quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Quando o Império engasga, o Sul respira

 

Este artigo encontra-se em resistir.info

 

– O BRICS+ é contraditório, desigual e frágil, mas nas suas frestas o Sul Global abre espaço para a soberania e a luta
– A multipolaridade surge da crise, não do consenso

Prince Kapone [*]

BRICS, cartoon de Latuff.

A história que nos vendem é que a "ordem" foi construída por homens sensatos em fatos elegantes. A história que vivemos é diferente. A multipolaridade não surgiu de seminários ou cimeiras; é o ressalto de cinco séculos de pilhagem, o recuo das guerras e sanções e a recusa dos colonizados em continuar a pagar pela civilização de outrem. A sua genealogia remonta ao Comunicado de Bandung (1955) — o primeiro grande encontro em que a maioria da humanidade falou em seu próprio nome — passando pelo longo desvio da dívida, do ajustamento estrutural e da contra-insurgência disfarçada de "desenvolvimento".

A promessa de Bandung era simples e subversiva: soberania, coexistência pacífica, cooperação e voz na economia mundial para aqueles que realmente fazem a economia mundial funcionar. Pode ler essa promessa preto no branco no texto do comunicado, um documento que ainda soa radical porque os mesmos impérios continuam ofendidos pelas mesmas palavras. O recente dossiê da Tricontinental, O espírito de Bandung (2025), mostra que não se tratava de etiqueta — era um programa de trabalho para a descolonização a partir de baixo.

A resposta do núcleo imperial foi apertar os parafusos. Em 1975, a Comissão Trilateral diagnosticou o verdadeiro problema como “demasiada democracia”, uma admissão franca em The Crisis of Democracy (A Crise da Democracia) de que a participação popular tinha de ser disciplinada para restaurar o controlo da elite. Pouco depois, veio o chicote da dívida e o ajustamento estrutural: privatizar os bens comuns, cortar os bens públicos, abrir as veias ao capital, chamar-lhe modernização. Até mesmo os próprios registos da família da ONU descrevem como esses programas de ajuste foram vinculados aos empréstimos, como exigiram austeridade como preço do crédito e como os órgãos de direitos humanos alertaram durante anos que tais “reformas” prejudicam os direitos e a proteção social. A literatura académica preencheu o custo humano: o ajuste estrutural está correlacionado comsistemas de saúde mais fracos e maior mortalidade infantil. Por outras palavras, recolonização por folhas de cálculo.

Então caiu a máscara. A crise de 2008 — criada na metrópole e exportada para todos — ridicularizou os sermões sobre “finanças sólidas”. O Relatório sobre Comércio e Desenvolvimento (2009) da UNCTAD e seu capítulo sobre países em desenvolvimento documentaram como o Sul pagou um “preço alto” por uma crise nascida no centro. A lição foi aprendida: se as regras são manipuladas para socializar as perdas de Wall Street e privatizar o futuro do Sul, o Sul deve mudar as regras — ou sair do jogo.

Esse é o solo em que os BRICS brotaram — não como utopia, mas como recusa. Com o tempo, o bloco se ampliou para BRICS+, adicionando novos membros e parceiros à medida que os Estados buscam espaço para respirar fora do jugo do dólar. A onda mais recente não é um rumor, mas um facto:   em 1 de janeiro de 2024, o Egito, a Etiópia, o Irão e os Emirados Árabes Unidos entraram como membros plenos e, em janeiro de 2025, o Brasil anunciou a adesão da Indonésia, ecoada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da China e corroborada por reportagens independentes. Nada disso torna o BRICS+ socialista; torna-o útil — um espaço contestado onde o monopólio da gestão imperial está a quebrar. Para uma visão sóbria do Sul Global sobre o que realmente está a acontecer (e o que não está), veja a análise do South Centre sobre os debates sobre a desdolarização no interior do BRICS.

A multipolaridade não é um slogan; é uma contracorrente material. É possível observá-la na infraestrutura e nos canais de pagamento do mundo. A linha de vida marítima da Etiópia agora funciona com a ferrovia eletrificada Addis–Djibouti, uma parte concreta da artéria Sul-Sul que os planeadores em Washington nunca pretenderam que existisse. Em todo o continente, a plataforma de pagamentos transfronteiriços da África está a reduzir os custos em moeda forte e a minar o hábito do dólar — precisamente o tipo de mudança tecnicamente “aborrecida” que muda o clima político.

