É preciso construir um novo horizonte político, para um mundo devastado por pandemia, desigualdade e consumismo fútil. Autora de Capitalismo de Desastres sugere: reparar as tramas sociais rompidas será a oportunidade de reinventá-las
Publicado 23/11/2020 às 21:59 - Atualizado 23/11/2020 às 22:10

Por Alcira Argumedo | Tradução de Simone Paz
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Este texto é apresentação do livro
Los Años de Reparación, de Naomi Klein
Biblioteca Massa Crítica | Clacso

Na reunião inaugural da Internacional Progressista, a jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein, anunciou que se avizinham longos e gratificantes tempos de reparação. Reparação fundamental na América Latina, diante das consequências da dominação, por décadas, das políticas neoliberais e de globalização — cujos fracassos já vinham sendo anunciados na Inglaterra, França, Itália, Espanha e Estados Unidos, e na Colômbia, Equador, Peru, Chile e Argentina. A Covid-19 não só aprofundou como foi o estopim de uma crise alimentada pelo crescimento exponencial do desemprego, pela precariedade do trabalho, pela pobreza e falta de moradia, cujo complemento tem sido o crescimento (também exponencial) da concentração e polarização da riqueza a limites insustentáveis: enquanto os 20% mais ricos da população mundial concentram 96% da riqueza, 80% — cerca de 6,5 bilhões de pessoas — detêm apenas 4% dela.
Esses tempos de reparação são uma resposta às políticas 
inspiradas por Friedrich von Hayek, Milton Friedman e a Escola de 
Chicago, que conseguiram instalar-se em nosso continente usando a 
“Doutrina do Choque”, tão lucidamente analisada por Naomi Klein em seu 
livro de 2007. Políticas que foram executadas “naqueles momentos em que 
diversos fatores negativos impediam a participação cidadã” — por 
exemplo, quando uma sociedade acaba de ser vítima de algum desastre e 
carece de defesas contra medidas econômicas socialmente agressivas. Na 
América Latina foram as ditaduras cívico-militares genocidas dos anos 
1970; que, na Argentina, plantaram o ovo da serpente de uma dívida 
externa fraudulenta e abominável, e iniciaram os processos de 
desindustrialização e desemprego; enquanto, sob a ditadura de Augusto 
Pinochet no Chile, os Chicago Boys implantaram como teste-piloto todas 
as medidas que foram posteriormente impostas por Margaret Thatcher na 
Inglaterra, e por Ronald Reagan nos Estados Unidos. Desde o início da 
década de 1980, também tiveram a seu favor a poderosa arma da Revolução 
Científico-Técnica, que encerrou o ciclo histórico da Revolução 
Industrial e estabeleceu profundas transformações tecnológicas nas 
dinâmicas econômica e militar. Um ciclo neoliberal que se fecha 
simbolicamente, também no Chile, com a derrota avassaladora que seu povo
 impôs às pretensões de continuidade da Constituição de Pinochet.
No início da década de 1990, fortalecida pela euforia do “fim da história”, e pelo “único caminho” diante da queda do Muro de Berlim, expande-se e aprofunda-se aquilo que Naomi Klein chama de “lógica implacável da privatização” e, também, a conversão de direitos em mercadorias: saúde, educação, aposentadoria e pensões, a infra-estrutura dos serviços de assistência, o desmonte dos Estados de bem-estar — que vivenciaram um verdadeiro saque dos recursos naturais, de empresas públicas lucrativas, sistemas de comunicação e informação, do setor financeiro, transporte, controle de comércio exterior, das rotas nacionais ou regioniais e outras áreas estratégicas, para favorecer grupos econômico-financeiros locais e estrangeiros. Esta enorme transferência de riqueza combinou-se com uma reconversão tecnológica em larga escala nas mais diversas áreas de atuação, alimentando o duplo processo de crescimento exponencial do desemprego e da deterioração social, feito um espelho invertido da concentração de riqueza.
