Quem visitou algumas cidades da Europa pode ver algumas placas comemorativas dos heróis da Resistência aos nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra. Em Paris, por exemplo. Em uma cidadezinha nos Apeninos da da Itália Central, alguns anos atrás, vi uma dessas placas, citando nomes e acontecimentos, e o que senti na ocasião foi semelhante ao que é evocado no poema que fecha esta matéria.
A tradução foi publicada pela Opera Mundi em 2016, que fez nova chamada por esses dias. Para enfrentar a nova fase do golpe, é necessário distanciar, usar a referência da história.
Umberto Eco: 14 lições para identificar o
neofascismo e o fascismo eterno
Intelectual
italiano, romancista e filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e
"O Nome da Rosa", morreu em 19 de fevereiro, aos 84 anos; "O
fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis", diz
Eco
UMBERTO ECO
21 de fev de 2016 às 16:21
A Revista Samuel reproduz o texto de Umberto Eco
"Ur-Fascismo", produzido originalmente para uma conferência proferida
na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da liberação da
Europa:
"O Fascismo Eterno"
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi
Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens
fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela
glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta
foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei
esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não
significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes,
que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal
exercício.
Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes
chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça
principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas,
invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo,
ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal
Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos.
Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou
acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que
toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de
Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola.
Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos,
amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que
caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão
gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de
palavra significa também liberdade da retórica.
Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram
afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me
apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram
coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família
de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em
que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês
aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um
pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos,
depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em
uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime
le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do
capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De
noite colocava o chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia
seguinte.
Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma
sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal
de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era
apenas um fenômeno local, mas Europeu.
Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”,
“armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras
fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de
conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.
Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência
teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a
questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e
psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não
tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens
norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era
irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando
seu débito.
Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É
verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade
pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me
dos resistentes com bandeiras de diversas cores.
Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão
geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso —
escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram,
ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de
florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu
ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da
Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói.
Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão
anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e
foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que
importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um
empreendimento comum de gente das mais diversas cores.
Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico
período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A
recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão
provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos
aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso
até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso
dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar
o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que
fizeram.
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes
da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito
difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas
diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder
carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma
vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado,
no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da
democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para
admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é
certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho
fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos
neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o
nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de
mobilizar uma nação inteira.
Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as
ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime
e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de
hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis.
Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras
partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto
é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes
de sentimentos não expressos.
Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas
toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta
contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram",
de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os
fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A
vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo
e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado
da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo
com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom
norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito.
Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos
radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que
fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”,
“Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é
o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do
racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a
“arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch.
O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que
o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era
claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que
subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e
estalinismo eram regimes totalitários.
O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente
totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de
sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não
tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini
para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em
Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético
absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha
qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja
e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus
primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a
Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava,
evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini
citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da
Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de
direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos
análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de
Mussolini.
O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um
folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no
exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que
surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia,
Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha,
Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o
fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo
regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer
uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista.
Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente
para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma
denominação pars pro toto para movimentos totalitários
diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos
dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao
contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só
essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1]. O fascismo não era uma ideologia
monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas,
uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que
consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de
Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que
exaltava a violência e o livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas
era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam
uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante
vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse
as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas
quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses
depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”,
reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase
jacobinas.
Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o
arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da
mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin.
Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus
pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno
racionalismo de Gropius.
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios
artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático
como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros
intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati
dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e
razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas
experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como
corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único
aceito.
O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia
teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria
de vate do regime por seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o
acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete
Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros
futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a
participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a
violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao
culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império
romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um
automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o
luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande
respeito.
Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do
futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos
estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista.
Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam
novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de
partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os
instrumentos intelectuais para controlá-los.
No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma
reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus
protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era
exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime
tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não
prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.
O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi
mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram
assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os
dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo
tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a
mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio
formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um
exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento
ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas,
mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns
arquétipos.
Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo,
e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o
nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo.
Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo
não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein,
acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode
envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou
nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades
diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é
caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por
diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é
semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c).
O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas
sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta
série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de
transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um
regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido
como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar;
tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo
italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos
Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal
(completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados
gurus fascistas, Julios Evola.