A multipolaridade garante a emancipação? Claro que não. Como a Tricontinental coloca em linguagem simples, a tarefa é passar da redução do risco para a soberania genuína, não trocar um senhor por vários gestores. Mas a virada da história é audível. Bandung nomeou os princípios; o neoliberalismo puniu aqueles que tentaram vivê-los; a crise expôs a hipocrisia; o BRICS+ é a fresta por onde a história respira. A nossa aposta — baseada nos arquivos, nos dados e na memória da luta — é que essa fresta pode ser ampliada por pessoas organizadas, não apenas negociada por Estados.

Linhas de fratura e fronteiras dentro do BRICS+

Peritos em Nova Iorque e Londres continuam a descrever o BRICS+ como se fosse uma única besta, uma espécie de hidra de “mercado emergente” com dez cabeças. É uma ficção conveniente. A realidade é muito mais fragmentada:   uma coligação unida por um antagonismo comum ao poder unipolar, mas repleta de motivos e trajetórias distintas. Para ver este bloco com clareza, precisamos de uma cartografia dos seus tipos, não como um exercício académico, mas como um guia para onde se encontram as contradições.

Comece com os Resistentes Sancionados. O Irão suportou quatro décadas de cerco económico, construindo sistemas comerciais paralelos e rotas de exportação de petróleo, apesar da tentativa de Washington de sufocá-lo. Os especialistas em direitos humanos da ONU chamam a estas sanções pelo que elas são: punição coletiva, fome como arma. A Bielorrússia, sob embargo europeu, respondeu aderindo à Organização de Cooperação de Xangai em 2024, aprofundando a sua viragem eurasiática. Estes Estados trazem para o BRICS+ um conhecimento íntimo da sobrevivência sob o bloqueio imperial. Depois vêm os Estados Estranguladores, situados nas artérias do comércio global. O Canal do Suez, no Egito, movimenta cerca de 12% do comércio mundial. A Etiópia, embora sem litoral, está ligada ao mar através da ferrovia Addis-Djibouti, construída pela China, uma artéria do Belt and Road. A Indonésia aderiu formalmente ao BRICS em janeiro de 2025, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China a confirmar a sua adesão e reportagens independentes a corroborar a adesão. Controla o Estreito de Malaca e o fluxo global de níquel, o mineral da transição energética. A Nigéria, ainda listada como um peso pesado da OPEP, está presa no paradoxo da riqueza petrolífera e da austeridade imposta pelo FMI. Os Emirados Árabes Unidos, outro novo membro, controlam as rotas marítimas e as finanças do Golfo. Nenhum destes Estados é ideologicamente anti-imperialista, mas cada um introduz pontos de influência que corroem o monopólio do controlo dos EUA e da OTAN sobre a circulação. A seguir vêm os Estados oscilantes do subimperialismo:   Brasil, Índia e África do Sul. As suas classes dominantes querem autonomia de Washington, mas também guardam zelosamente as suas esferas regionais, muitas vezes reproduzindo a mesma lógica imperial que afirmam resistir. O Centro de Políticas BRICS do Brasil e o Centro de Políticas para o Novo Sul de Marrocos sublinham a ambivalência:   soberania sem socialismo, influência sem transformação. A Índia troca rupias com a Rússia enquanto participa de exercícios navais dos EUA no Indo-Pacífico. Os barões do agronegócio brasileiro vendem soja para a China enquanto se alinham com o FMI em metas fiscais. A África do Sul desempenha o papel de mediadora na Ucrânia, mesmo enquanto as suas elites aprofundam o domínio do capital mineiro.