É bem significativo que em 1992, vinte anos após a Conferência de 
Estocolmo — quando a preocupação sobre os problemas de crescimento 
econômico e o futuro da natureza foi trazida à tona pela primeira vez, 
internacionalmente — a Cúpula da Terra tenha sido realizada no Rio de 
Janeiro. Na declaração final desta Cúpula, é reivindicado o direito de 
todos os seres humanos a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a
 natureza. Nada poderia estar mais longe da realidade, como aponta 
Klein, num momento em que a expansão neoliberal vai transgredir 
dramaticamente ambas aspirações, promovendo um crescimento econômico 
intimamente ligado ao superconsumo supérfluo e de ostentação, 
especialmente entre os setores mais ricos da população mundial, 
principais responsáveis pela poluição e destruição do mundo natural como
 nunca antes na história. Considerando o acelerado crescimento econômico
 da Índia e da China hoje em dia, sustentado pelo uso massivo de carvão e
 outros combustíveis fósseis, essa situação é ainda mais grave.
Dinâmica essa que está nos levando à sexta grande extinção de 
espécies de plantas e vertebrados, destruindo seriamente os 
ecossistemas. É “um período de revelações implacáveis, sem trégua”. O 
que a Covid-19 descobriu e revelou é o que Naomi Klein chama de “um 
mundo rompido”. Um mundo rompido onde geleiras são fragmentadas, 
florestas queimadas, a poluição do ar com dióxido de carbono aumenta, 
eventos climáticos extremos se repetem, o nível do mar sobe e bilhões de
 seres humanos carecem das condições mínimas de sobrevivência. A 
confluência entre a crise econômico-social, a crise ambiental e a crise 
da saúde gerou as condições de uma crise civilizatória. Diante dela, se 
as estruturas de poder, os valores e as concepções dominantes 
(principais causadoras destas crises e de nosso mundo quebrado) forem 
mantidas, as perspectivas são catastróficas. Noam Chomsky e a 
Internacional Progressista já nos alertam para a possibilidade de 
extinção: especificamente, da vida no planeta. Diante dessas realidades,
 a grande tarefa, o desafio incontornável, é: encarar os anos de reparação.
Naomi Klein analisa os problemas atuais com aquele olhar integral e abrangente que caracteriza seus trabalhos — entre eles, “Tudo Pode Mudar: Capitalismo versus Clima” (2014) e “Não basta dizer não” (2017). Nessa perspectiva, ela explica o crescimento no mundo de “homens poderosos de extrema direita (que) empunham nacionalismos machistas e identidades supremacistas” e questiona duramente a ideia de progresso concebido como mero crescimento econômico. Essa perspectiva acarreta uma forte crítica à reivindicação da supremacia branca e às tradições racistas que marcam a longa história do capitalismo. Basta citar Marx quando se refere à fase de acumulação primitiva do capital e afirma que esse regime nasceu “coberto de sangue e lama” , devido ao comércio de escravos e à pilhagem do Novo Mundo. Mas não foi só nessa primeira fase: com diferenças dependendo das regiões e até das datas relativamente próximas, como os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, 80% da população mundial na Ásia, África e América Latina foi submetida à dominação colonial ou neocolonial pelas potências ocidentais. Mais tarde, o fez o mesmo Japão nas áreas asiáticas, onde “os fundamentos racistas do capitalismo moderno” foram colocados em prática.
É por essas razões que Naomi Klein nos chama a aproveitar o tempo que a Covid nos deu, para “olhar para o passado e marcar aquele encontro que foi adiado com a sua história, e com seus crimes mais brutais”. Uma revisão essencial, dada a evidência de que o neoliberalismo gerou uma imensa massa de excedente populacional descartável. Vítimas da dinâmica econômica imposta pelos grupos dominantes, agora, não conseguem nem servi-los como mão de obra barata, substituídos por tecnologias; nem como consumidores, devido aos seus níveis de pobreza e indigência. À situação soma-se o fato das guerras contra os povos do “Eixo do Mal”, lançadas pelos Estados Unidos e pela OTAN desde o início do século XXI, terem gerado milhões de mortos — e também milhões de refugiados, que fogem da fome e da devastação, desde o Oriente e do Sul, em busca de refúgio. Porém, são rejeitados como “novos bárbaros” nas fronteiras da Europa e dos Estados Unidos. Diante desse drama concebido por eles mesmos, mais uma vez, no mundo todo, “homens poderosos de extrema-direita empunham nacionalismos machistas e identidades supremacistas, como suas armas mais letais para distrair e dividir povos, e acumular somas inimagináveis de riquezas ilícitas”.
