SAMSUNG CSC (Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil)
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Dirijo-me
aos jovens na condição de alguém que pela idade não vai combater na
próxima guerra mundial (Terceira Guerra Mundial) e talvez nem assista ao
seu início. Queria apenas transmitir-lhes as seguintes ideias, que
tenho por fundamentadas: estou convencido de que se aproxima uma
Terceira Guerra Mundial; ao contrário das anteriores, o campo de batalha
será todo o planeta e, pela primeira vez, incluirá o território dos
EUA; por mais sofisticada que seja a tecnologia militar e a
Inteligência Artificial que a suporta, vão ser necessários soldados no
terreno que irão morrer aos milhões, juntamente com populações civis
inocentes. Mais do que em qualquer guerra anterior; esses soldados serão
os jovens e não os senhores da guerra, sejam eles os políticos (que
nunca submeterão a referendo a decisão de fazer a guerra), sejam os
empresários e accionistas das empresas do complexo industrial-militar; a
única certeza que temos sobre a guerra é que sabemos quando começa,
mas não quando acaba; a especificidade da Terceira Guerra Mundial é que,
quando terminar (todas as guerras terminam), estará em risco, pela
primeira vez, não apenas a sobrevivência da espécie humana, mas a vida
não humana do planeta. É uma previsão distópica, mas suficientemente
realista para que proliferem hoje religiões centradas na ideia do
apocalipse. Ao contrário da delas, a minha mensagem é espinosiana, isto
é, assenta na dialéctica do medo e da esperança. Eu sei que a maioria
dos jovens, quando olha para o futuro, tem muito medo e pouca esperança.
Se quiserem ter mais esperança é preciso estarem preparados para
incutir medo aos poderosos deste mundo que, aparentemente, deixaram de
ter medo dos seus inimigos e vivem numa orgia de esperança. Antes de
prosseguir, quero afirmar aos jovens que, apesar de ter nascido na
Europa, falo a partir do Sul global com as lentes das epistemologias do
Sul. E, por essa razão, o que disse acima é apenas meia-verdade. Vista
do Sul global, a Terceira Guerra Mundial já começou (basta ter em mente o
Iraque, Afeganistão, Líbia e Siria). Quando falo da futura Terceira
Guerra Mundial quero apenas significar que a escala da guerra existente
vai aumentar exponencialmente e que ela atingirá também os países do
Norte global, a condição sine-qua-non para que algo se torne global,
seja uma guerra ou uma pandemia.
O interesse em promover a guerra
Em
todas as guerras há um país ou império particularmente interessado em
promover a guerra. Na Primeira Guerra Mundial, o mais agressivo era o
império alemão; na Segunda Guerra mundial, a Alemanha de Hitler.
Ninguém no Sul global acredita que a Rússia ou a China estejam
interessados em promover a guerra. Os impérios ascendentes preferem
relações soma positiva a relações de soma zero (como, por exemplo, a
guerra). A sua ascensão e incremento da sua influência assentam em
proporcionar vantagens reais aos novos aliados ainda que sujeitas a
condições de subordinação. Por isso, privilegiam a diplomacia e o
multilateralismo. Pode parecer estranho dizer que a Rússia não está
interessada na guerra, quando foi a Rússia que invadiu a Ucrânia em
2022. Todos os activistas da paz, entre os quais sempre me incluí,
condenaram essa invasão embora dissessem desde o início (o que se
confirmou depois) que essa invasão fora provocada pelos EUA com
preparativos que datavam desde o fim da União Soviética em 1991. O
objectivo foi desde o início enfraquecer a Rússia e provocar o seu
desmembramento. Em 1997, o político norte-americano de origem polaca
Zbigniew Brzezinski propunha a divisão da Rússia em três grandes
unidades. Foi a mesma lógica de enfraquecimento pelo desmembramento que
presidiu ao bombardeamento em 1999 da Jugoslávia (ou Sérvia), aliada da
Rússia, tornando assim possível instalar uma enorme base militar dos
EUA-NATO no Kosovo. Nos meios estratégicos tem-se discutido muito a
chamada armadilha afegã (Afghan trap ), ou seja, os meios
utilizados pelos EUA (de novo, na era Brzezinski) para induzir uma
invasão do Afeganistão por parte da União Soviética em dezembro de 1979
com o objectivo de a enfraquecer. Os detalhes não interessam para este
texto, mas com base neles é possível suspeitar que a invasão da Ucrânia
por parte da Rússia foi uma nova versão da Afghan trap , a Ukraine trap ,
com os mesmos propósitos, ainda que o desfecho possa ser muito
diferente. A armadilha ucraniana começou a ser construída logo depois
do fim da União Soviética, com a permanência da NATO depois do fim do
Pacto de Varsóvia e com o projecto de inclusão da Ucrânia na NATO, ao
lado de outros países que servissem de escudo contra a base naval da
Rússia na Crimeia. Além da Turquia, que era membro da NATO desde 1952,
juntaram-se à aliança a Roménia e a Bulgária (2004), faltando apenas a
Geórgia, o que terá de passar primeiro pela estratégia de regime change (a mesma que foi utilizada na Ucrânia em 2014).