Depois, há o Pólo Socialista em Formação. A China, com as suas artérias de aço da Belt and Road e as suas vastas reservas financeiras, e a Rússia, com os seus hidrocarbonetos e dissuasão militar, são as âncoras indispensáveis. Sem elas, o BRICS seria uma sopa de letras. Com eles, o BRICS+ torna-se tanto um escudo quanto uma armadilha:   um abrigo para Estados sancionados e uma plataforma para manobras soberanas, mas também um bloco onde a lógica capitalista está viva e bem, e na Rússia dominante, embora abalada pela guerra. A sua presença é a condição de possibilidade — e a contradição central — de todo o projeto. Finalmente, a Órbita Parceira. Em julho de 2025, o Vietname aceitou o convite do BRICS para se juntar como país parceiro, ao lado da Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. Isso deu vida ao BRICS “20”: dez membros e dez parceiros, representando 56% da humanidade e 44% do PIB global (PPC). A adesão do Vietname é mais do que uma estatística. Ela sinaliza a persistência do não alinhamento — os “Quatro Nãos” proclamados por Hanói: sem alianças, sem tomar partido contra outro país, sem bases estrangeiras, sem uso da força. Numa era em que Washington busca transformar o Vietname num peão contra a China, Hanói, ao contrário, junta-se a um bloco que inclui Pequim. Isso é uma manobra multipolar, não capitulação. O BRICS+ não é um projeto socialista. Mas a inclusão de Cuba muda a geometria. Traz não apenas uma voz, mas uma vanguarda: uma memória viva da revolução e uma tradição ininterrupta de luta anti-imperialista. A sua presença injeta clareza política e profundidade histórica num bloco muitas vezes puxado para os interesses da elite e do nacionalismo burguês. Cuba lembra ao bloco que o Sul Global não precisa apenas de soberania — precisa de emancipação.

Tipologias como estas não são bolas de cristal. São mapas de um campo de batalha. A retórica revolucionária coexiste com práticas subimperiais, a determinação sancionada com os petrodólares. O que une o BRICS+ não é uma ideologia coerente, mas as fissuras na estrutura do império. É nessas fissuras que o Sul Global experimenta um espaço para respirar — e onde os movimentos ainda podem encontrar alavancas para ampliar a ruptura.

O terreno comum da contradição

Retire as siglas e os discursos das cimeiras e o que resta é claro: a única coisa que une o BRICS+ é uma situação difícil comum. Cada Estado chega com as suas próprias cicatrizes. Décadas de austeridade imposta pelo FMI esvaziaram os serviços públicos, deixando dívidas que nunca poderão ser pagas. Organismos de direitos humanos alertam que esses programas de ajuste violam direitos básicos, mas os credores continuam a apertar o cerco. A situação do Sul Global não é abstrata; é a experiência vivida de sistemas de saúde frágeis e mortes evitáveis, uma crise permanente fabricada em Washington e Bruxelas.

As sanções são o outro instrumento de disciplina. Peritos da ONU condenaram repetidamente as sanções unilaterais como punição coletiva. O Irão pagou o preço com medicamentos bloqueados, Cuba com remessas estranguladas, a Rússia com ativos congelados. Todos os Estados sancionados que aderem ao BRICS+ trazem consigo a memória e o know-how de como navegar nesta guerra económica — através da troca, moedas locais ou sistemas de pagamento paralelos.

A geografia agrava a pressão. O canal do Egito, o corredor ferroviário da Etiópia, os estreitos da Indonésia, a infraestrutura petrolífera da Nigéria — oleodutos, terminais e o Golfo da Guiné — são linhas de vida há muito policiadas pelo capital ocidental. Agora, esses mesmos corredores estão a ser reposicionados em condições multipolares, mesmo com a expansão das bases do AFRICOM e as "parcerias" da OTAN a espalharem-se pelo Sul Global. O campo de batalha não está apenas nos parlamentos ou palácios, mas também nos portos, oleodutos e cabos de fibra ótica.

Também não devemos ignorar a dimensão interna:   todos os Estados do BRICS+ enfrentam crises de legitimidade em casa. A crescente desigualdade no Brasil, as revoltas dos agricultores na Índia, a escassez de energia na África do Sul, o peso esmagador da dívida no Egito e na Nigéria. Estas não são contradições que desaparecem por trás das bandeiras multipolares; elas estão incorporadas no bloco. Como nos lembra a Tricontinental, as classes dominantes manobram para sobreviver, mas as manobras podem criar aberturas para rupturas quando as forças populares intervêm.

