terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A Lição da Síria

 Do resistir.info


– Na guerra vigora a lei do mais forte

CNC [*]

Cartoon, autor desconhecido.

As grandes tragédias que se abatem catastroficamente sobre os povos têm uma virtude dolorosa: mostram de forma crua a realidade de todos os actores.

Atualmente, o povo sírio está a viver a dura machadada perpetrada pelo imperialismo sionista com recurso a pretensos jihadistas, na realidade bandos de mercenários de diferentes matizes. Estão a agir sob as suas ordens, por procuração, na Chechénia, no Sahel, no Iraque, na Líbia, também na Ucrânia; e agora culminam na Síria o trabalho sujo iniciado em 2011.

Invasões e golpes de Estado na “guerra contra o terrorismo”

A Síria é o último episódio de uma estratégia que começou em 11 de setembro de 2001, com o espetacular auto-atentado – hoje pode ser rigorosamente descrito como tal – às Torres Gémeas de Nova Iorque e ao Pentágono, com o qual foi lançada a “guerra ao terrorismo”. Mas como o “terrorismo” estava em todo o lado e, de facto, apareceu em Paris, Bruxelas, Madrid e Barcelona, os países da NATO e os seus satélites lançaram Estratégias de Segurança Nacional que visavam sobretudo os “inimigos internos”, a par de um considerável endurecimento da legislação repressiva “antiterrorista”.

No estrangeiro, o alvo eram claramente os países árabes e muçulmanos. O inimigo declarado era a Al Qaeda, mas, surpreendentemente, organizações semelhantes com nomes diferentes reapareceram em diferentes países, atacando sempre governos ou organizações que se opunham ao imperialismo. A dissimulação dos jihadistas não escondia totalmente a sua vergonha: a sua aliança com Israel e a falta de apoio à libertação da Palestina eram incompatíveis com a ideologia mínima de qualquer organização árabe ou muçulmana.

A identificação destes jihadistas com os interesses do imperialismo não impediu que as organizações ditas de esquerda os qualificassem de “rebeldes” que “lutavam contra o governo opressor”. E isto aconteceu mesmo quando, como aconteceu na Líbia em 2011, a NATO veio em seu auxílio para aniquilar o país que era o centro das esperanças dos povos de África de se libertarem do colonialismo e do imperialismo.

Os planos do imperialismo depararam-se com obstáculos imprevistos

O general Wesley Clark explicou-o muito claramente num discurso público em 2007. Em 11 de setembro de 2001, recebeu a ordem:   Os Estados Unidos deviam invadir sete países (Iraque, Líbia, Síria, Líbano, Somália, Sudão e Irão) em cinco anos. Quando perguntou aos seus chefes por que razão deveriam começar pelo Iraque, se havia uma ligação entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda, a resposta foi negativa, tratava-se de petróleo.

Essa estratégia funcionou no Iraque (2003) e na Líbia (2011). O Iraque estava exausto após a guerra fratricida com o Irão (alimentada pelos EUA) e após 12 anos de embargo brutal. Em 2003, a Rússia e a China, embora não tenham participado na ocupação, cometeram a ignomínia de votar a favor da resolução da ONU que legalizou a ocupação do Iraque.

Em 2011, perante o ataque e a destruição da Líbia pela NATO, tanto a Rússia como a China - países com estreitas relações políticas e comerciais com o governo de Tripoli - abstiveram-se na votação da Resolução do Conselho de Segurança que apoiava o bombardeamento da Aliança Atlântica, sem usar o seu direito de veto.

Depois foi a vez da Síria e a Rússia começou a mudar a sua posição. Em 2015, vetou as resoluções que culpavam falsamente o governo sírio por diversos actos (uso de armas químicas, etc.) e que procuravam justificar uma intervenção militar aberta. Há anos que as tropas americanas, francesas e britânicas ocupavam secretamente zonas petrolíferas e actuavam em concertação com o Daesh. Israel tinha também hospitais na fronteira onde eram tratados os jihadistas feridos.

