueiros e políticos mantiveram ou recuperaram o controle? Quais são as ferramentas eficazes para nos livrarmos da dominação corporativa?

Vincent Bevins em seu novo livro "If We Burn: The Mass Protest Decade and the Missing Revolution" narra como falhamos em várias frentes.

Os "tecno-otimistas" que pregavam que as novas mídias digitais eram uma força revolucionária e democratizante não previram que governos, corporações e serviços de segurança interna autoritários poderiam aproveitar essas plataformas digitais e transformá-las em motores de vigilância generalizada, censura e veículos de propaganda e desinformação. As plataformas de mídia social que possibilitaram protestos populares se voltaram contra nós.

Muitos movimentos de massa, por não conseguirem implementar estruturas organizacionais hierárquicas, disciplinadas e coerentes, não conseguiram se defender. Nos poucos casos em que os movimentos organizados alcançaram o poder, como na Grécia e em Honduras, os financistas e corporações internacionais conspiraram para retomar impiedosamente o poder. Na maioria dos casos, a classe dominante rapidamente preencheu os vácuos de poder criados por esses protestos. Eles ofereceram novas marcas para reempacotar o sistema antigo. Esta é a razão pela qual a campanha de Obama de 2008 foi nomeada o Marqueteiro do Ano pela Advertising. Ganhou o voto de centenas de profissionais de marketing, chefes de agências e fornecedores de serviços de marketing reunidos na conferência anual da Associação de Anunciantes Nacionais. Bateu as vice-campeãs Apple e Zappos.com. Os profissionais sabiam. Fabricar a marca Obama foi um sonho de marqueteiro.

Demasiadas vezes os protestos se assemelharam a flash mobs, com pessoas invadindo espaços públicos e criando um espetáculo midiático, em vez de se engajarem em um ataque sustentado, organizado e prolongado ao poder. Guy Debord capta a futilidade desses espetáculos/protestos em seu livro "Sociedade do Espetáculo", observando que a idade do espetáculo significa que aqueles encantados por suas imagens são "moldados às suas leis". Anarquistas e antifascistas, como os do black bloc, muitas vezes quebravam janelas, atiravam pedras contra a polícia e capotavam ou queimavam carros. Atos aleatórios de violência, saques e vandalismo eram justificados no jargão do movimento, como componentes de "insurreição feral" ou "espontânea". Esse "motim pornô" encantou a mídia, muitos dos que se engajaram nele e, não por acaso, a classe dominante que o usou para justificar mais repressão e demonizar os movimentos de protesto. A ausência de teoria política levou ativistas a usar a cultura popular, como o filme "V de Vingança", como referência. As ferramentas muito mais eficazes e incapacitantes das campanhas educativas nas bases, greves e boicotes foram frequentemente ignoradas ou deixadas de lado.

Como Karl Marx entendeu, "aqueles que não conseguem representar a si mesmos serão representados".

"If We Burn: The Mass Protest Decade and the Missing Revolution" é uma dissecação brilhante e magistralmente relatada sobre a ascensão dos movimentos populares globais, os erros autodestrutivos que cometeram, as estratégias que as elites corporativas e dominantes empregaram para manter o poder e esmagar as aspirações de uma população frustrada, bem como uma exploração das táticas que os movimentos populares devem empregar para revidar com sucesso.

"Na década dos protestos em massa, as explosões nas ruas criaram situações revolucionárias, muitas vezes por acidente", escreve Bevins. "Mas um protesto é muito mal equipado para tirar proveito de uma situação revolucionária, e esse tipo particular de protesto é especialmente ruim nisso."

Os ativistas experientes que Bevins entrevista ecoam esse ponto.

"Organize", diz Hossam Bahgat, ativista egípcio de direitos humanos, a Bevin no livro. "Criar um movimento organizado. E não tenha medo da representatividade. Achávamos que representação era elitismo, mas na verdade é a essência da democracia."

O esquerdista ucraniano Artem Tidva concorda.

"Eu costumava ser mais anarquista", diz Tidva no livro. "Naquela época, todo mundo queria fazer uma assembleia; sempre que havia um protesto, sempre uma assembleia. Mas acho que qualquer revolução sem partido trabalhista organizado apenas dará mais poder às elites econômicas, que já estão muito bem organizadas."

