Da Intercept Brasil. O Leandro Demori levanta vários pontos muito importantes para entender melhor o processo que culminou na eleição do coiso.
28 de Outubro de 2018, 21h38
O BRASILEIRO VOTOU em Jânio Quadros porque
estava cansado da corrupção, votou em Fernando Collor porque estava cansado da
corrupção, votou em Jair Bolsonaro porque estava cansado da corrupção. A
corrupção que nos acompanha desde sempre é o maior cabo eleitoral de candidatos
que se apresentam como antissistema e antipolítica, mesmo que sejam, eles
mesmos, parte da mesma geléia moral que dizem combater. Jair Bolsonaro, apoiado
por grandes meios de comunicação, por empresários milionários e por pastores poderosos é um candidato do
sistema. Uma ponta diferente do sistema que costuma eleger políticos no Brasil.
Mas, ainda assim, do sistema.
A campanha de Jânio, em 1960,
talvez tenha sido a mais parecida com a de Bolsonaro: Jânio cobrava a moralização
da administração pública e queria varrer os corruptos – sua música de campanha
falava em uma “vassourinha” que faria o serviço. O “Brasil moralizado” que
Jânio tentou implantar regulou o tamanho do maiô das candidatas à miss, a
exibição em anúncios na TV de maiôs e peças íntimas de uso feminino e até o uso
dos biquínis nas praias. Moralismo sobre a sexualidade. Alguma semelhança com
Bolsonaro? Jânio admitia que o Brasil tinha crescido nos anos anteriores, mas
falava – enfatizava – que a crise e a corrupção estavam destruindo a nação.
Sim, muitas semelhanças com a campanha de Bolsonaro.
Bolsonaro passou anos viajando
o país e ouvindo seus lamentos em meio à crise. Como nunca teve problemas
em dizer barbaridades, foi inteligente em colher
as barbaridades alheias e se tornar um megafone estridente de impropérios. Sim,
há gente no Brasil que prefere um filho morto do que gay – e, para cada uma das
frases que saem de sua boca, estejamos certos, há gente para aplaudir ou, no
mínimo, relevar – entre os exatos 55% do eleitorado que o elegeu no dia de
hoje. Bolsonaro é um de nós sem os freios do superego.
Mas a onda anticorrupção
surfada pelo candidato não seria tão alta sem alguns fatores. O primeiro deles
é óbvio: a corrupção existiu nos governos petistas e segue existindo no governo
Temer. Desde 17 de março de 2014, primeira fase da operação Lava Jato, o país
acompanha o desenrolar dos casos como uma novela com horário para começar,
todas as noites, nos telejornais. E aqui não importa a avaliação interna que o
Partido dos Trabalhadores tem sobre si – “são casos isolados, não somos o único
partido corrupto” etc. O que importa é a percepção das pessoas sobre o PT. E a
maioria delas queria Lula preso em janeiro e
quer que ele siga preso hoje. As
pessoas associam o PT à corrupção. O PT ignorou a voz do povo e imaginou que
uma população amedrontada pela insegurança e que deseja redução da maioria
penal, aumento de penas, endurecimento das condições do cárcere e fim de
“privilégios”, como a progressão de pena, fosse votar em um… preso.
Gleisi Hoffman, atuou mais como advogada
de Lula do que como cabo eleitoral de Haddad.
Fernando Haddad, em campanha,
falou sobre os erros do PT, mas já era tarde. A pauta anticorrupção caiu no
colo da direita enquanto o PT insistia em não sentar frente a frente com seus
antigos eleitores, gente que confiou no partido e que queria apenas um sinal de
que aquilo tudo não se repetiria. A maioria das pessoas que elegeu Bolsonaro
não é fascista, e são as mesmas que votaram no PT nas últimas quatro eleições.
Ninguém ganha nas urnas sem a classe média.