Em setembro de 2015, a Rússia, a pedido do governo sírio, interveio militarmente contra os invasores. Para se ter uma ideia da dimensão da assistência militar, segundo o governo russo, foram enviados para a Síria cerca de 63 000 militares, a Força Aérea Russa efectuou mais de 39.000 raides, nos quais abateu mais de 86 000 insurrectos e destruiu 121 466 alvos terroristas. Foi criada uma segunda base militar russa na província de Latakia; a de Tartus fora estabelecida durante a era da URSS.

Outros desenvolvimentos militares e políticos viriam a ter um impacto profundo no futuro. Com base nas vitórias militares do Hezbollah sobre Israel em 2000 e 2006, as primeiras de um grupo armado árabe sobre a entidade sionista, e na estreita colaboração entre o general iraniano Qasem Suleimani e Hasan Nasrallah, foi criado o Eixo da Resistência. Configura-se como um movimento estritamente político, anti-sionista e anti-imperialista – acima das diferenças religiosas, étnicas ou nacionais – que reconhece a sua força motriz na libertação da Palestina. Para além da sua definição política e da unidade que soube forjar sobre esta base, a componente fundamental é a fé na vitória e a consciência de que a luta armada é a única opção.

Este movimento, do qual a Síria fez parte ao lado da Resistência palestina, libanesa, iemenita, iraniana e iraquiana, tornou-se o catalisador da luta contra o sionismo-imperialismo em toda a região, especialmente depois de 7 de outubro de 2023.

Não incluímos nesta análise o outro elemento importante que surgiu nos últimos anos, a criação dos BRICS, porque o CNC não partilha as avaliações de certos analistas políticos e organizações de esquerda que parecem colocar nesta aliança, que hoje não passa de uma parceria económica, as esperanças de salvação da humanidade. O povo palestino, libanês e agora o povo sírio puderam constatar que nem o genocídio mais brutal provocou nos BRICS a decisão de romper relações com os autores; nem o Conselho de Segurança da ONU foi convocado perante a invasão da Síria pelas forças mais selvagens e retrógradas apoiadas pelos EUA, Israel e Turquia.

Contradições internas e infiltração inimiga

Desde a queda da URSS, desapareceu qualquer vestígio de respeito pelos princípios do direito internacional ou dos tratados. É evidente que o único limite à ordem internacional “baseada em regras”, as regras do imperialismo, é a força ou a ameaça de a utilizar. Mas há elementos importantes que levam forças militarmente inferiores a derrotar exércitos poderosos. A longa história das revoluções populares, das guerras de libertação ou a derrota da Alemanha nazi pela URSS e a resistência antifascista dos diferentes países europeus são prova disso. O facto é que a máquina de guerra, capaz de destruir maciçamente à distância, pode desmoronar perante a coragem e a determinação daqueles que decidiram, juntamente com a sua liderança, que a morte vale a pena quando se luta pela dignidade e pela justiça.

É a falta deste último elemento, onde se juntam a formação técnico-militar, a consciência política e a coragem, que parece ter desempenhado um papel decisivo, juntamente com a traição dos líderes militares, no colapso e na rápida retirada das forças regulares sírias. As batalhas dos anos anteriores foram travadas principalmente pelo Hezbollah – que perdeu centenas de combatentes e comandantes – e pela Rússia, sem que o exército sírio aproveitasse as inestimáveis lições práticas da própria guerra. Além disso, a proposta da Rússia de fornecer equipamento e ajudar a reformar o exército foi rejeitada e os comandantes militares sírios que lutaram ao lado do Hezbollah e da Rússia foram demitidos. Os que lhes sucederam fugiram com os seus soldados.

Há uma outra questão muito espinhosa, que tem dois aspectos decisivos em qualquer guerra e para qualquer organização revolucionária:   a capacidade de penetrar e obter informações sobre os planos do inimigo e, igualmente importante, de detetar e eliminar os traidores dentro das próprias fileiras.

Dois exemplos contrastantes ocorreram no seio do Eixo da Resistência nos últimos tempos. O primeiro foi liderado pelo líder do Hamas, Yahya Sinwar. A obtenção de informações sobre espiões infiltrados nas suas fileiras e a sua eliminação permitiram-lhe surpreender o inimigo a 7 de outubro e construir solidamente a Resistência. O próprio Sinwar foi morto em combate e não num atentado.

Pelo contrário, graves problemas de segurança parecem estar na origem dos assassinatos de dirigentes, tanto no Líbano como no Irão. A sua capacidade de enfrentar uma guerra ainda mais longa e dura depende em grande medida da sua solução.