O historiador, Crane Brinton, em seu livro "A Anatomia da Revolução" escreve que as revoluções têm pré-condições discerníveis. Ele cita o descontentamento que afeta quase todas as classes sociais, sentimentos generalizados de travamento e desespero, expectativas não satisfeitas, uma solidariedade unificada em oposição a uma minúscula elite de poder, uma recusa de estudiosos e pensadores em continuar a defender as ações da classe dominante, uma incapacidade do governo de responder às necessidades básicas dos cidadãos, uma perda constante de vontade dentro da própria elite do poder e deserções do círculo interno, um isolamento incapacitante que deixa a elite do poder sem aliados ou apoio externo e, finalmente, uma crise financeira. As revoluções sempre começam, escreve, fazendo exigências impossíveis que, se o governo cumprisse, significaria o fim das velhas configurações de poder. Mas, o mais importante, os regimes despóticos primeiro sempre entram em colapso internamente. Uma vez que setores do aparato governante – polícia, serviços de segurança, judiciário, mídia, burocratas do governo – não mais ataquem, detenham, prendam ou atirem em manifestantes, uma vez que eles não mais obedeçam às ordens, o velho e desacreditado regime fica paralisado e terminal.

Mas essas formas internas de controle raramente vacilaram durante a década de protestos. Podem, como no Egito, voltar-se contra as figuras de proa do antigo regime, mas elas também trabalharam para minar movimentos populares e líderes populistas. Eles sabotaram os esforços para tirar o poder de corporações globais e oligarcas. Impediram ou afastaram populistas do cargo. A campanha feroz travada contra Jeremy Corbyn e seus apoiadores quando ele chefiou o Partido Trabalhista durante as eleições gerais de 2017 e 2019 no Reino Unido, por exemplo, foi orquestrada por membros de seu próprio partido, corporações, a , oposição conservadora, comentaristas de celebridades, uma grande imprensa que amplificou as difamações e assassinatos de caráter, membros das forças armadas britânicas e os serviços de segurança do país. Sir Richard Dearlove, ex-chefe do MI6, o serviço secreto de inteligência britânico, alertou publicamente que o líder trabalhista era um "perigo presente para nosso país".

Organizações políticas disciplinadas não são, por si só, suficientes, como provou o governo de esquerda do Syriza. Se a liderança de um partido antissistema não estiver disposta a se libertar das estruturas de poder existentes, elas serão cooptadas ou esmagadas quando suas demandas forem rejeitadas pelos centros de poder reinantes.

Em 2015, "a liderança do Syriza estava convencida de que, se rejeitasse um novo resgate, os credores europeus cederiam perante a inquietação financeira e política generalizadas", observou em 2016 Costas Lapavitsas, ex-deputado do Syriza e professor de economia na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

"Críticos bem-intencionados apontaram repetidamente que o euro tinha um conjunto rígido de instituições com sua própria lógica interna que simplesmente rejeitaria as exigências de abandonar a austeridade e amortizar a dívida", explicou Lapitistas. "Além disso, o Banco Central Europeu estava pronto para restringir a provisão de liquidez aos bancos gregos, estrangulando a economia - e o governo do Syriza com isso."

Foi precisamente o que aconteceu.

"As condições no país tornaram-se cada vez mais desesperadas à medida que o governo absorveu as reservas de liquidez, os bancos secaram e a economia mal conseguiu seguir", escreveu Lapivistas. "O Syriza é o primeiro exemplo de um governo de esquerda que não só não cumpriu as suas promessas, como também adotou o programa da oposição, no atacado."

Depois de não ter conseguido obter compromissos da troika — Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI —, o Syriza "adotou uma política dura de excedentes orçamentais, aumentou impostos e vendeu bancos gregos para fundos especulativos, privatizou aeroportos e portos e está prestes a cortar pensões. O novo resgate condenou uma Grécia atolada em recessão ao declínio de longo prazo, pois as perspectivas de crescimento são ruins, os jovens educados estão emigrando e a dívida nacional pesa muito", escreveu.

"O Syriza falhou não porque a austeridade é invencível, nem porque a mudança radical é impossível, mas porque, desastrosamente, não estava disposto nem preparado para colocar um desafio direto ao euro", observou Lapavitsas. "A mudança radical e o abandono da austeridade na Europa exigem confronto direto com a própria união monetária."

