QUI, 09/06/2016 - 07:07
Primeiro, vamos tentar entender características,
particularidades, ambições e limitações dos personagens que atuam no lado
jurídico da Lava Jato, começando pelo Ministério Público Federal.
A teoria do fato
Um dos grandes feitos recentes do MPF foi a
consolidação de uma técnica de investigação chamada de "teoria do
fato" – não confundir com o “domínio do fato”.
Consiste em criar uma narrativa inicial, uma teoria
inicial que explique o todo. A sistematização da informação facilita na
organização dos fatos em torno de uma narrativa lógica.
Mas para ser eficaz - no sentido de se buscar a
verdade – a teoria não pode se sobrepor aos fatos. Na medida em que os fatos
vão aparecendo, tem que haver ajustes na teoria.
Esse modelo foi introduzido pelo procurador Douglas
Fischer, tornou-se sinônimo de sofisticação investigação e foi adotado pela
primeira vez no "mensalão".
Fischer, aliás, foi o autor da livre adaptação da
teoria do domínio do fato para condenar os réus da AP 470 – uma interpretação
que provocou a indignação do próprio autor, Claus Roxin.
Na verdade, essa teoria do fato é um método
intuitivo adotado por qualquer repórter mais experiente.
No fim dos anos 90, após a cobertura da CPI dos
Precatórios, o diretor de redação da Folha, Otávio Frias Filho, me pediu
sugestões sobre estratégias de cobertura, para serem discutidas internamente.
Para as coberturas extensivas, defendi a
necessidade de se montar uma espécie de força tarefa, em uma sala de situação,
trabalhando em cima de uma hipótese inicial, assim que os fatos permitissem
montar essa hipótese. Mas alertava: a hipótese tem que ser flexível, para
ir se alterando à luz dos fatos que forem sendo levantados; não se pode ficar
prisioneiro da primeira versão.
Aliás, a ditadura da primeira versão é a
responsável pela maioria dos grandes crimes de imprensa.
No MPF, o pensamento burocrático da corporação, que
se organiza em torno de manuais de procedimentos, inverteu: em vez de uma
teoria flexível, curvando-se aos fatos, os fatos passaram a se subordinar à
teoria. Na medida em que vão juntando depoimentos, os fatos passam a ser
encaixados à martelada na teoria, que permanece imutável. O pensamento
burocrático não imagina a incompletude da teoria, que precisa ser formada pelos
fatos. Imagina que qualquer correção de rotas significaria desqualificar os
trabalhos, pois revelando que a hipótese inicial era incompleta. Com isso,
deixa de ser teoria para se transformar em ideologia, fé cega, faça amolada.
Genoíno foi vítima dessa irracionalidade.
No mensalão, a teoria do fato defendia a tese da
formação de quadrilha. Todos sabiam que Genoíno era inocente, inclusive o PGR
Roberto Gurgel. Como presidente do PT, meramente dera um aval burocrático a
dois contratos de empréstimo porque o estatuto do partido obrigava a isso. Mas
se fosse inocentado, toda a teoria da organização criminosa cairia por terra.
Sacrificaram um inocente, como o próprio Gurgel
admitiu, pela manutenção da teoria.
E esse modelo de atuação tornou-se padrão no MPF.
A Força Tarefa e o domínio da 1a Instância
Um segundo problema é a tal Força Tarefa.
Quando cedeu às pressões da Lava Jato e criou a
Força Tarefa, Janot entregou o processo nas mãos da Lava Jato.
Seus antecessores, Gurgel e Antônio Fernando de
Souza nunca criaram Forças Tarefas por uma razão objetiva: é investimento tão
elevado que, para justificar o custo, obriga a trazer resultados de qualquer
maneira. Então acaba induzindo ao prejulgamento. O MPF não tem liberdade para
arquivar, pois o arquivamento significaria admitir que o recurso foi investido
em vão. Seria considerado dinheiro jogado fora.
Houve mais problemas.
Janot poderia ter criado a Força Tarefa e
centralizado as investigações. Se tivesse mantido a operação em sua mão, por
conta do foro privilegiado, teria o comando da operação. Na medida em que
tivesse que processar quem não tivesse foro privilegiado, mandaria para 1a
instancia.
Com Força Tarefa ocorreu a inversão total. É a Lava
Jato que decide o que vai chegar ou não no Supremo. Eles determinam o que entra
na agenda.
Embora críticos dos métodos de Sérgio Moro,
Ministros do STF nada puderam fazer na fase inicial, devido ao rigor técnico
com que Moro vem conduzindo o processo.
O enigma Rodrigo Janot
Tem-se, então, um sistema de investigação que
define, a priori, a presunção de culpa, uma Força Tarefa que precisa apresentar
resultados a qualquer preço, e uma definição de atribuições que deixou na 1a Instância
o controle da pauta podendo, a partir de Curitiba, provocar terremotos em todo
o país.