Quem
promove a guerra não quer negociações reais de paz, mas encena
sucessivos shows de propostas de paz sem a participação de uma das
partes em guerra para que o ónus da continuação da guerra recaia sobre
esta última e assim se alimente a guerra de propaganda. Foi assim que os
EUA impediram a única genuína negociação de paz entre a Rússia e a
Ucrânia que teve lugar dois meses depois do início da guerra. Para o
efeito, foi facilmente mobilizado o então primeiro ministro do Reino
Unido, Boris Johnson, cujo inconsciente imperial deve continuar
assombrado pela guerra da Crimeia contra a Rússia (1853-56). Em
contraste com esta atitude, a Rússia apresentou desde 2008 cinco
propostas sérias de paz e segurança para a região, e todas elas foram
rejeitadas pelos EUA.
Sabemos
hoje que o grande rival dos EUA não é a Rússia, mas a China. Os três
principais teatros de guerra em que os EUA estão actualmente envolvidos,
Ucrânia, Palestina (e no Medio Oriente, em geral) e Mar da China visam o
mesmo objectivo: isolar a China e impedir o acesso da China à Europa e
às zonas de influência dos EUA. A guerra é sempre o último recurso,
precedido frequentemente de desestabilização de regime change , ou
seja, interferência activa na vida interna dos países-alvo para
provocar mudanças políticas que tornem possível criar distância e
hostilidade em relação à China. Se tivermos em mente que a China é hoje o
país dominante nas alianças internacionais que procuram alguma margem
de independência em relação ao imperialismo norte-americano (BRICS+,
Shanghai Cooperation Organization), é de prever que as democracias que
integram essas alianças sejam alvos de destabilização política, muito
especialmente o Brasil. Aliás, o regime change é uma estratégia desenvolvida desde a Guerra Fria e bem documentada no livro de Lindsey O’Rourke: Covert Regime Change: America's Secret Cold War (Cornell, 2018). De facto, o regime change
é apenas uma das estratégias utilizadas pelo império para interferir na
vida interna dos Estados-súbditos, como bem ilustra o livro do
ex-jornalista do Financial Times , Matt Kennard The Racket, A Rogue Reporter vs The American Empire (nova edição, Bloombury, 2024).Os sinais da preparação para a guerra .
Em
1931 pouca gente acreditava que pudesse haver uma nova guerra quinze
anos depois de ter terminado a anterior. Mas o fascismo e nazismo
cresciam nos países e na consciência dos europeus e com eles a lógica da
guerra como solução radical dos conflitos. Em 1936, começou a Guerra
Civil de Espanha e no fim dela (1939), com o triunfo do fascismo
franquista, a guerra mais ampla surgia como algo inevitável. O mesmo se
diga da II Guerra Sino-Japonesa, travada entre a República da China e o
Império do Japão, de 1937 a 1945.