A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de
características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou
“fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema;
muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou
fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se
forme uma nebulosa fascista.
1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto
da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi
típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa,
mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego
clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com
indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida
na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida
sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos
egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das
religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente,
como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou
práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens
originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas
diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a
alguma verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi
anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua
obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento
fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose
nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais
importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o
Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império
Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita
italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e
Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a
indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba,
ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e
Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os
fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas
em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais
tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos
industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma
ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo
moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas
referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente).
O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna.
Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A
ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma
reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na
medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a
Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente
de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As
universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo
intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas
oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a
inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito
crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura
moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço
dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo
cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da
diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando
fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por
definição.
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que
explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o
apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica
ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.
Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em
pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo
encontrará nessa nova maioria seu auditório.
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o
Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido
em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que
podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da
psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional.
Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um
complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior:
os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar,
ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo
complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e
pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram
o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos,
pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma
rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos
de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de
registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos
demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são
constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do
inimigo.
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a
luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a
vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados,
tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle
do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma
idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder
fascista conseguiu resolver essa contradição.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia
reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história,
todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos
fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os
cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os
melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas
patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu
poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que
sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e
merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente
(segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus
subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo
isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em
qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia
Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado
ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva
la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é
preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso
de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira
à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói
Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso
ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte.
12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos
difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões
sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma
condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à
homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói
Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra
são devidos a uma inveja pênis permanente.
13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma
democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de
cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as
decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto
indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma
entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de
seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu
intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são
chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim,
apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo,
não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no
qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser
apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo
qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares.
Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano
foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um
acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento
melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que
um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais
a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada
por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas
certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos
os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em
uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio
complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de
novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.
Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me
concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações
lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito
prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais
próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além
disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia
coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira
página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã,
Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até
aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na
Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos
ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta
de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o
outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade
de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”,
“ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia.
Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja
esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes
civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do
mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras
desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil
assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é
desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada
dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso
dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva,
buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de
1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o
nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla
spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi
s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
Na
amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas
lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.
Umberto Eco,
O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução:
Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
[1] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de
contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
A Revista Samuel reproduz o texto de Umberto Eco
"Ur-Fascismo", produzido originalmente para uma conferência proferida
na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da liberação da
Europa:
"O Fascismo Eterno"
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi
Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens
fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela
glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta
foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei
esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não
significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes,
que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal
exercício.
Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes
chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça
principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas,
invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo,
ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal
Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos.
Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou
acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que
toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de
Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola.
Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos,
amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que
caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão
gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de
palavra significa também liberdade da retórica.
Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram
afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me
apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram
coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família
de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em
que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês
aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um
pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos,
depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em
uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime
le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do
capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De
noite colocava o chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia
seguinte.
Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma
sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal
de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era
apenas um fenômeno local, mas Europeu.
Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”,
“armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras
fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de
conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.
Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência
teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a
questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e
psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não
tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens
norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era
irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando
seu débito.
Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É
verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade
pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me
dos resistentes com bandeiras de diversas cores.
Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão
geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso —
escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram,
ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de
florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu
ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da
Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói.
Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão
anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e
foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que
importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um
empreendimento comum de gente das mais diversas cores.
Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico
período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A
recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão
provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos
aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso
até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso
dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar
o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que
fizeram.
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes
da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito
difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas
diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder
carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma
vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado,
no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da
democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para
admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é
certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho
fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos
neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o
nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de
mobilizar uma nação inteira.
Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as
ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime
e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de
hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis.
Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras
partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto
é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes
de sentimentos não expressos.
Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas
toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta
contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram",
de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os
fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A
vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo
e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado
da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo
com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom
norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito.
Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos
radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que
fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”,
“Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é
o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do
racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a
“arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch.
O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que
o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era
claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que
subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e
estalinismo eram regimes totalitários.
O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente
totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de
sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não
tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini
para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em
Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético
absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha
qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja
e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus
primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a
Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava,
evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini
citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da
Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de
direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos
análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de
Mussolini.
