POLÍTICOS DE DIREITA CONTRA A TERRA: O CASO DA AUSTRÁLIA
Transcrevendo do Outras Palavras.
Austrália: o outro crime ambiental da direita
Ao contrário da Amazônia, a floresta seca é
mais sujeita ao fogo. Mas catástrofe atual foi produzida também por um
governo que nega o aquecimento global, incentiva os combustíveis fósseis
e desmonta o sistema público de prevenção
Publicado 16/01/2020 às 21:47 - Atualizado 16/01/2020 às 22:10
Por Carolyn Kormann, no The New Yorker | Tradução: Antonio Martins
O atual primeiro ministro da Austrália, Scott Morrison, assumiu o
posto, em agosto de 2018. Seu antecessor, Malcolm Turnbull, igualmente
do Partido Liberal, era pressionado havia meses, quiçá anos, pela
própria coalizão de direita no poder, que reúne os partidos Liberal e
Nacional. Mas o golpe final veio quando Turnbol apoiou um plano nacional
de energia que, para controlar a emissão de gases de efeito estufa,
teria reduzido, ainda que de forma moderada, a dependência do setor de
energia em relação aos combustíveis fósseis. Numa tentativa de salvar
seu mandato, na décima primeira hora, Turnbull desistiu de tornar a
redução das emissões obrigatória por lei.
Era muito tarde. Morrison foi eleito pelos parlamentares liberais numa espécie de golpe de bastidores
e logo declarou que o plano energético de Turnbull estava morto. Seu
compromisso com os combustíveis fósseis já era conhecido. Em 2017,
quando exercia o posto equivalente ao de ministro das Finanças [threasurer]
– e a Austrália tornou-se, segundo a Agência Internacional de Energia, o
maior exportador de carvão do mundo – ele levou uma pedra de carvão ao
Parlamento e a apresentou a seus colegas, como se fossem alunos de
escola primaria. “Isto é carvão. Não tenham medo! Não se assustem! Não
vai machucar vocês”, disse. Não mencionou que a pedra havia sido laqueada, para evitar que suas mãos se sujassem… O mandato de Morrison como primeiro ministro é marcado, desde então,
pela recusa em admitir a relação, cientificamente confirmada, entre o
uso de petróleo e carvão e a mudança climática. No final de 2018, uma
seca severa e ondas de calor então inéditas fizeram dezenas de milhares
de morcegos tombarem mortos do céu. Naquele ano, o Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), descobriu, entre
outros impactos terríveis, que a Grande Barreira de Coral perecerá
inteiramente se o aquecimento superar 1,5ºC (já convivemos com vasta
morte e branqueamento de corais). A primavera de 2019 foi a mais seca de
todos os tempos na Austrália. Porém, ao invés de mudar de atitude,
Morrison liderou uma política em favor dos combustíveis fósseis. Ela
incluiu planos para uma nova nova usina termelétrica a carvão e 10
milhões de dólares para um estudo destinado a ressuscitar uma outra,
desativada, no estado de Queensland. O Partido Trabalhista voltou-se
contra ele, defendendo uma plataforma eleitoral de maior ação climática –
inclusive metas de redução de emissões efetivas. Ninguém esperava que
Morrison se reelegesse; as pesquisas sugeriam que a maioria dos
eleitores preocupava-se com a mudança climática. Mas um baixo
comparecimento ás urnas e a apatia, devida em parte à natureza em geral
instável da política australiana (nenhum primeiro ministro completa seu
mandato, há mais de uma década) contribuíram para uma vitória
surpreendente de Morrison, em maio de 2019. Na noite da eleição, ele
disse a seus apoiadores: “Sempre acreditei em milagres”.
Talvez seja este o motivo para insistir que o carvão “não vai ferir
vocês”, quando o mineral, obviamente, irá fazê-lo. O carvão é o
combustível mais sujo e o que mais produz CO². Fechar todas as
termelétricas que o utilizam o é imperativo para limitar o aumento da
temperatura global. Eliminar o carvão, especialmente em países da OCDE
como a Austrália, é o primeiro passo na transição para energias
renováveis. (Segundo um relatório, os países da OCDE deveriam eliminar
inteiramente o uso de carvão em 2030). Há consenso científico
generalizado em que o aumento das temperaturas já ocorrido – uma média
global de 1,1ºC – contribuiu para a devastadora onda de incêndios na
Austrália, ao criar condições ainda de ainda mais seca e calor. Mas,
ainda em novembro, Morrison ameaçou criminalizar o ativismo climático,
um dia depois de protestos diante de uma conferência de mineradores em
Melbourne terminar em escaramuças com a polícia. “Estamos trabalhando
para identificar mecanismos capazes de colocar fora da lei estas
práticas, egoístas e indulgentes, que ameaçam a vida dos australianos”,
disse ele…
Em dezembro, o país atingiu sua média de temperatura mais alta, com
algumas localidades registrando 46,1ºC. Estas condições logo criaram um
inferno de incêndios devastadores, os quais continuam e cujo fim não
está à vista. Milhares de casas já foram reduzidas a cinzas; muitos
vilarejos, aniquilados; 28 pessoas morreram. A fumaça cobriu cidades. Em
dezembro, a qualidade do ar em Sydney atingiu onze vezes o nível de
risco; no dia do Ano Novo, na capital, Camberra, onde Morrison tem sua
residência oficial de primeiro ministro, a qualidade do ar foi mais de
25 vezes pior que o nível de risco. Os moradores foram aconselhados a
ficar em casa. Os incêndios mataram aproximadamente 1 bilhão de
animais, varrendo um terço dos koalas em New South Wales e
possivelmente colocando algumas espécies perigosamente próximas à
extinção – entre elas a felosa do oriente (um pássaro), o sapo corroboree e
o gambá pigmeu das montanhas. Os incêndios são tão quentes, e se
espalharam tanto (megaincêndios surgem quando dois fogos se encontram),
que geraram seu próprio clima — inclusive incontroláveis tornados de
fogo, formados quando ventos em espiral criam colunas maciças de fogo,
cinzas, vapor e detritos. Área que quase nunca queimam, inclusive
florestas úmidas que abrigam espécies endêmicas e raras, estão em
chamas. Mesmo os climatologistas australianos, cientes há anos de que o
aquecimento global agravaria a severidade da estação de incêndios, estão
atônitos com a escala do fogo. Virginia Young, uma estudiosa das
florestas australianas, disse ao Washington Post acreditar que o país está à beira de uma “enorme mudança ecológica”.