É nesse universo que se move o PGR Janot.
Na sua carreira no MPF, passou ao largo do direito
penal e dos grandes temas sociais. Seu campo de atuação era os direitos do
consumidor.
Desde cedo, acoplou-se ao grupo dos tuiuiús – os
procuradores que reagiram contra as limitações impostas pelo chamado
Engavetador Geral da República Geraldo Brindeiro -, trabalhando diretamente com
o ex-procurador geral Cláudio Fontelles e com Álvaro Augusto Ribeiro Costa,
duas figuras referenciais do MPF. Depois, venceu as eleições para presidir a ANPR
(Associação Nacional dos Procuradores da República).
Essa experiência deu-lhe um conhecimento único da
geografia da casa. Internamente é um estrategista com excelente visão da
micropolítica, que introduziu modificações relevantes na organização interna da
PGR.
Mas, no campo nacional, tem conhecimento escasso da
macropolítica, dos impactos das decisões sobre a economia, a política, o
emprego, as questões geopolíticas internacionais.
Quando foi o mais votado na lista tríplice, para o
público externo era um completo desconhecido. Recorreu ao então a procuradores
com mais inserção externa, para os contatos políticos necessários à sua
indicação.
Visitou José Dirceu no Hotel Nahoum. Por duas vezes
jantou com o então presidente do PT José Genoíno, em uma delas na companhia do
subprocurador Eugênio Aragão (último Ministro da Justiça de Dilma), de José
Eduardo Cardozo e Sigmaringa Seixas - ex-deputado e o principal consultor de
Lula para indicações no meio Jurídico.
No jantar, tornou-se emotivo. Chegou a oferecer sua
casa para Genoíno, sabedor das dificuldades por que passava e da inocência dele
no caso do "mensalão".
Indicado PGR, na primeira semana mandou prender
todos os condenados da AP 470, incluindo o próprio Genoíno. E deu uma bronca em
Aurélio Rios, Procurador dos Direitos Humanos, pelo fato de ter ido ao presídio
da Papuda conferir se estava tudo bem com os prisioneiros políticos.
Foi a primeira grande decepção dos amigos
históricos.
A segunda decepção foi no episódio envolvendo o
Ministro Marcelo Navarro. Ex-procurador, ex-desembargador pelo TRF-5. Navarro é
uma unanimidade no meio jurídico, pelo conhecimento, conduta e caráter.
Em plena campanha do impeachment, Janot anunciou
abertura de inquérito para apurar acusações de indicação política de Navarro em
troca de um suposto acordo para votar a favor da libertação de Marcelo
Odebrecht.
Navarro sempre foi um garantista. Portanto seu voto
a favor da libertação de Marcelo não fugiu à lógica. E nem foi decisivo, pois
os demais Ministros votaram a favor da manutenção da prisão. A “denúncia” do
acordo partiu de ex-senador Delcídio do Amaral no seu acordo de delação.
Dois detalhes chamaram a atenção dos amigos. O
primeiro, o fato do próprio Janot ter sido um dos cabos eleitorais de Navarro.
O segundo, suas críticas contra o antecessor Gurgel, por ter desenterrado um
inquérito contra Renan Calheiros na véspera das eleições para a presidência do
Senado. O factoide Navarro foi empinado em pleno processo do impeachment.
O terceiro, a abertura de processo contra Lula e
Dilma por obstrução da Justiça, a partir das conversas gravadas ilegalmente e
divulgadas.
Houve uma reunião pesada entre ele, Fontelles,
Álvaro e Wagner Gonçalves, ex-presidente da ANPR. Foi uma conversa entre
amigos, mas em tom duro.
Primeiro, por ter sido uma escuta ilegalmente
divulgada. O segundo pela obviedade de que uma carta de nomeação assinada
apenas por Lula, não assinada por Dilma, jamais poderia ser salvo-conduto para
quem quer que fosse. Terceira, devido ao fato da ira de Janot ter sido em
função de um desabafo de Lula, com críticas a ele em uma conversa informal
grampeada.
Na parte mais tensa da conversa, os amigos cobraram
isenção e falaram duro sobre a blindagem que mantinha até então sobre Aécio
Neves.
Coincidência ou não, foi depois desses entreveros
verbais que Janot decidiu investigar Aécio, inclusive tirando da gaveta
inquérito sobre as contas em Liechtenstein, parado desde 2010.
Na parte inicial da Lava Jato, teve alguns embates
com a Força Tarefa. Em pelo menos um episódio, recuou. Foi quando aceitou
fechar um acordo de leniência com uma das empresas. Os procuradores da Lava
Jato ameaçaram pedir demissão em bloco, contando com o respaldo das
Organizações Globo. Janot recuou.