O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um
folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no
exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que
surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia,
Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha,
Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o
fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo
regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer
uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista.
Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente
para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma
denominação pars pro toto para movimentos totalitários
diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos
dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao
contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só
essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1]. O fascismo não era uma ideologia
monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas,
uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que
consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de
Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que
exaltava a violência e o livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas
era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam
uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante
vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse
as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas
quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses
depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”,
reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase
jacobinas.
Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o
arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da
mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin.
Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus
pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno
racionalismo de Gropius.
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios
artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático
como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros
intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati
dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e
razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas
experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como
corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único
aceito.
O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia
teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria
de vate do regime por seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o
acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete
Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros
futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a
participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a
violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao
culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império
romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um
automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o
luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande
respeito.
Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do
futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos
estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista.
Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam
novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de
partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os
instrumentos intelectuais para controlá-los.
No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma
reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus
protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era
exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime
tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não
prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro.
O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi
mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram
assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os
dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo
tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a
mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio
formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um
exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento
ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas,
mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns
arquétipos.
Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo,
e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o
nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo.
Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo
não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein,
acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode
envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou
nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades
diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é
caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por
diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é
semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c).
O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas
sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta
série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de
transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um
regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido
como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar;
tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo
italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos
Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal
(completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados
gurus fascistas, Julios Evola.
A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de
características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou
“fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema;
muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou
fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se
forme uma nebulosa fascista.
1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto
da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi
típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa,
mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego
clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com
indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida
na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida
sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos
egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das
religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente,
como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou
práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens
originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas
diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a
alguma verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi
anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua
obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento
fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose
nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais
importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o
Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império
Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita
italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e
Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a
indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba,
ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e
Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os
fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas
em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais
tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos
industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma
ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo
moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas
referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente).
O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna.
Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A
ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma
reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na
medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a
Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente
de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As
universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo
intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas
oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a
inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito
crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura
moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço
dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo
cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da
diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando
fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por
definição.
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que
explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o
apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica
ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.
Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em
pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo
encontrará nessa nova maioria seu auditório.
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o
Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido
em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que
podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da
psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional.
Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um
complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior:
os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar,
ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo
complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e
pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram
o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos,
pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma
rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos
de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de
registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos
demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são
constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do
inimigo.
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a
luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a
vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados,
tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle
do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma
idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder
fascista conseguiu resolver essa contradição.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia
reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história,
todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos
fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os
cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os
melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas
patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu
poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que
sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e
merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente
(segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus
subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo
isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em
qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia
Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado
ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva
la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é
preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso
de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira
à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói
Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso
ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte.
12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos
difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões
sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma
condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à
homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói
Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra
são devidos a uma inveja pênis permanente.
13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma
democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de
cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as
decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto
indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma
entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de
seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu
intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são
chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim,
apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo,
não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no
qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser
apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo
qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares.
Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano
foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um
acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento
melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que
um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais
a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada
por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas
certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos
os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em
uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio
complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de
novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.
Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me
concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações
lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito
prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais
próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além
disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia
coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira
página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã,
Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até
aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na
Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos
ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta
de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o
outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade
de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”,
“ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia.
Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja
esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes
civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do
mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras
desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil
assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é
desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada
dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso
dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva,
buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de
1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o
nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla
spalletta del ponte
Le teste degli impiccati Nell'acqua della fonte La bava degli impiccati Sul lastrico del mercato Le unghie dei fucilati Sull'erba secca del prato I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini Mordere l'aria mordere i sassi Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi
s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà Ma l'hanno stretta i pugni dei morti La giustizia che si farà. |
Na
amurada da ponte
A cabeça dos enforcados Na água da fonte A baba dos enforcados No calçamento do mercado As unhas dos fuzilados Sobre a grama seca do prado Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens Morder o ar morder as pedras Nosso coração não é mais de homens
Mas
lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer Mas estreitaram-na nos punhos os mortos A justiça que se há de fazer. |
Umberto Eco,
O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução:
Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
[1] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de
contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
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