O governo australiano, com Morrison no comando, não lidou bem com a
crise. O primeiro ministro ignorou pedido de um grupo de ex-bomberios
para um encontro na última primavera, em que pretendiam alertá-lo sobre a
necessidade de mais água para o combate ao fogo. Em dezembro, a
despeito do intensidade e velocidade crescentes com que muitos incêndios
se espalhavam, ele tirou férias no Havaí, decidindo voltar apenas após a
morte de dois bombeiros voluntários. Em seu primeiro dia após o
retorno, disse a uma emissora de rádio de Sydney que ainda cogitava
termelétricas a carvão. “É preciso usar todas as fontes de energia. Sou
muito agnóstico, importo-me que sejam confiáveis e baratas”.
Acrescentou: “Haverá muito barulho em toda parte, mas tendo a ouvir as
vozes quietas, caladas”. Ele foi repudiado em visitas a cidades
destruídas, com os moradores e bombeiros recusando-se a apertar sua mão.
Quando passou por Cobargo, um vilarejo chamuscado, um manifestante
disse-lhe que deveria “ter vergonha de si mesmo” por “deixar o país
arder”. Na última sexta-feira, dezenas de milhares de cidadãos
caminharam pelas ruas para protestar contra seu governo, opor-se a novas
minas de carvão – incluindo a gigante Carmichael, de propriedade do
grupo indiano Adani, que o governo aprovou em junho – e para exigir
políticas que reduzam as emissões causadas por fósseis. A multidão
cantava: “Scomo [Scott Morrison] tem de ir embora” [Scommo has to go], enquanto avançava nas redes sociais a hashtag
irônica #scottyfrommarketing, uma referência a seu passado de
empresário de marketing, que inclui uma passagem como diretor da Tourism
Australia. Morrison não se sensibilizou. No domingo, depois de outro bombeiro
voluntário morrer, ele deu entrevista de rádio em que chamou esta
estação de incêndios e a mudança climática de “o novo normal”. Não deu
indicação alguma de que mudará sua política e se engajará numa transição
que supere os combustíveis fósseis. Também enfatizou a prevenção e as
medidas adaptativas, para lidar com os impactos. “Não são só incêndios”,
disse: “tem a ver com inundações, ciclones, secas, que terão impacto
sobre muitos temas. A adaptação e a resiliência são chaves. A construção
de represas, o manejo da vegetação nativa a limpeza da terra ou onde
você constrói as casas são chaves”. Embora a adaptação seja de fato
necessária e urgente, ela não pode, de modo algum, ser tudo o que os
governos limitam-se a fazer para prevenir os piores efeitos da mudança
climática.
Por enquanto, ao que parece, a Austrália permanecerá atada ao carvão.
Na quarta-feira, Morrison disse a repórteres em Canberra: “Nosso setor
de recursos é incrivelmente importante para a Austrália”. O país é o
segundo maior exportador global de carvão termal (o tipo usado para
produzir eletricidade), perdendo apenas para a Indonésia. Em 2018, a
Austrália exportou 200 milhões de toneladas métricas, cotadas em 26
bilhões de dólares, para a China, Japão e outros países do sudeste
asiático. O volume está caindo vagarosamente, à medida em que a China
utiliza suas fontes internas e tanto a China quanto o Japão
distanciam-se do carvão. Mas a própria Austrália ainda obtém um terço de
sua eletricidade de termelétricas a carvão, o que faz dela um dos
maiores emissores de CO² per capita do planeta. O governo de Morrison, além disso, foi parcialmente responsável, nas
conversações climáticas da ONU, em dezembro, por bloquear a negociação
de políticas voltadas a combater o aquecimento global. Se países como a
Austrália continuarem a agir como peso morto na transição energética,
todas as adaptações que Morrison mencionou – a totalidade de sua
“resposta à mudança climática” – será inconsequente. O aquecimento
permanecerá e grandes extensões do continente, e do resto do planeta,
irão tornar-se inabitáveis. Tragédias como os incêndios já não podem ser
consideradas desastres naturais. Em 2 de janeiro, Morrison assistiu ao
funeral de Geoffrey Keaton, um dos bombeiros mortos em trabalho. Numa
entrevista coletiva que concedeu na sequência, ele afirmou: “Não podemos
controlar os desastres naturais; o que podemos fazer é controlar nossa
resposta.”
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