O resultado previsível da queda da Síria para o Eixo da Resistência e para a Rússia

É melhor que aqueles que confiam na democracia burguesa e no direito internacional desçam à terra. Não há lei senão a lei da selva, e a impunidade de Israel e dos governos dos EUA e da UE que o apoiam é total. Catorze meses de massacre deliberado em massa da população civil palestina, na sua grande maioria mulheres e crianças, são disso testemunho. As decisões dos tribunais internacionais são letra morta porque os governos não as cumprem.

As unidades do exército americano que, violando o direito internacional, ocupam as instalações petrolíferas sírias e roubam o petróleo sírio há mais de uma década, apoiaram agora os jihadistas – que cinicamente consideram terroristas – com a sua força aérea e bombardearam o exército sírio.

Por seu lado, Israel, três horas depois da entrada dos jihadistas em Damasco, começou a bombardear instalações científicas na Síria – impedir o desenvolvimento científico dos árabes é uma obsessão do sionismo – bases aéreas, edifícios dos serviços secretos e alfândegas. Os tanques israelenses ocuparam também a zona desmilitarizada dos montes Golã.

Enquanto se aguarda que o Eixo da Resistência analise a nova situação e se reorganize, o que é evidente é que o sio-imperialismo provou que pode agir impunemente e que o seu cerco ao Irão é apenas uma questão de tempo.

A Rússia, por seu lado, sofreu um duro golpe na Síria e até as suas bases no Mediterrâneo estão em perigo. Mais uma vez, depois das promessas da NATO de que não se expandiria para leste, depois do fiasco deliberado dos Acordos de Minsk de 2014 sobre a Ucrânia e depois do enorme embuste da reunião de há menos de um mês em Astana, em que, juntamente com o Irão e a Turquia, se apresentava como garante da estabilidade da Síria, a Rússia viu que os acordos internacionais só servem para ganhar tempo até à próxima facada.

O maior risco da Rússia é que, na Ucrânia, tal como na Síria, deixe o inimigo com a capacidade de recuperar e atacar novamente com mais força. O perigo para o Governo russo é que prevaleçam os interesses oligárquicos daqueles que querem um acordo de paz a qualquer preço, para voltarem a negociar com o Ocidente o mais rapidamente possível. E não há volta a dar ao passado, porque o objetivo do imperialismo ocidental é destruir a Rússia como potência e como país, custe o que custar; mesmo à custa da destruição de todos os vestígios de credibilidade democrática, como o demonstra a desestabilização da Geórgia, da Moldávia, da Abcásia e da Roménia.

Mais um passo em direção a uma guerra em grande escala

A queda da Síria representa hoje um passo importante para o controlo do Médio Oriente pelo sio-imperialismo e um enfraquecimento do Eixo da Resistência e da Rússia. Ambos ao mesmo tempo – e é bom que a Rússia compreenda o mais rapidamente possível que os seus destinos estão ligados. Tal como nós devemos compreendê-lo, fazendo da solidariedade com o Eixo da Resistência um baluarte concreto do internacionalismo.

Significa também que o imperialismo anglo-saxónico se sente mais forte e mais inclinado a levar a cabo os seus planos de guerra em grande escala contra a Rússia e a China em solo europeu e, como temos alertado, com a juventude da classe trabalhadora como carne para canhão.

A ameaça não é iminente, mas os preparativos estão, para já, a avançar inexoravelmente. A destruição económica da Europa, a militarização social e a economia de guerra caminham na mesma direção.

Os seus planos são muito claros e, face a eles, não há lugar para lamentações sobre a guerra que se aproxima ou para propostas pacifistas que se chocam com a dura realidade. A única atitude coerente é denunciar todas estas políticas como um agravamento da luta de classes na crise do capitalismo, cuja expressão máxima é a guerra, e preparar a classe trabalhadora para a enfrentar.

09/Dezembro/2024

Ver também:
  • El gobierno de Siria resistió 13 años y cayó en 13 días
  • [*] Coordinación Núcleos Comunistas, Espanha

    O original encontra-se em cncomunistas.org/?p=1883

    Este comunicado encontra-se em resistir.info

     

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