Prepare-se para o ano Bernie Sanders
Candidato mais crítico ao capitalismo
sinaliza que eletrizará disputa presidencial nos EUA. Tendência terá
enorme impacto no debate político em todo o mundo, obrigará esquerda a
despertar da letargia e será especialmente saudável no Brasil
OutrasPalavras
Publicado 23/01/2020 às 21:27 - Atualizado 23/01/2020 às 21:56
SOBRE O TEMA:
Vídeo: O fenômeno Bernie Sanders
Vídeo: O fenômeno Bernie Sanders
O ascenso de Sanders, já previsto por Outras Palavras há uma semana, ampliou-se nos últimos dias. Uma série de sondagens dá ao senador a dianteira sobre os demais candidatos do Partido Democrata, nos dois primeiros estados a realizar primárias: Iowa (3/2) e New Hampshire (11/2). Hoje, pela primeira vez, uma pesquisa nacional – realizada pela CNN – deu-lhe a liderança: 27%, contra 24% de Joe Biden, o postulante mais identificado com o establishment. O avanço é estraordinário: há poucas semanas, Bernie tinha apenas 15%.
Um texto do repórter e analista Nate Cohn, no New York Times, tenta explicar os fatores demográficos de crescimento. Sanders assumiu a dianteira entre os eleitores latinos. Embora ainda esteja atrás de Biden, entre os negros (cuja tendência a seguir a liderança do Partido Democrata é histórica), a distância é muito menor que em 2016, em face de Hillary Clinton – e Sanders já está 12 pontos à frente, entre os negros jovens. Sua debilidade maior é ainda entre os brancos de origem europeia.
Mas as causas mais profundas da onda Bernie são políticas – e terão enorme repercussão internacional, ao logo do ano. Sua candidatura escancara três grandes tendências da política atual: a) a crise da representação – ou seja, a percepção generalizada de que as instituições “democráticas” submeteram-se ao grande poder econômico – abre espaço tanto para a ultradireita quanto para uma crítica radical do capitalismo; b) há um enorme desconforto diante da desigualdade; para enfrentá-la, o eleitor médio está disposto a ouvir e dialogar com propostas que sempre rejeitou; c) a esquerda tradicional, voltada ao passado e aprisionada por seus cacoetes, fracassa principalmente por não compreender estas mudanças.
Examine o programa de Sanders e compare-o, por exemplo, com as posturas que a esquerda brasileira adota ao menos desde 2015. Nos EUA, o candidato pós-capitalista conquista multidões ao dizer que tornará a Saúde pública (e gratuita para todos), controlará os aluguéis, desenvolverá um vastíssimo programa de obras públicas para construir uma economia limpa e gerar, ao mesmo tempo, 20 milhões de postos de trabalho de todos os níveis. Não se envergonha de dizer que estas ações custarão 13 trilhões de dólares. No Brasil, a maior parte dos governadores de “oposição” está empenhada em realizar, em seus Estados, “reformas” da Previdência de sentido similar à que Bolsonaro e Paulo Guedes impuseram ao país. Passados cinco anos do ruinoso “ajuste fiscal” de Dilma Rousseff, não surgiu nem um reexame desta política, nem, muito muito menos, indicação sobre o que um novo governo de esquerda faria, ao invés dela.
Se o avanço de Sanders prosseguir, como parece provável, os partidos de esquerda adormecidos terão de examinar a sério ideias que hoje veem como irrealistas ou quiméricas. Estão entre elas a garantia de ocupações formais, a todos os que as solicitem; a Teoria Monetária Moderna, que alarga a possibilidade de emissão de moeda pelo Estado e, ao fazê-lo, expande sua capacidade de distribuir riqueza e direcionar a economia; o controle rigoroso do sistema financeiro, com possível estatização; a livre circulação do conhecimento, com limites à “propriedade intelectual” e às patentes; o questionamento dos modelos hoje hegemônicos na industria (baseada no petróleo) e agricultura (apoiada na grande propriedade e nos agrotóxicos).
O senador rebelde norte-americano sustenta tudo isso e, ao contrário da esquerda “sensata” de outras partes de mundo, dialoga com setores sociais cada vez mais amplos; mobiliza-os (é, de longe, o candidato que realiza os maiores comícios e quem mais arrecada, embora a contribuição média de sua campanha seja de apenas 18 dólares); demonstra-lhes que, diante da crise da democracia, há a opção de reinventá-la em nome do futuro coletivo– não apenas a de corroê-la com a bile do ressentimento.
Nas crises civilizatórias agudas, abrem-se novos espaços para o acaso e o inusitado. Faltava um senador quase octagenário, no centro do império, para abrir certos horizontes. Que o vento renovador lançado por Sanders espalhe-se pelo mundo, arraste multidões e remova velhas certezas encarquilhadas.
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