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O conhecimento substituiu a fábrica, como motor principal da produção de riquezas, afirma o economista. Mas mudança está permitindo a uma pequena elite apropriar-se do trabalho coletivo. Que mecanismos permitem fazê-lo?

Resenha de: 
Resgatar a função social da economia, de Ladislau Dowbor 
Publicado conjuntamente pela Editora Elefante e Outras Palavras
[Leia a parte 1 e a parte 3]
II.
As novas formas de extração da riqueza social

Entre as dez empresas ocidentais de maior valor de mercado em 2022, apenas duas – Toyota e Samsung – são industriais, segundo a revista Forbes. Dos dez bilionários com maior riqueza acumulada, somente dois – Elon Musk e Bernard Arnaut – concentram parte de seus recursos na atividade produtiva, por sinal produzindo bens de luxo. E no topo da pirâmide do novo sistema estão três fundos gigantes de intermediação financeira. BlackRock, Vanguard e State Street têm, somados ativos equivalentes ao PIB dos EUA (US$ 21,5 trilhões), e quatro vezes superiores ao orçamento federal norteamericano. Sozinho, o Black Rock tem poder de investimento cinco vezes superior ao PIB do Brasil.
Os dados bastam para sugerir o quanto migraram – da indústria para as finanças – os mecanismos de captura e concentração da riqueza global. Mas em Resgatar a função social da economia, Ladislau Dowbor não se limita a enunciar fórmulas genéricas. Ele faz questão de descrever, um a um, os processos que substituíram a produção industrial e agora drenam o trabalho e os conhecimentos de toda a sociedade para uma pequena minoria. O exame atento confirmará que se trata de criações políticas. Os processos eram residuais ou subalternos ao capitalismo industrial, antes da era neoliberal. Tornaram-se dominantes num contexto em que uma pequena elite sentiu necessidade de substiuir a antiga forma de extração do mais-valor pelo apoderamento improdutivo da riqueza. Eis alguns destes mecanismos, descritos em mais detalhes em Resgatar a função social da economia.
Endividamento generalizado: 
77% das famílias brasileiras estavam endividadas em julho de 2022. No mesmo mês, a inadimplência quebrou um recorde histórico: 66,8 milhões de pessoas não foram capazes de se manter em dia com seus débitos. O número de empresas inadimplentes
 chegou a 6 milhões. “Grande parte da humanidade trabalha para alimentar
 intermediários financeiros, afirma Ladislau, citando dados do Brasil 
sobre a punção da riqueza coletiva que isso representa. Já em 2016, R$ 1
 trilhão, ou 16% do PIB brasileiro de então, foram transferidos aos 
bancos, a título de juros. Somados aos 6% do PIB pagos pelo Estado 
brasileiro aos detentores da dívida pública, perfaziam uma captura, pela
 oligarquia financeira, equivalente a mais de 1/5 das riquezas produzidas no país.
Esta apropriação foi maximizada pelas políticas neoliberais. Elas reduziram a capacidade dos Estados de emitir moeda para fazer investimentos produtivos mas ampliaram, ao mesmo tempo o poder de emissão dos bancos privados. “Os bancos hoje emitem dinheiro. O papel-moeda impresso pelos governos representa, como ordem de grandeza, 3% da liquidez. Os 97% constituem apenas anotações nos computadores, dinheiro virtual emitido pelos bancos, frisa o livro, ecoando, entre outros, um estudo do Bank of England.