Mas o partido preferiu gastar
mais energia na defesa de Lula do que na reconciliação possível com a
população. A defesa judicial do ex-presidente – que é legítima e deve ser
levada às últimas instâncias, como faria qualquer condenado que se julga inocente
– foi misturada com a campanha de modo catastrófico. A presidente do partido,
Gleisi Hoffman, atuou mais como advogada de Lula do que como cabo eleitoral de
Haddad, muitas vezes atravessando o samba de quem pensava em votar no PT, mas
não achava certo usar o mandato para dar um indulto ao ex-presidente. Em
determinado momento, o partido pediu nas redes sociais que as pessoas votassem
por Lula (#VotePorLulaVote13).
Alguém sem emprego, alguém com subemprego, alguém que teve que deixar os
estudos por falta de dinheiro… você consegue imaginar que essas pessoas
votariam “por Lula”?
No meio do caminho, o PT queimou aliados porque não aceitava
deixar o protagonismo. Zé Dirceu falou em “tomar o poder”. Lula soltou carta na
última semana de campanha detonando a imprensa. Todas pareceram apenas
energia desperdiçada que poderia ser usada na desconstrução de Bolsonaro e no
fortalecimento de Fernando Haddad, um bom nome que pode apontar para o futuro
do partido, mas que foi jogado na cova dos leões.
O fim da
internet
A mudança que sentimos na
internet brasileira durante essa eleição pode ser comparada àquela vivida pelo
blogueiro iraniano Hossein Derakhshan. Em 2015, depois de seis anos na prisão,
ele tentou reativar seu blog de sucesso e notou que as redes sociais haviam destruído
tudo. Escreveu ele:
“As pessoas costumavam ler meus
posts cuidadosamente e deixar vários comentários relevantes, e até mesmo
aqueles que discordavam de mim voltavam sempre para me ler. Não tinha
Instagram, Snapchat, Viber ou WhatsApp. Em vez disso, existia só a web e, na web,
havia blogs: o melhor lugar pra encontrar pensamentos alternativos, notícias e
análises.”
Bolsonaro vai criar sua própria
imprensa.
A destruição da internet foi
terminada este ano durante o período eleitoral. Candidatos usaram uma máquina
organizada de distribuição de “notícias” em massa, a maior parte delas,
enlatados com histórias pela metade, ou apenas mentiras em estado bruto. As fake
news, que vinham mostrando força na web desde o impeachment,
completaram o serviço em 2018. Pode-se dizer que ajudaram a eleger Jair Bolsonaro
em alguma medida, mesmo que isso não explique a derrota do PT.
Estamos perdidos em bolhas de
algoritmos cada vez mais decisivos. Ficamos dez horas por dia plugados na rede.
A vida digital de muitos de nós já é maior do que a que vivemos lá fora, e
nossos afetos estão quase todos no zap. Planos limitados de dados fazem com que a gente se informe
sem clicar em links, sem ler nada além das manchetes. Viramos um
arquipélago de ilhas surdas.
Em 2006, quando vivíamos o auge
dos blogs e da utopia de que a internet seria o celeiro do jornalismo
independente, eu não acreditaria que em 2018 a estética e o lema seriam usados
por um dos maiores espalhadores de lixo digital do país, como o site Folha
Política, que foi banido do Facebook. Hoje, esse e outros sites não são
apenas uma realidade: eles influenciam milhões de pessoas e deverão ser
premiados pelo presidente eleito com verbas estatais. Descontente com a
imprensa que o investiga justamente, Bolsonaro vai criar sua própria imprensa.
Todo o caos fértil que a rede nos
pareceu em meados dos anos 90 e depois, toda aquela libertação dos meios
tradicionais nos anos 2000, se transformou em um engenho de algoritmos no qual
nós somos os animais a empurrar a roda. Animais que votam com a cabeça entupida
de desinformação.