A
preparação para a guerra começa nas consciências dos cidadãos. De
repente, destacados políticos da “comunidade internacional” (isto é, os
EUA e a União Europeia) começam a sugerir a ideia da inevitabilidade da
guerra para defender os valores da civilização ocidental. Não se
questiona sobre que valores são esses nem em que consiste a ameaça, mas a
solenidade dos discursos sugere que a ameaça é séria e que há que agir
rapidamente. Um ministro alemão afirmou recentemente que dentro de
poucos anos a Europa estaria de novo em guerra. Tudo isto é afirmado com
um tom de normalidade que banaliza os 78 milhões de mortos nas duas
últimas guerras mundiais e os muitos milhões que morreram no conjunto
das guerras que se sucederam em diferentes partes do mundo, e sempre com
a intervenção activa dos EUA e dos seus aliados: Coreia, Vietnam,
Indonésia, América Central, Argélia, Angola, Moçambique, Iraque,
Afeganistão, Líbia, Síria, Iéemen, Sudão e Palestina. Surpreende
igualmente que a ameaça nuclear, que durante décadas foi o grande
dissuasor da guerra pela lembrança de Hiroshima e Nagasaki e pela imensa
catástrofe que significaria, começa hoje a ser encarada como uma
hipótese realista nos meios militares. Annie Jacobsen (a mesma
jornalista que revelou a Operação Paperclip, o programa dos serviços
secretos que trouxeram para os EUA os cientistas Nazis) acaba de
publicar um livro muito revelador do que acabo de escrever: Nuclear War: A Scenario
(Dutton, 2024).A escalada da guerra está em pleno desenvolvimento e é
isso que me leva a alertar os jovens para a possibilidade de a Terceira
Guerra Mundial estar próxima. Dois indicadores justificam o meu alerta.
Por um lado, acaba de ser dada luz verde ao uso de mísseis e outro
armamento, muito dele fornecido por países da NATO, para atingir alvos
em território russo. Isto significa a transformação da guerra em guerra
entre a Rússia e a NATO, ou seja, uma guerra entre potências nucleares.
Por outro lado, o então secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg,
afirmou em Junho que a NATO tinha disponíveis 500.000 mil militares em
alta prontidão para a guerra da Ucrânia. Acresce que em vários países,
incluindo os EUA, se tomam medidas para tornar o serviço militar
obrigatório ou para facilitar a decisão dos jovens de se alistarem nas
Forças Armadas.
A retórica para promover a guerra .
A
retórica para promover a guerra passa por várias fases. Os senhores da
guerra começam sempre por promover a guerra em nome da preservação da
paz. Agravam as situações de conflito, justificando-as como medidas para
travar o seu alastramento. Tomam medidas ofensivas, dizendo que são
defensivas. Esta retórica serve para adormecer as consciências dos
activistas da paz. Quando este objectivo é alcançado em grande medida,
entra numa nova fase: a demonização e perseguição daqueles que
permanecem firmes na luta pela paz. Repentinamente eles são
desacreditados como estando ao serviço do inimigo, financiados pelo
inimigo, traidores da causa patriótica do nobre esforço de guerra para
preservar a paz e a civilização ocidental. O descrédito é seguido pela
perseguição activa. Por outro lado, os lucros exponenciais das empresas
de armamento passam a ser saudados como sinais da pujança da economia,
quando antes eram pejorativamente considerados “os mercadores da morte”
ou “war profiteers”.
No
caso dos EUA, o país que desde a Segunda Guerra Mundial mais insistiu
em fazer residir o seu poder no poder militar, mais que preparação para a
guerra, assistimos a uma política de guerra limitada mas permanente
sustentada por quatro pilares: as sucessivas derrotas nas guerras em que
intervieram (Sudoeste Asiático, e Médio Oriente) são transformadas em
vitórias através de uma massiva guerra de propaganda; a prioridade do
bem-estar das populações é gradualmente substituída pela prioridade da
segurança nacional que, aliás, tem uma dimensão externa e uma dimensão
interna (os EUA têm 25% dos presos do mundo apesar de só terem 5% da
população global); os orçamentos militares crescem exponencialmente e o
seu crescimento nunca é questionado; finalmente, os processos
eleitorais são manipulados para que os promotores do militarismo ganhem
sempre as eleições.
