sexta-feira, 8 de agosto de 2014

MENTIRA, VERDADE, LIBERDADE. ALGUMAS CARAMINHOLAS

"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Esta frase de Jesus Cristo no livro de São João chamou-me a atenção em meus verdes anos de católico. Nessa época, impressionado com o poder embutido nessa afirmação, procurei verificar a validade, primeiro na prática da vida, depois na observação da história. A hipótese tinha um caráter quase mágico e continuei a tentar, mesmo depois de abandonar a religião e tornar-me agnóstico, ateu, comunista, anarquista, cético, um pouco de cada.

Ao crescer as pessoas constatam que não existe uma verdade, mas muitas. As mais afortunadas aprendem que podem ter uma verdade própria no meio de uma diversidade, em que algumas são parecidas, algumas nem tanto, outras diametralmente opostas à sua verdade. Verdade liberta, mesmo?

O conceito de verdade parece ter maior validade como negação da mentira. Uma verdade contra uma mentira. Ou A Verdade contra A Mentira. Ou algumas verdades contra mentiras arraigadas. Neste ponto, uma verdade pode libertar, já que mentira é uma negação da realidade, ou algo que impede um contato maior com a realidade. Você passa a encarar os fragmentos de informações da realidade que o cerca com filtros que talvez sejam de melhor qualidade.

Mas verdade pode ser uma construção de poder político. Assim como uma Torá, Bíblia cristã, ou Corão. Pode ser uma construção científica como o modelo de universo de Ptolomeu, com o sol e tudo mais girando em torno da Terra. Et coetera. Essas verdades libertam? Se eram mentiras, as verdades científicas que antes eram mentiras e que as sucederam, libertam?

A esta altura é bom discutir um pouco sobre o que significa essa palavra liberdade. É liberdade de agir, fazer, consigo, para si mesmo. E com outros, mas aí a ação pode atrapalhar, ferir ou matar outras pessoas e outras formas de vida, e também o ambiente físico em que um se encontra, e aí tem limites. É liberdade de ficar sossegado, e isto tem implicações básicas.

É liberdade de decidir se se aceita ou não uma verdade estabelecida. 

Mentira, por definição, não se aceita, a não ser como fantasia, que é outra coisa. Prega-se, ou tolera-se. Mas não se aceita uma mentira a não ser achando que ela é uma verdade, ou que faz parte de uma verdade maior. A mentira pode ser sentida como uma necessidade. Os deuses que enlouquecem homens e mulheres por piedade o fazem para poupá-los de suportar uma verdade trágica.

Mentira, por outro lado, pode ser um sonho estruturado. 

O debate político é povoado por diversos discursos básicos, que circulam livremente na mídia, na imprensa e nas cabeças do pessoal de direita:

Capitalismo sem controle governamental é instrumento eficiente para a alocação de recursos na sociedade. 
Os EUA são uma nação excepcional, e por isso tem direito de fazer o que julgar de seu interesse, e outros países, não, a menos que os EUA o admitam.
A indústria cultural reflete as potencialidades e anseios da sociedade.  
A liberdade nas democracias formais é suficiente. 
Consumir mais é sempre bom

Esses discursos básicos são verdades de grande alcance que são desmentidas pelos fatos.

Essas grandes verdades são produzidas e proclamadas em escala planetária por mídia, imprensa, mercenários da internet, igrejas neo-pentecostais, economistas neoliberais: grandes usinas de conformidade e de consenso.

As pessoas precisam de tempo próprio, isto é liberdade, acima da busca dos meios para prover suas necessidades básicas. Exercer seus trabalhos livres, não alienados que são reprimidos por falta de tempo, enquanto vivem verdades que podem e devem ser rebatizadas, como  mentiras

Liberdade de escolher entre alguns objetos de consumo é coisa bem limitada, se comparada com a liberdade  que vem de poder contar com condições básicas como andar na rua em segurança, ter acesso a alimentos sadios, ao silêncio, abrigo, de não ser explorado por provedores monopolistas de serviços públicos.

Verdades e mentiras são versões. A realidade existe independente, e sempre pode ser tocada sem esses filtros. Sempre há aspectos importantes que verdades não permitem ver, mentiras escondem. São sempre possíveis formas de relacionamento com o mundo que não foram contempladas pelas versões existentes.

Assim, acho que no geral verdade não é instrumento de libertação, não. Serve para reunir as pessoas em grupos mais ou menos duradouros, até que as verdades que constituem esses grupos sejam superadas. O que liberta é estar com disposição de criticar tudo, mentiras e verdades, e de enxergar, ouvir, intuir diretamente dos fatos, sempre que possível. 




.

Nenhum comentário: