A crise do capitalismo e a
caça às bruxas
Eu tinha 8 anos
quando crianças apontaram para mim e gritaram “demônio, filha de comunista”.
Achei que isso nunca mais aconteceria. Estava enganada.
por Rosana
Pinheiro-Machado — publicado 14/04/2016 12h04, última
modificação 14/04/2016 12h34
Tasso Marcelo/ Fotos Públicas
A perseguição ideológica voltou com tudo no Brasil. O momento é crítico
e os efeitos disso são catastróficos.
Eu tinha oito anos de idade quando algumas crianças apontaram para mim e
gritaram “demônio, filha de comunista”.
Eu fui crescendo, a democratização foi se consolidando e as acusações
pararam de acontecer. Tornei-me adolescente com o fim da União Soviética e a
queda do Muro de Berlim. Todo mundo queria fazer fila para comer no McDonalds
recém-inaugurado.
Conforme os ares da ditadura iam ficando para trás, meu pai comunista se
transformava mais em folclore do que uma ameaça. Eu me tornei adulta
acreditando que eu podia ser bizarra de esquerda, mas ainda sim eu desfrutaria
de uma liberdade que meus pais e meus tios nunca desfrutaram.
Eu achava que nunca seria chamada de demônio comunista e que isso se
devia ao fato de o Brasil ter alcançado solidez democrática e liberdade de
expressão.
Mas eu estava engana. A caça às bruxas voltou. Na verdade, ela nunca se
foi.
O ódio às manifestações de esquerda só cessaram enquanto o American
Way of Life reinava soberano sem qualquer possibilidade de ameaça. Ser
de esquerda era ser ultrapassado, “feio e sujo” – como diziam – ao contrário de
todo aquele apelo do consumo capitalista.
Contudo, desde os movimentos de Occupy, o
império volta a ser questionado no mundo todo e isso é feito por meio de novas
linguagens, roupagens e significados.
No Brasil, Junho de 2013 mostrou a emergência de
nossas subjetividades políticas, difíceis de enquadrar em esquemas binários. As
estruturas de classes foram minimamente desafiadas por meio de políticas de
inclusão sociais. Estas políticas – que estão longe de ser socialistas – foram
toleradas pelas elites brasileiras enquanto a maré do crescimento econômico
favorecia a todos.
Mas bastou o colapso econômico entrar em cena e a
população brasileira mostrar sinais de mobilização política, que a ameaça
comunista foi reinventada e resgatada do fundo dos esgotos mais imundos.
Abriram-se os bueiros e os ratos saíram para a rua.
Tempos estranhos
Por respeito às pessoas que foram torturadas e mortas na ditadura militar, eu
tenho muita cautela em empregar levianamente a palavra golpe e reproduzir algo
que eu acho uma atitude um tanto masoquista de uma parcela da esquerda: o seu
desejo mais íntimo – e um tanto estético, é verdade – de ter militado nos anos
1960 e 1970. Mas é preciso pontuar que a perseguição ideológica voltou com
tudo. O momento é crítico e os efeitos disso são catastróficos.
Eu contei 12 amigos e conhecidos meus que foram agredidos física e
verbalmente por saírem nas ruas de vermelho recentemente. Um bebê teve atendimento médico recusado porque
a mãe era do PT. Duas associações médicas disseram que a recusa de atendimento
era legítima.
Nos últimos dias, eu deparei-me com dois casos alarmantes na educação. O
doutorando e professor Paulo Ramos foi demitido sumariamente, depois de ter
sido interpelado por seu ,mposicionamento “ideológico”, já que um pai
teria reclamando que ele havia falado bem do socialismo - o que, na verdade,
eram aulas sobre violência e multiculturalismo.
Outros casos escolares semelhantes aconteceram nos últimos dias, na
mesma forma em que professores universitários de faculdades privadas me relatam
o clima de opressão de ideias.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, um dos sociólogos mais sérios no Brasil
na área de segurança pública, foi constrangido com a divulgação de uma gravação
que foi feita secretamente por um aluno PUC-RS para provar a “doutrinação
marxista” na universidade.
Valores liberais clássicos, como direitos humanos, transformaram-se em
“doutrinação marxista” no Brasil. Trata-se de uma mentira que vem ganhando cada
vez mais espaço, sendo estimulada por figuras caricatas e vulgares da direita
brasileira que se intitulam liberais, mas incitam claramente o apedrejamento
aos “comunistas”.