Os interesses em promover a guerra .
A
guerra está ao serviço do capitalismo e do colonialismo sob múltiplas
formas. Entre as principais, podemos distinguir as empresas de produção
de armamento de guerra (a indústria militar dos EUA controla 45% do
comércio global de armamento e os seus lucros subiram exponencialmente
com a guerra da Ucrânia e a guerra de Gaza); o capital financeiro (a
Ucrânia é neste momento o terceiro maior devedor do FMI); o acesso aos
recursos naturais (cerca de 30% dos 33 milhões de hectares da riquíssima
terra arável da Ucrânia, considerada o celeiro da Europa, é já
propriedade de dez grandes empresas agroindustriais estrangeiras). Por
sua vez, ao denunciar o genocídio de Gaza não podemos esquecer o
projecto do Canal Ben Gurion, proposto na década de 1960 e hoje, de
novo, na agenda dos senhores da guerra, um canal alternativo ao Canal do
Suez e administrado por Israel e aliados. Este canal ligaria o golfo de
Aqaba no Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo. Mais longo, mas com mais
capacidade que o canal do Suez e além disso fora do controle egípcio
(que no passado bloqueou várias vezes a passagem de navios de ou para
Israel), este canal poderia ser uma alternativa à nova Rota da Seda da
China. Inicialmente previsto terminar no Mediterrâneo num porto ao norte
da Faixa de Gaza, tem-se ultimamente especulado que a limpeza étnica em
curso podia, entre outras “vantagens” para Israel, limpar o terreno e
encurtar a extensão do canal, atravessando o que é hoje a Faixa de
Gaza.Dirijo-me aos jovens porque serão os jovens a carne para canhão da
Terceira Guerra Mundial, por mais sofisticada que seja a alta
tecnologia, o uso de cães robots e a Inteligência Artificial que forem
utilizados. Lendo o diário de guerra de Curzio Malaparte, Kaputt ,
na frente alemã do leste e do norte na Segunda Guerra Mundial, uma das
coisas que mais me impressionou foi a descrição dos exuberante
banquetes dos generais e dos políticos aliados de Hitler, com as mais
exóticas iguarias, os melhores vinhos e as mais elegantes mulheres,
enquanto na frente da batalha os jovens alemães e seus inimigos morriam
aos milhares, desertavam ou enlouqueciam, divagando pelas florestas sem
destino nem futuro ou apenas esperando por uma bala misericordiosa.Para
prevenir a eclosão da Terceira Guerra Mundial e dar esperança a
quem tem medo dela é necessário incutir medo em quem a está a promover. O
movimento pela paz, agora renovado pela luta contra o genocídio dos
palestinianos de Gaza, é um sinal de esperança, mas não basta. A guerra
resulta sempre de uma massiva manipulação do medo e da criação de
condições de vulnerabilidade, de carência, de precariedade, de erosão de
direitos sociais que atingem populações cada vez mais vastas. E resulta
sobretudo da fragmentação das lutas que resistem a tudo isso. Quanto
maior for a fragmentação mais invisível será o poder e a dominação e
maior será o risco de as vítimas se insurgirem contra outras vítimas
ainda mais vitimizadas, de os condenados da terra combaterem outros
grupos ainda mais condenados da terra. A articulação das lutas sociais
contra as três principais dominações modernas – capitalismo,
colonialismo e hetero-patriarcado – é assim a condição necessária para a
reconstrução de alternativas de paz, a paz que desta vez é pedida tanto
pelos seres humanos como pela natureza. A condição suficiente é
refundarmos as políticas de conhecimento e de educação de modo a que
elas revelem o que designo por sociologia das ausências, o conjunto de
alternativas anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais que
proliferam no mundo.
Não carecemos de alternativas, carecemos de um pensamento alternativo de alternativas.
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