Contra as alternativas que os setores dominantes vão esboçando, a Internacional Progressista chama ao compromisso de derrubar essas fronteiras aberrantes, para “construir de baixo para cima nosso movimento dos movimentos, unidos para além das barreiras raciais, étnicas, sexuais, de identidade de gênero, religiosas, de capacidade física e das barreiras nacionais”. O compromisso é consertar um mundo devastado por fome, guerras, fascismo e extinção. Um mundo que enfrenta uma crise civilizatória sem precedentes, que põe em risco a vida da nossa espécie no planeta e suscita a urgência de enfrentar uma imensa tarefa de reparação. Porque “os humanos que, por acaso, estão vivos neste momento enfrentam uma escolha crucial: internacionalismo ou extinção — nome que será usado para essa primeira reunião de cúpula.”
Reparar requer enfrentar simultaneamente as esferas política e ecológica, sanando os danos causados ao mundo natural e, também, “as histórias equivocadas de supremacia e dominação”; as múltiplas formas extrativistas e as concepções que promovem uma obsolescência planejada cada vez mais irracional. Requer também a superação de falsas dicotomias e opções binárias, num trabalho que vise reverter o cerceamento nas relações entre o coração e a mente, entre indivíduos e comunidades, entre o homem e a natureza. A sabedoria dos povos originários de nosso continente pode nos ensinar que a solidariedade e a cooperação das comunidades são muito superiores ao individualismo egoísta e competitivo; e que a natureza não é algo externo ao humano, como se fosse preciso conhecê-la para dominá-la e explorá-la, mas que os seres humanos pertencem à natureza e deveriam manter com ela relações harmoniosas e não-predatórias.
É necessário, também, fazer uma dura crítica ao conceito de 
progresso, que se identifica com a “missão divina do Ocidente imperial 
de civilizar diferentes povos e culturas, consideradas inferiores e 
bárbaras, numa longa história de séculos encharcados em sangue”, e da 
predação dos conhecimentos e saberes, que em muitos casos eram mais 
avançados do que os da própria Europa. Nas culturas pré-colombianas, os 
maias tinham uma concepção do universo em que o centro era o Sol e a 
Terra, um planeta que gira em torno dele; eles conceberam a revolução 
copernicana 1500 anos antes dos sábios europeus. Os incas realizavam 
cirurgias de trepanação cerebral no crânio, para remover coágulos, 
usando anestesia — que só foi introduzida no Ocidente no século XIX. 
Ainda hoje, nas Ciências Naturais, a primeira língua mundial para a 
denominação e classificação das plantas é o latim; a segunda é o 
guarani: saberes ancestrais acumulados naquele imenso laboratório que é a
 Amazônia. Em contraste com a brutalidade exibida pela domesticação de 
cavalos na tradição ocidental dominante, entre os povos Mapuche eles são
 amansados por meio de conversas e carícias, desde o nascimento até o 
momento em que ficam fortes o suficiente para serem montados.
Perante esse enorme desafio, Naomi Klein nos alerta para o fato de 
que é necessário termos uma relação diferente com o tempo, já que não é 
possível construir “um mundo completamente novo, como num passe de 
mágica” e reverter “séculos de erros históricos e décadas de abusos”. 
Dívidas com descendentes de escravos; com povos indígenas; com crianças 
famintas e jovens sem futuro; com as vítimas de infinitas injustiças; 
com os Amaldiçoados da Terra — tudo isso requer um longo e intenso 
trabalho conjunto e intergeracional na construção de um mundo diferente.
 Um trabalho que deve resgatar e fortalecer os múltiplos movimentos 
sociais, indígenas, anticoloniais, feministas, de justiça racial e 
tantos mais, que “há muito tempo vêm pensando nessas outras formas, e 
descobrindo o que significa reparar, reconectar e participar da 
reconstrução social verdadeira”. Porque devemos “desenvolver e promover 
com urgência a nossa própria visão de como viver melhor”; promover uma 
“economia reparada e reinventada que proteja as pessoas e o mundo 
natural”. Em outras palavras, “que sonhe alto”.
A reunião inaugural da Internacional Progressista nos reúne em torno 
desses objetivos comuns, de participar das latitudes mais distantes, do 
Norte Global e do Sul Global, na construção de um Green New Deal [Virada Socioambiental].
 Para percorrermos o longo caminho que temos pela frente, como 
alternativa radical contra a corrida rumo à extinção promovida pela 
direita e extrema-direita atual. É bom, então, apelar para o antigo 
provérbio chinês: “A maior jornada começa com um primeiro passo.” Este 
encontro internacional é o nosso primeiro passo.
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