Estas contradições não são um erro, mas a própria bússola do presente. Como argumentei em outro lugar, os Estados multipolares devem contar com as massas para sobreviver, mas muitos são liderados por classes que temem essas mesmas massas. Eles são obrigados a distribuir o suficiente para manter a lealdade, mas não o suficiente para empoderar a transformação. Essa tensão é instável e, sob o cerco imperial, pode se romper em uma soberania mais profunda — ou colapsar de volta à dependência.

É por isso que o BRICS+ não pode ser interpretado como uma ideologia, mas apenas como um terreno. Não é o renascimento de Bandung, mas ecoa o desafio de Bandung:   recusar o monopólio da gestão imperial. As suas contradições são a sua essência. O bloco é costurado pela necessidade, não pela unidade. E a necessidade, como Marx nos lembrou, é a parteira da história.

A contra-insurgência do império contra a multipolaridade

O império não recua educadamente; ele sabota. À medida que o BRICS+ amplia a sua presença, Washington e os seus aliados redobram a sua ação disruptiva. O AFRICOM ampliou o seu alcance em todo o continente, tecendo uma rede de bases do Sahel ao Corno de África, garantindo que todos os portos ou oleodutos possam ser vigiados ou atacados. Na Ásia, a chamada Estratégia Indo-Pacífica tem menos a ver com a "liberdade de navegação" do que com a militarização da periferia da China e a restrição de novos parceiros como a Indonésia e o Vietname. Na América Latina, os regimes de sanções e as operações secretas continuam a ser os instrumentos preferidos da "diplomacia".

A guerra financeira acompanha a guerra militar. O Federal Reserve dos EUA usa as taxas de juro como arma, provocando crises de dívida em todo o Sul e forçando pacotes de austeridade que desmantelam a soberania. Quando a Etiópia anunciou em 2023 que entraria em incumprimento do seu eurobônus, não se tratou de um fracasso interno, mas do resultado previsível do aperto monetário global. Todos os Estados do BRICS+ enfrentam esta pressão de alguma forma: fuga de capitais, volatilidade cambial, agências de notação de risco usadas como arma. A guerra da informação não é menos agressiva. Os mesmos meios de comunicação que venderam a invasão do Iraque agora inundam as agências noticiosas com histórias sobre a "China autoritária", a "Rússia expansionista" e os "BRICS instáveis". O Centro de Envolvimento Global do Departamento de Estado dos EUA descreve abertamente a sua missão como "combater a desinformação", o que na prática significa desacreditar qualquer narrativa do Sul Global que desafie o guião do império. O objetivo é deslegitimar as experiências multipolares antes que elas se consolidem. E depois há a sabotagem por cooptação. O sistema do dólar não está a ser defendido apenas com bombas e sanções; está a ser defendido atraindo "estados indecisos" de volta à órbita de Washington com promessas de investimento, acordos comerciais ou pactos de segurança. A Índia é cortejada como contrapeso à China. Às elites do Brasil é oferecida a aprovação do FMI em troca de disciplina fiscal. A África do Sul é persuadida com convites para o G7. O império sabe que, se conseguir fragmentar o bloco por dentro, poderá neutralizá-lo sem disparar um tiro. Confundir o BRICS+ com uma força imparável é subestimar tanto a sua fragilidade quanto a crueldade do seu adversário. Cada avanço — seja um swap de moeda local, um novo corredor logístico ou uma declaração de cimeira — será recebido com contra-ataques:   golpes em África, guerras por procuração na Ásia Ocidental, armadilhas da dívida na América Latina, bombardeios de informação em todo o lado. É assim que a hegemonia se comporta quando encurralada. A questão não é se o império vai contra-atacar; é se os movimentos no Sul podem transformar as manobras das elites em rupturas populares, para que a sabotagem se transforme em bumerangue.