A direita
venceu a guerra cultural
Você provavelmente desdenha do
filósofo Olavo de Carvalho, mas ele venceu. A ideologia olavista de que a
esquerda brasileira dominava a narrativa cultural para se impor politicamente
encontrou eco em uma nova geração de jovens votantes que, por natureza, são
antiestablishment. E quem foi o establishment brasileiro na última década e
meia? O PT. Some isso à corrupção e à crise e temos uma geração de alunos dos
cursos de Olavo de Carvalho que passam o dia repetindo suas platitudes pela
internet, muitas delas em consonância total com as ideias de Bolsonaro.
A estratégia da direita para
vencer a guerra cultural passou por algumas etapas. A principal delas foi
forjar ou importar escândalos pré-fabricados e falsas polêmicas. Uma delas: “A
esquerda defende a pedofilia”. Militantes de direita fizeram a mesma “acusação”
absurda contra progressistas nos Estados Unidos. No Brasil, até mesmo a
nadadora Joanna Maranhão, uma vítima de pedofilia, foi acusada de defender pedófilos.
A exclusão das pessoas “menos
letradas” do debate público por parte da esquerda ilustrada afastou o
eleitorado.
Outra polêmica fabricada que
conquistou parte do eleitorado é a crítica à lei Rouanet. Eu fiz um cálculo pra
mostrar o quão pequena é essa pauta em termos de orçamento público: o custo
anual da Rouanet equivale a uns 5 anos de cafezinho nos órgãos federais.
Bolsonaro conseguiu usar um espantalho como cavalo de batalha, e todo mundo
caiu.
Há uma coisa que deve ser
aprendida com o olavismo: a exclusão das pessoas “menos letradas” do debate
público por parte da esquerda ilustrada afastou o eleitorado. A marcha
bolsonarista que venceu as eleições começou no oeste do Brasil, nos rincões
povoados de gente que não tinha “nível” para saber o que era uma pessoa
transgênero ou que não entendia por que ciclovias deveriam ser priorizadas em
vez de políticas de emprego. Elas encontraram abrigo no YouTube da direita.
A imprensa perdeu
É preciso também falar sobre a
insistência da imprensa em conversar só com a elite intelectual. Sobre o
linguajar complicado, a profusão de jargões, as matérias escritas para serem
elogiadas pelos colegas jornalistas, para terem lugar cativo nas newsletter de
iniciados, e para serem ignoradas pela população em geral. Esse sistema perdeu,
foi humilhado por memes e notícias falsas. A separação antiga entre “jornalismo
e opinião” – como se não pudesse haver “jornalismo” mentiroso e “opinião”
informativa e embasada – perdeu o sentido. Porque não importa o que nós,
jornalistas, achamos sobre esses velhos cânones, o que importa é a percepção
das pessoas.
Estabelecer uma ligação com
elas, daqui para frente, requer outro tipo de abordagem. De que adianta tentar
se mostrar isento praticando jornalismo declaratório que, no fim, é totalmente
parcial? O jornalismo que só faz repetir o que alguém disse será ainda mais
usado como instrumento de propaganda daqui para frente. Não é mais possível
construir uma manchete em que Bolsonaro acusa o PT de fraude nas urnas sem
dizer que ele não tem provas.
Só 10% dos jovens confiam na
imprensa. As pessoas não diferenciam artigo de reportagem e isso
passou a ser irrelevante em um mundo de guerra cultural onde a regra é a
mentira. Isenção e honestidade não são sinônimos, é perfeitamente possível se
mostrar isento sendo desonesto, assim como é possível assumir a defesa de
um princípio com a espinha ereta. O que o jornalismo precisa é de
posicionamento claro, de transparência com o público e de um discurso honesto
capaz de ser simples e convincente. O jornalismo precisa parar de fingir que
não é parte do jogo e que existe só para “reportar os fatos”. Isso pode até
parecer isento, mas é desonesto. A julgar pelas declarações de Bolsonaro – se
ele não mentiu para seus eleitores – teremos anos pesados pela frente. É
preciso tomar pé disso.
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