Dividendos, ganhos financeiros e especulação imobiliária:
Ao
 longo de 2021, a Petrobras – uma empresa estatal que, em teoria, 
deveria agir em favor dos interesses nacionais – transferiu a seus 
acionistas R$ 101 bilhões, na forma de dividendos Hoje, 63,4% do capital está em mãos privadas e desta parte 70% pertence a estrangeiros
 (em geral megafundos como o BlackRock). Os lucros da empresa foram 
obtidos, essencialmente, extraindo do subsolo o abundante petróleo 
brasileiro e vendendo-o com margem descomunal aos consumidores. Enquanto
 premiava este tipo de acionistas, a Petrobras reduziu seus próprios 
investimentos, em 2021, a US$ 8,7 bilhões – menos de 1/5 do que haviam 
sido em 2013. As políticas neoliberais a transformaram numa “vaca 
leiteira dos mercados”.
E esta máquina de capturar a riqueza 
comum e transferi-la a uma aristocracia financeira é alimentada com 
dinheiro público, sempre que pára de girar. Tanto na crise de 2008 
quanto na de 2019, os bancos centrais emitiram, a partir do nada, cerca de 30 trilhões de dólares,
 para evitar que os cassinos globais secassem. Eram recursos negados à 
Saúde, à Educação ou à infraestrutura, sob pretexto de preservar a 
“disciplina fiscal”. E a folia não cessou, quando os riscos de colapso 
financeiro passaram. Os bancos centrais mantêm, até hoje, as políticas 
de quantitative easing, por meio das quais seguem produzindo 
montanhas de dinheiro e despejando nos mercados, supostamente para 
“estimular as economias”. Como se verá adiante, o objetivo nunca é 
alcançado – inclusive porque os muito ricos entesouram o dinheiro que 
ganham, ao invés de fazê-lo circular. Mas a minoria beneficiada agradece
 – e, entre outras “aplicações”, utiliza os recursos recebidos para 
alimentar a especulação imobiliária global, que torna o custo dos 
imóveis e aluguéis cada vez mais proibitivo…
Plataformização das economias e do trabalho: 
A 
intermediação do dinheiro, da comunicação, do conhecimento e da 
informação pessoal transformou-se numa fonte de ganhos bilionários às 
custas do conjunto das sociedades, prossegue Ladislau. Ele refere-se a 
plataformas como as que gerenciam motoristas, entregadores e um conjunto cada vez maior
 de atividades profissionais. Mas também ao oligopólio que controla os 
pagamentos com cartões de crédito e débito e drena entre 2,5% e 5% de cada operação comercial. E,
 em especial, a gigantes que passaram a controlar a internet como 
Alphabet (Google) e Meta (Facebook) — e a mercantilizar via publicidade o
 conteúdo produzido por bilhões de pessoas.
Em todos estes casos e em muitos outros, o caráter de punção social é evidente e as somas envolvidas, cada vez mais astronômicas. As corporações envolvidas nada produzem. Apenas empregam seu poder econômico gigantesco para criar serviços que se tornam obrigatórios, por constituírem o chamado “monopólio de demanda”: não é possível comunicar-se efetivamente sem recorrer a eles. E só podem fazê-lo porque a própria internet tem sido convertida em território de mercantilização intensa – o oposto exato da rede para livre circulação de conhecimento com que sonharam seus criadores.
Mercantilização da vida e das redes de infraestrutura: 
Um
 dos movimentos cruciais do neoliberalismo foi o desmonte do estado de 
bem-estar social. Ele abriu espaço, em todo o mundo, para que 
proliferassem corporações que transformam o que antes foi direito de 
todos em mercadoria. É a penúria da Educação pública que permite a 
grupos internacionais como Kroton, Laureat, Pearson, ou brasileiros como
 Eleva (de João Paulo Lehman) e Estácio obter enormes lucros com o 
ensino-mercadoria que oferecem. É o subfinancimento do SUS que leva 
dezenas de milhões de pessoas a contratarem planos de saúde de 
conglomerados como Amil (United Health), Internetica-Notre Damme (Bain 
Capital), ou Qualicorp e Prevent Senior. É é a privatização das empresas
 telefônicas, das distribuidoras de energia elétrica e Eletrobras, das 
empresas de gás canalizado; ou a venda planejada dos Correios e das 
companhias estaduais e municipais de saneamento que cria monopólios 
privados incontornáveis. Em todos os casos, serviços que deveriam ser 
oferecidos pelo Estado, sem objetivo de lucro, são convertidos em 
instrumentos de punção da riqueza social.