Essas figuras, quando confrontadas com expressões antiliberais e pelo
pedido da volta da ditadura, por exemplo, calam-se e consentem. Afinal, não é o
liberalismo que está em jogo, mas o conservadorismo em sua forma mais
retrógrada.
Tudo isso é movido pela audiência de milhares de pessoas, o que resulta
nos trágicos 8% que Jair Bolsonaro emplaca nas pesquisas de
intenções de votos nas eleições presidenciais de 2018. Esse sujeito
antiliberal, e anti-liberdade, é o produto mais bem acabado do ódio promovido
pelo liberalismo à brasileira.
Eu fui professora de Antropologia no ensino superior no Brasil até 2013.
A agenda de qualquer professor de introdução à disciplina é pautada por
questões científicas acerca das diferenças e das similaridades entre seres
humanos.
Discutir poder, gênero, sexualidade e raça – e desconstruir processos de
desigualdade – não são conteúdos marxistas (ainda que possa existir uma versão
marxista para esses assuntos), mas os mais elementares conteúdos para uma
reflexão crítica sobre a nossa humanidade. Relativismo e direitos humanos são
temas básicos para qualquer debate e são frutos de uma tradição iluminista e
liberal do Ocidente.
Até 2013, nós ensinávamos essas questões normalmente em universidades
privadas. Sempre havia um grupo resistente, que vinha com argumentos acerca da
“verdade natural”, que colocava homens brancos e heterossexuais no topo da escala social.
Nunca foi fácil trabalhar estes assuntos no Brasil, mas também nunca foi
difícil: eu nunca fui acusada de promover “doutrinação marxista” por debater
temas que, na verdade, dizem respeito à construção simbólica dos seres humanos.
Meu colega que assumiu minhas disciplinas após 2013, especialmente após
os movimentos de Junho, relata que os alunos começaram a ficar mais corajosos e
a acusar os antropólogos de “comunistas” de forma agressiva e violenta.
Interessante que o mesmo não ocorre com as pessoas que, ideologicamente,
declaram-se liberais. Estes encontram desafetos e resistência, mas jamais
violência e dedo na cara. Declarar-se a favor do mercado é uma vertente
econômica. Doar centenas de livros de Mises para estudantes é um ato
pedagógico. Todavia, ensinar Marx ou declara-se contra o mercado é uma prática
subversiva, diabólica e quase criminosa. Então, eu me pergunto: onde está mesmo
o viés ideológico?
É patético, mas também irônico, quando se encontra “ideologia” apenas
nos grupos de esquerda. Quando os grupos dominantes usam dos grandes meios de
comunicação, do consumo e de tantas outras formas de repassar a ideologia
capitalista e reproduzir oestablishment, isso é encarado como neutro.
Crises
Narrativas não-hegemônicas são essenciais para o pensamento crítico e,
consequentemente, para liberdades individuais e coletivas.
Narrativas não-hegemônicas são formas de resistência. É a parte fraca da
história. Portanto perseguição "ideológica" é, em si, um ato
ideológico, ou seja, é cultura dominante tentando manter-se hegemônica em num
momento em que a fazer fila no McDonalds já não tem mais apelo algum.
A crise do capitalismo é um fato do século 21. O projeto democrático só
foi permitido no Brasil enquanto o rol ideológico capitalista sustentava o mito
da felicidade. Mas hoje novas subjetividades – críticas, questionadoras e engajadas
- emergem no país. Novos e antigos movimentos sociais se fortalecem, ao mesmo
tempo em que a “inclusão” via consumo capitalista parece ter ido por água
abaixo, acabado na mais vil forma de endividamento.
A crise é evidente. Os chamados “precariados” podem ir para qualquer
lado na luta ideológica – como pontua Guy Standing. O que parece existir hoje é
uma mentira de ameaça do comunismo que ganha cada vez mais legitimidade entre
os grupos mais vulneráveis. A dinâmica é perversa. Novamente, criar-se o mito
da ameaça vermelha, para, na verdade, manter o poder do establishment.
A esquerda que se renova não é mais o cachorro morto dos anos 1990, que
não se precisava nem chutar mais. Hoje é preciso voltar a chutar. É neste
momento de profunda crise das contradições do capitalismo, que se os fortes
anunciam golpe, coerção e violência a fim de se proteger dos demônios
comunistas – que só existem em suas cabeças perversas e corrompidas pelo
poder.
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