Podemos dizer que o golpe começou no "mensalão". Nunca parou, e atraverssou as eleições de 2014.
Inês Nassif: Nossa democracia vai levar décadas para se livrar do pesado
legado de JB
27 de março de 2015 às 19h08
O pesado legado que Joaquim Barbosa deixou para a democracia brasileira
Em vez de servir para punir exemplarmente culpados, o “mensalão”, com
seu domínio do fato, transformou a Justiça em parte do terceiro turno eleitoral
Na briga política com “P” maiúsculo, quando se traça estratégias
de disputa com grupos oponentes, define-se um limite além do qual não se deve
ultrapassar, por razões éticas ou para não abrir precedentes que, no futuro,
possam se voltar contra o próprio grupo que não observou esse limite. Em ambos
casos, a preservação dos instrumentos de luta democrática é a preocupação
central.
O Supremo Tribunal Federal (STF), a partir do caso chamado Mensalão,
arvorou-se em fazer política com “p” minúsculo, sem pensar nos
precedentes que abria nos momentos em que jogava para a plateia, escolhia
inimigos e relativizava a Constituição. Ao fazer jogo político sem que fosse
qualificado para isso, pois não é um poder que decorre da livre escolha
popular, não mediu as consequências e deixou uma lista de precedentes com
potencial de corroer a democracia brasileira.
O primeiro mal exemplo que deu foi o de que um poder não deve obedecer
limites. Ao longo do período pós-ditadura, a Corte maior do país se dedicou a
uma crescente militância. A nova composição do Supremo, pós-Mensalão, é muito mais
jurista do que política, mas é ela que vai ter que pagar pelo erro dos seus
antecessores.
No julgamento do Mensalão, em vez de manter-se acima de um clima de
comoção artificialmente criado por partidos de oposição e uma mídia
avassaladoramente monopolista, o STF fez parte da banda de música. O que se
tocava era um mantra segundo a qual qualquer que fossem as provas, quem
deveria pagar com a cadeia era a banda governista envolvida no escândalo. Se as
provas não corroborassem, que se danassem as provas. Era uma onda de pânico tão
típica de momentos aterrorizantes da história mundial – como a ascensão do
nazismo e do fascismo, com a repetição de “verdades” construídas sobre
afirmações mentirosas, mas fáceis de atrair ódio sobre grupos políticos
adversários – que a inclusão da Corte Suprema do país nesse tipo de armação foi
de tirar noites de sono de quem já viveu o pesadelo de ditaduras.
O STF abraçou entusiasticamente a tese do domínio do fato para
justificar a condenação, por exemplo, de Henrique Pizzolatto (acusado de
desviar um dinheiro da Visanet, empresa privada de cartões de débito, que
comprovadamente foi destinado para veiculação de anúncios nos próprios veículos
de comunicação que o acusavam de corrupção), ou de José Genoíno (que foi
condenado porque assinou um empréstimo bancário que comprovadamente entrou na
conta bancária do PT e foi quitado pelo partido), ou de José Dirceu (que se
supôs ser o mentor do esquema sem que nenhuma prova disso fosse apresentada à
Justiça). Com isso, a Corte deu satisfações a uma parcela da população
que advogava a prisão a qualquer custo, mas por este prazer de momento legou ao
país a dura herança da condenação sem provas e do espetáculo midiático em vez
do julgamento justo. O STF alimentou o senso comum de que lugar de adversário
político é na cadeia. A democracia brasileira vai levar anos, décadas, uma era,
para se livrar desse legado.
O juiz Sérgio Moro forçou a mão nas suas decisões de indiciamento das
pessoas mais ligadas ao PT e ao governo, no curso da Operação Lava Jato, e
provavelmente condenará a todos eles, com provas ou, se não consegui-las, por
suposição. Mas não se pode acusá-lo de ter inventado a roda. A insegurança
jurídica provocada pela teoria do domínio do fato – que aproxima a Justiça da
democracia brasileira dos famigerados Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da
ditadura, responsáveis pela “investigação” e “julgamento” de adversários
políticos por suposições de corrupção – é obra do ex-ministro Joaquim Barbosa,
corroborada pela maioria do plenário do STF, no bojo de uma histeria coletiva
artificial provocada por uma pressão direta da oposição e dos meios de
comunicação, on line, na medida em que o julgamento se desenrolava nas telas
das TVs. Barbosa continuará produzindo condenações altamente questionáveis
mesmo depois de ter ido embora para casa tuitar palpites sobre uma democracia
que ele não cuidou quando era ministro do Supremo.
Daí que o precedente Joaquim Barbosa gerou Sérgio Moro, que forçou a mão
nas peças jurídicas que levaram ao indiciamento de uns, e deixaram passar
culpas de seus oponentes.