Patentes e “Propriedade intelectual”: 
Alguns 
milhões de pessoas morreram de covid-19 desnecessariamente, entre 2020 e
 2022, porque as vacinas demoraram a chegar aos que mais necessitavam – e
 ainda hoje faltam para 40% do população do planeta. Embora mais 
silenciosa (por se concentrar agora em países pobres), a AIDS continua 
matando 850 mil ao ano,
 quando já há medicamentos capazes de impedir os óbitos ou reduzi-los 
dramaticamente. Tais mortes não são uma fatalidade – mas um evento 
necessário para que um punhado de empresas farmacêuticas possa lucrar 
muito com a restrição artificial à circulação do conhecimento 
científico.
São também o resultado de decisões políticas. Nas décadas posteriores à II Guerra Mundial, as patentes farmacêuticas foram banidas por motivos humanitários evidentes. Sua reintrodução deu-se ao longo da década de 1990, como parte do processo de “liberalização” que culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio. Em Resgatar a função social da economia, Ladislau sustenta que as patentes e a proteção da “propriedade intelectual” tornaram-se – em todos os setores — um entrave, uma forma de geral feudos tecnológicos e multiplicar lucros para muito poucos, fabricando escassez para as multidões. Ele cita Mariana Mazzucatto, que demonstrou, em O Estado Empreendedor, o papel central que a pesquisa pública desenpenhou no desenvolvimento de invenções das quais mais tarde as empresas privadas se apropriaram. A lista vai das vacinas contra a covid aos microchips; dos HDs e memórias dos computadores às telas touch hoje presentes em cada celular.
Evasão de impostos e paraísos fiscais: 
O sistema
 tributário brasileiro é tão injusto e comporta absurdos tão flagrantes 
(como a inexistência de impostos sobre dividendos), que muitas vezes 
parece ser um “jabuticaba”, presente apenas no país. Ladislau demonstra 
que não. Uma das características das políticas fiscais adotadas em todo o
 Ocidente, nas décadas do neoliberalismo, foi a redução generalizada dos
 impostos pagos pelos mais ricos e pelas corporações, a pretexto de 
“estimular os investimentos”. Nos EUA, por exemplo, toda a valorização 
de imóveis e outros ativos é isenta, até o momento em que são vendidos. 
Esta norma permitiu ao bilionário Warren Buffett – um dos dez homens 
mais ricos do mundo – aumentar sua riqueza em US$ 24 bilhões, entre 2014
 e 2018 e pagar apenas US$ 23,7 milhões em impostos, no mesmo período. 
“Uma alíquota efetiva de 0,1%…”, destaca o livro.
A redução de impostos é, na prática, a permissão para que os mais ricos apropriem-se de uma vasta parte da riqueza coletiva. E é agravada pela proliferação dos paraísos fiscais, outra marca da globalização comandada pelo capital. Para reduzir a quase nada os tributos que paga em todo o mundo, a Microsoft “transfere” seus lucros, por meio de artifícios contábeis, para a Irlanda, onde uma de suas susidiárias permaneceu isenta em 2020, mesmo lucrando US$ 314,7 bilhões. E um estudo da revista Economist avaliou que em torno de 40% dos lucros das multinacionais são “transferidos” para países de impostos baixos.
* * *
Em lugar da mais-valia extraída nas fábricas, uma nova classe dominante – ainda mais minoritária que a velha burguesia industrial – criou mecanismos financeiros para capturar o suor de toda a sociedade. Mas este rentismo contemporâneo, tão capaz de concentrar riquezas, seria ao mesmo tempo estável? No próximo texto, veremos que não – e por quê.
[continua]
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