Da desdolarização às infraestruturas alternativas

A arma mais insidiosa do império não é o porta-aviões, mas a câmara de compensação. O dólar americano continua a ser o lubrificante do comércio mundial, e a capacidade de Washington de congelar reservas ou bloquear transações através do SWIFT equivale a um veto global. Não é por acaso que quase todos os comunicados do BRICS+ mencionam as finanças. O boletim de dezembro de 2024 do South Centre documenta a crescente tendência para liquidar o comércio em moedas locais, uma forma pragmática de desdolarização já praticada entre a Índia e a Rússia, o Brasil e a China, o Irão e qualquer país disposto a negociar através de troca ou yuan. Cada acordo enfraquece o monopólio.

Estão a ser criadas instituições para levar a cabo esta mudança. O Novo Banco de Desenvolvimento, com sede em Xangai, concede empréstimos em moedas locais para reduzir a dependência dos programas de austeridade do FMI. O Sistema Pan-Africano de Pagamentos e Liquidação (PAPSS) permite o comércio transfronteiriço em moedas africanas, contornando o hábito do dólar que drena 5 mil milhões de dólares anualmente em custos de conversão. A ambição é clara: criar infraestruturas que permitam ao Sul negociar, investir e construir sem pedir permissão a Washington ou Bruxelas. A tecnologia é uma frente crucial. A ferrovia Addis-Djibouti, o comboio de alta velocidade Jacarta-Bandung e os gasodutos Rússia-China Power of Siberia não são apenas infraestruturas — são artérias da vida multipolar. Eles unem regiões de maneiras que contornam pontos de estrangulamento imperiais.

Os pagamentos digitais também são importantes:   o sistema de compensação CIPS da China, o SPFS da Rússia e o UPI da Índia são alternativas embrionárias ao SWIFT. Mesmo sistemas “chatos” como o PAPSS representam mudanças revolucionárias quando vistos contra séculos de hegemonia do dólar. Mas a desdolarização não é uma varinha mágica. A Tricontinental adverte que “derisking” (redução do risco) é muitas vezes apenas um código neoliberal para hedge, não emancipação. Se as elites usarem swaps em moeda local para proteger os lucros enquanto cortam gastos sociais em casa, nada muda. O risco é trocar a moeda de um senhor por outra, deixando intactas as relações de dívida. A multipolaridade só se torna emancipatória quando a soberania financeira é acompanhada pela soberania popular. Ainda assim, as rachaduras na muralha do dólar estão a ampliar-se. Quando a Argentina pagou as importações chinesas em yuan em 2023, quando a Arábia Saudita sinalizou disposição para vender petróleo fora do dólar em 2024, quando as cúpulas do BRICS+ repetidamente lançaram a ideia de uma unidade monetária comum, o tabu foi quebrado. Nenhuma ação isolada destronará o dólar, mas cada novo gasoduto/oleoduto, sistema de pagamento e linha de swap torna mais difícil para Washington acionar o botão de desligar. A multipolaridade não vive em comunicados, mas nessas infraestruturas alternativas, construídas silenciosamente, disputadas ferozmente e apontando para um mundo onde o veto do império não governa mais por padrão.

A Rota da Seda Digital e a batalha pela soberania tecnológica

A multipolaridade não é travada apenas no terreno dos gasodutos/oleodutos ou dos swaps de dívidas. Cada vez mais, ela é travada nas correntes invisíveis da fibra ótica, dos satélites e dos códigos. A Rota da Seda Digital (DSR) do BRICS representa um dos projetos mais ousados do bloco:   uma tentativa deliberada de construir um ecossistema digital seguro e autossuficiente, livre do domínio ocidental. Onde os Estados Unidos outrora monopolizavam não só as finanças, mas também a espinha dorsal da Internet, o BRICS agora instala os seus próprios cabos, lança os seus próprios satélites e codifica a sua própria nuvem.