Em outros momentos, acabou avalizando as
iniciativas mais radicais do grupo, como o vazamento ilegal dos grampos
envolvendo a presidente Dilma e Lula.
Nos últimos tempos, assumiu uma postura
persecutória em relação a Dilma e Lula. E parece ter se revestido de uma enorme
confiança em relação ao poder de manejar informações e contar com respaldo da
opinião pública – isto é, da Globo.
Na terça, fez sua grande aposta, pedindo a prisão
de Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá. Ou enterra definitivamente o
modelo político que emerge das diretas; ou compromete definitivamente a Lava
Jato.
O enfraquecimento no Supremo e o
fator Gilmar
No Supremo, há três Ministros que não se vergam:
Marco Aurélio de Mello, Teori Zavascki e Lewandowski.
A maior surpresa foi Luiz Facchin. Até hoje poucos
sabem o que ocorreu com seu voto sobre o rito do impeachment. Contra todas as
sinalizações, Facchin apresentou um voto desconjuntado, tão ostensivamente
parcial que foi destruído por Luís Roberto Barroso.
Algo aconteceu na véspera. A pelo menos um
conhecido, um Fachhin disse que iria explicar o que aconteceu. Não explicou,
deixando no ar a certeza de que foi vítima de alguma pressão indevida.
Seu relatório foi destruído pelo colega Luís
Roberto Barroso. Há indícios de que a apresentação de Barroso se baseou no
relatório original do próprio Facchin – mas são apenas boatos.
Curiosamente, esse recuo da Facchin foi mais uma
das vitórias do atrevimento de Gilmar Mendes contra a tibieza de governos
petistas.
A primeira grande vitória foi no factoide do grampo
sem áudio – a suposta gravação de uma conversa entre Gilmar e o ex-senador
Demóstenes Torres. Gilmar blefou em cima de Lula e ganhou a parada: Lula afastou
o delegado Paulo Lacerda da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) apesar
dos apelos quase desesperados do ex-Ministro da Justiça Márcio Thomas Bastos.
Márcio chegou a procurar a então Ministra-Chefe da
Casa Civil, Dilma Rousseff, pedindo que abrisse os olhos de Lula. A Polícia
Federal era constituída de vários grupos políticos, e Lacerda liderava o grupo
mais correto e isento. Caindo, seu grupo se enfraqueceria abrindo espaço para o
do delegado Luiz Fernando, figura controvertida. Seus conselhos não foram
ouvidos e Lacerda foi defenestrado em cima de denúncias falsas. Ali começou a
rebelião da PF.
O segundo blefe foi na indicação de Facchin.
Por fora, corria o subprocurador Eugênio Aragão,
colega de Gilmar nos cursos que fizeram na Alemanha – consta que foi aprovado
com nota superior ao do colega -, pessoa destemida, inclusive nos embates com
Gilmar no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Quando, no TSE, Gilmar deu início ao terceiro
turno, ameaçando embargar a chapa Dilma-Temer através do expediente da
criminalização do caixa 1, foi procurado por Aloisio Mercadante oferecendo uma
barganha: se não embargasse a candidatura de Dilma, o governo se comprometeria
a não indicar Aragão para o Supremo.
Na ação em questão, Gilmar havia pressionado tão
pesadamente os técnicos do TSE para que produzissem um laudo incriminador das
contas de campanha, que o resultado foi um laudo cheio de falhas primárias, com
dupla contagem de despesas entre outros pecados. Era um laudo tão vulnerável
que se pensou ter sido uma retaliação dos técnicos contra as pressões de
Gilmar. Quando o relatório de Gilmar foi para a votação, o laudo já tinha sido
destruído pelos demais Ministros e pelo procurador eleitoral Eugênio Aragão.
Mercadante entregou de graça uma indicação para o
Supremo que poderia ter sido o contraponto às ofensivas de Gilmar.
O embate final
Esses são os jogadores principais.
Há um embate às claras entre a Lava Jato e o STF,
com procuradores e delegados pressionando Teori Zavascki através da imprensa.
Janot entrou no jogo de pressão, através do provável vazamento dos grampos de
Sérgio Machado.
Se concede o que a Lava Jato e Janot querem, Teori
confere-lhes um poder ainda maior. Praticamente instaurará a República dos
Procuradores.
Por outro lado, não poderá ir contra as provas
apresentadas – se de fato forem consistentes, como se pensa – sob pena de
desmoralizar a Justiça e, enfraquecendo a operação dar gás para uma coalizão
política barra-pesada.
O fato do Supremo ter chegado a esse impasse é a
prova maior da vergonhosa situação das instituições brasileiras, todas elas –
Executivo, Legislativo, Judiciário, Mídia, partidos políticos – pequenas,
microscópicas para um país que se pretende moderno.
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