O sociólogo iraniano-americano Asef Bayat, que Bevins observa ter vivido tanto a Revolução Iraniana em 1979 em Teerã quanto a revolta de 2011 no Egito, distingue entre condições subjetivas e objetivas para os levantes da Primavera Árabe que eclodiram em 2010. Os manifestantes podem ter se oposto às políticas neoliberais, mas também foram moldados, segundo ele, pela "subjetividade" neoliberal.

"As revoluções árabes não tinham o tipo de radicalismo – em perspectiva política e econômica – que marcou a maioria das outras revoluções do século XX", escreve Bayat em seu livro "Revolução sem Revolucionários: Entendendo a Primavera Árabe". "Ao contrário das revoluções da década de 1970, que adotaram um poderoso impulso socialista, anti-imperialista, anticapitalista e de justiça social, os revolucionários árabes estavam mais preocupados com as questões amplas de direitos humanos, responsabilidade política e reforma legal. As vozes dominantes, laicas e islâmicas, davam como certo o livre mercado, as relações de propriedade e a racionalidade neoliberal – uma visão de mundo acrítica que só serviria para se mostrar solidária com as preocupações genuínas das massas por justiça social e distribuição.

Como escreve Bevins, uma "geração de indivíduos criados para ver tudo como se fosse uma empresa empresarial foi desradicalizada, passou a ver essa ordem global como 'natural' e tornou-se incapaz de imaginar o que é preciso para realizar uma verdadeira revolução".

Steve Jobs, o CEO da Apple, morreu em outubro de 2011 durante o acampamento Occupy no Zuccotti Park. Para minha consternação, vários dos que estavam no acampamento quiseram celebrar um memorial em sua memória.

As revoltas populares, escreve Bevins, "fizeram um trabalho muito bom de abrir buracos nas estruturas sociais e criar vácuos políticos". Mas os vácuos de poder foram rapidamente preenchidos no Egito pelos militares. No Bahrein, pela Arábia Saudita e pelo Conselho de Cooperação do Golfo e em Kiev, por um "conjunto diferente de oligarcas e nacionalistas militantes bem organizados". Na Turquia, acabou sendo preenchido por Recep Tayyip Erdogan. Em Hong Kong foi Pequim.

"O protesto em massa estruturado horizontalmente, coordenado digitalmente e sem líderes é fundamentalmente ilegível", escreve Bevins. "Você não pode olhar para ele ou fazer perguntas e chegar a uma interpretação coerente baseada em evidências. Você pode reunir fatos, absolutamente – milhões deles. Você simplesmente não será capaz de usá-los para construir uma leitura autoritativa. Isso implica que o significado desses eventos lhes será imposto de fora. Para entender o que pode acontecer após uma explosão de protesto, você não deve apenas prestar atenção em quem está esperando nas asas para preencher um vácuo de poder. É preciso prestar atenção em quem tem o poder de definir o levante em si."

Em suma, devemos opor o poder organizado ao poder organizado. Esta é uma verdade que estrategistas revolucionários como Vladimir Lênin, que viam a violência anarquista como contraproducente, entenderam. A falta de estruturas hierárquicas nos movimentos de massas recentes, feitas para impedir um culto à liderança e garantir que todas as vozes sejam ouvidas, embora nobres em suas aspirações, tornam os movimentos presas fáceis. Quando o Parque Zuccotti tinha centenas de pessoas participando de Assembleias Gerais, por exemplo, a difusão de vozes e opiniões significava paralisia.

"Sem uma teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário", escreve Lênin.

As revoluções exigem organizadores qualificados, autodisciplina, uma visão ideológica alternativa, arte e educação revolucionárias. Eles exigem rupturas sustentadas de poder e, mais importante, líderes que representem o movimento. Revoluções são projetos longos, difíceis, que levam anos para serem feitos, corroendo lenta e muitas vezes imperceptivelmente os alicerces do poder. As revoluções bem-sucedidasdo passado, juntamente com seus teóricos, é que devem ser nosso guia, não as imagens efêmeras que nos entram pelos meios de comunicação de massa.

 

 

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