O cabo de fibra ótica exclusivo dos BRICS proposto ligaria diretamente os Estados-membros, reduzindo a dependência das redes controladas pelo Ocidente e protegendo contra a vigilância. Entretanto, a implantação do 5G liderada pela Huawei na China e parceiros no Brasil e na Rússia sobreviveu a sanções e proibições, estendendo-se até ao coração das cidades do Sul Global. Em contrapartida, a Índia excluiu os fornecedores chineses dos testes 5G e implementou o 5G com fornecedores não chineses. Os sistemas de navegação GLONASS da Rússia e BeiDou da China, outrora considerados redundantes em relação ao GPS dos EUA, agora formam os pilares de uma rede multipolar de satélites. A cibersegurança está a ser coletivizada. A formação de um Grupo de Trabalho sobre Cibersegurança do BRICS sinaliza que as informações sobre ameaças serão partilhadas em tempo real, com defesas baseadas em IA implantadas além das fronteiras. Ao mesmo tempo, a soberania financeira está a ser repensada:   a China impulsiona o yuan digital, enquanto a Rússia e o Brasil exploram moedas digitais do banco central. Um sistema de pagamento BRICS baseado em blockchain, outrora descartado como fantasia, agora parece uma ultrapassagem plausível do SWIFT. Mas talvez a tendência mais radical esteja na investigação e desenvolvimento. Joint ventures em semicondutores e computação quântica visam corroer um dos últimos monopólios do Ocidente:   o controlo do chip. As colaborações de IA de código aberto, abrangendo setores que vão da tecnologia da saúde às cidades inteligentes, prometem não apenas ferramentas mais baratas, mas também valores diferentes incorporados ao código. Analistas da Iniciativa Cinturão e Rota da China enfatizam que a Rota da Seda Digital não é apenas cabos e servidores, mas uma tentativa de moldar padrões tecnológicos, modelos regulatórios e até mesmo as narrativas que fluem através deles. Nesse sentido, a DSR tornou-se uma infraestrutura estratégica para a autonomia digital e narrativa em grande parte do Sul Global.

Para o império, este é um cenário de pesadelo:   um mundo onde o Sul não só negocia fora do dólar, mas também comunica, armazena dados e protege redes sem passar pelo Vale do Silício ou pelo interruptor do Pentágono. Para os movimentos, é uma abertura. A tarefa é garantir que estas ferramentas digitais sirvam a libertação, e não simplesmente novas elites. Pois, no século XXI, soberania sem soberania digital não é soberania alguma.

Armar a informação, alargar a brecha

Se a multipolaridade é um campo de batalha, então a informação é uma das suas armas mais afiadas. Os think tanks do império, do Atlantic Council à Chatham House, publicam diariamente panfletos sobre os "perigos" do BRICS+. O seu objetivo é enquadrar o bloco como ilegítimo antes mesmo que ele se coesione. Mas o Sul Global tem o seu próprio arsenal. O Instituto Tricontinental de Investigação Social, o Relatório de Economia Geopolítica, o Peoples Dispatch e dezenas de outras plataformas estão a produzir contra-narrativas rigorosas e acessíveis. Isto não é propaganda; é sobrevivência. Ver claramente é lutar eficazmente.

Os movimentos sabem há muito que "quem controla a história controla a luta". Durante a Guerra Fria, Washington usou a "economia do desenvolvimento" para justificar a recolonização através da dívida. Hoje, usam palavras da moda como "escoramento amistoso" ("friendshoring") e "de-risking" para mascarar a guerra das cadeias de abastecimento. A recusa do Vietname em ser um peão nesta guerra narrativa — juntando-se ao BRICS+ enquanto Washington procurava colocá-lo contra a China — mostra o poder da soberania narrativa. Hanói insistiu na sua própria voz, enraizada na sua doutrina dos "Quatro Nãos" de não alinhamento, e esse ato repercutiu-se globalmente. E agora, isso já não é mais obra de meios de comunicação isolados. Em julho de 2025, mais de 220 comunicadores de 50 países lançaram a Aliança de Jornalistas para a Comunicação do Sul Global em Caracas, declarando uma frente permanente para combater o domínio da mídia ocidental e defender a verdade como um direito do povo. A declaração final foi inequívoca:   “Os povos têm direito à verdade. De vivê-la, de contá-la e de conhecê-la.” Do ministro das Relações Exteriores da Venezuela aos delegados da África do Sul e da China, as vozes convergiram para a necessidade de “soberania informacional” e “ferramentas digitais soberanas” para quebrar o controlo algorítmico. Por outras palavras:   uma nova ordem internacional da informação, elaborada pelos próprios oprimidos. A informação como arma deve vir tanto de baixo quanto de cima. Não basta que ministros e presidentes emitam declarações; a classe trabalhadora, os camponeses e os jovens devem ser capazes de ler, argumentar e imaginar alternativas. Isso significa que os centros de pesquisa devem traduzir o jargão do FMI para uma linguagem simples, os sindicatos devem compreender como os sistemas de pagamento afetam os salários e os agricultores devem saber como as sanções distorcem os preços dos alimentos. Cada facto esclarecido é uma bala de clareza contra a névoa do império.