O precedente Joaquim Barbosa condenou Pizzolatto por contratos do Banco
do Brasil com a Visanet que são anteriores à sua posse na diretoria da
Marketing da estatal. O tesoureiro do PT, João Vaccari, foi indiciado por
financiamentos legais de campanha feitos ao seu partido pelas empresas
implicadas no escândalo Petrobras desde 2008 – sem que Moro tenha se importado
com o detalhe de que Vaccari assumiu a tesouraria da legenda a partir de
fevereiro de 2010. Se a intenção fosse a de fazer justiça, o juiz teria no
mínimo feito referência ao tesoureiro anterior. Usou, todavia, o domínio do
fato, para argumentar uma responsabilidade telepática de Vaccari sobre fatos
que aconteceram mesmo antes de ele assumir o cargo.
O juiz argumenta, ao aceitar a denúncia, que João Vaccari “tinha
conhecimento do esquema criminoso [de pagamento de propinas por empresa
fornecedoras da Petrobras] e dele participava”, fiando-se em delações premiadas
de participantes do esquema que tinham interesse pessoal em responder aos
anseios das autoridades policiais e judiciárias que jogavam para uma plateia –
e que fizeram isso de forma mais intensa no período eleitoral, com fartos
vazamentos seletivos sobre um inquérito que envolveu Deus e o diabo na terra do
sol.
Moro tomou como fato inquestionável – e confundiu isso com prova – que o
esquema envolveu exclusivamente os últimos governos, e que o financiamento dado
oficialmente ao PT era, na verdade, produto de propina. E traçou uma lógica
segundo a qual a cada fechamento de contrato pelas empresas envolvidas
resultava numa doação legal para o PT, ou para uma campanha do PT.
Quando se toma a doação dessas mesmas empresas para o PSDB e para o
PMDB, todavia, fica um grande vazio. Existem duas ordens de doações privadas
para partidos e candidatos, segundo Moro: uma, recebida por determinados
partidos, que são propina; outra, captada por outros partidos, que não são
crimes.
Se tomados os dados de doação registrados junto ao Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), as 16 empresas envolvidas no Caso Lava Jato (Galvão
Engenharia, Oderbrecht, UTC, Camargo Correa, OAS, Andrade e Gutierrez, Mendes
Júnior, Iesa, Queiroz Galvão, Engevix, Setal, GDK, Techint, Promon, MPE e
Sranska) contribuíram com R$ 135,5 milhões para as eleições de 2010 e R$ 222,5
para as eleições de 2014.
Nas eleições de 2010, o PMDB, que não tinha candidato presidencial,
recebeu a maior parcela, de R$ 32,85 milhões; o PT, R$ 31,4 milhões e o PSDB,
R$ 27 milhões. Foram os três maiores agraciados, com 24%, 23% e 20% das doações
totais dessas empresas, respectivamente. Todavia, o PSB, o PP, o PRB e o PSC
conseguiram também quantias consideráveis: R$ 19,5 milhões, R$ 6,5milhões,
R$ 4,95 milhões e R$ 2 milhões, respectivamente. PDT, PC do B, DEM, PTB,
PTN, PTC, PTdoB e PMN receberam entre R$ 150 mil e R$ 1,8 milhão.
No ano passado, PT e PSDB mantiveram, de novo, arrecadação muito próxima
dessas mesmas empresas. O partido de Dilma conseguiu R$ 56,38 milhões junto a
essas fontes, mas o PSDB de Aécio não ficou muito atrás: obteve R$ 53,73
milhões. O PMDB ficou em terceiro em arrecadação, mas rivalizando com os dois
partidos que disputaram a Presidência no segundo turno: conseguiu levantar R$
46,62 milhões dessas empresas. O PSB de Marina Silva ganhou R$ 15,8 milhões; o
DEM, R$ 12 milhões; o PP, R$ 10,25 milhões; o PSD, R$ 7,13 milhões; e o PR, R$
6,85 milhões. Os demais partidos arrecadaram entre R$ 3,3 milhões e R$ 100 mil.
Esses números certamente não querem dizer que todos os partidos que
receberam dinheiro dessas empresas tenham, na verdade, recebido propina por
serviços prestados a elas. Mas indicam que a simples existência de doações
legais ao PT não comprova propina. É preciso que existam provas do ilícito, e
que elas sejam mais consistentes do que a delação de implicados que são réus
confessos e que foram premiados pela Justiça.
É esse legado que o país carrega do caso Mensalão. Em vez de servir para
punir exemplarmente culpados, o Mensalão abriu o precedente de incluir a
Justiça com parte de um terceiro turno eleitoral. A Justiça brincou de fazer
política e não olhou para os precedentes que abria. A insegurança jurídica que
isso causa pode levar no mesmo rodo, no futuro, a água dos que encenaram o
espetáculo da condenação sem provas.