É por isso que a multipolaridade é tanto uma oportunidade quanto uma responsabilidade. A oportunidade:   as rachaduras no monopólio narrativo do império permitem que os media alternativos e a pesquisa cheguem a públicos sedentos pela verdade. A responsabilidade: evitar romantizar o BRICS+ como salvador e, em vez disso, insistir que suas contradições sejam expostas e contestadas. O bloco não é uma garantia de emancipação — é um local de luta. Tal como nas experiências de desdolarização, o trabalho narrativo pode transformar as manobras das elites em alavancagem de massas. No final, a informação não é um acessório do poder; é o poder. Quando o império perde o controlo da história, perde a sua aura de inevitabilidade. E quando as pessoas acreditam que o mundo pode ser diferente, começam a torná-lo assim. Essa é a essência da informação como arma:   não mentiras para espelhar as mentiras do império, mas clareza afiada como uma arma, empunhada por aqueles que se recusam a se curvar à inevitabilidade. Nesse sentido, cada ensaio, cada dossiê, cada aliança de jornalistas como os que se reuniram em Caracas faz parte da mesma insurgência — a longa guerra de ideias que torna possíveis as curtas guerras de libertação.

Conclusão: rachaduras na muralha, estradas ainda por construir

O BRICS+ não é nem o horizonte socialista nem um novo Movimento dos Países Não Alinhados. É um bloco de Estados que manobra entre os destroços da unipolaridade dos EUA, unido menos por princípios do que pela necessidade. No entanto, a necessidade importa. Com vinte membros e parceiros que representam agora mais de metade da humanidade e quase metade do PIB mundial, o BRICS+ demonstra que o veto do império já não é absoluto. Essa rachadura na parede — por mais confusa que seja — é, por si só, histórica. O perigo é óbvio:   a multipolaridade sem movimentos consolidar-se-á num cartel de compradores, trocando dólares por yuanes enquanto mantém os trabalhadores e os camponeses acorrentados. Como nos lembra a Tricontinental, a soberania sem poder popular é uma casca vazia. Mas a oportunidade é igualmente clara:   cada novo sistema de pagamento, cabo de fibra ótica e aliança mediática amplia o espaço onde as lutas populares podem respirar.

Desde a Digital Silk Road até a aliança de media Voices of the New World, estão a ser construídas infraestruturas de sobrevivência que, se aproveitadas pelos movimentos, podem ser transformadas em infraestruturas de emancipação. O império não deixará isso passar sem contestar. Eles respondem com golpes, sanções, propaganda e cerco. Mas as rachaduras se espalham; as muralhas desmoronam. O que importa agora é se os trabalhadores, os camponeses, os jovens e os movimentos populares forçarão o BRICS+ a ir além da proteção das elites em direção à libertação genuína. Isso requer transformar a informação em arma, reivindicar a soberania digital e exigir que soberania signifique não apenas a bandeira do Estado, mas a dignidade do povo. O BRICS+ não nos salvará. Mas prova que é possível resistir ao império, que a inevitabilidade é uma mentira. Nas fraturas da multipolaridade, cresce a possibilidade de ruptura. Nossa tarefa é ampliar essas fraturas — através da luta, da solidariedade e da clareza — até que o que começa como uma manobra dos Estados se torne a emancipação dos povos. O muralha está rompida; o caminho à frente está inacabado. Cabe a nós construí-lo.

18/Agosto/2025

[*] Ativista, estado-unidense

O original encontra-se em mronline.org/2025/08/18/when-the-empire-chokes-the-south-breathes


26/Ago/25


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