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– ON 23/08/2016CATEGORIAS: CAPA, CRISE FINANCEIRA, MUNDO
Saídas para evitar
um colapso civilizatório são evidentes – mas nunca estiveram tão bloqueadas. A
questão crucial: teremos tempo para chegar a um Plano B?
Por Ladislau
Dowbor | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Banksy
Difícil deixar de
pensar que estamos vivendo num circo gigante. Quando sentamos no sofá depois de
um dia bizarro de trabalho e horas de transporte, as novelas surreais na TV nos
dão uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados
nas fronteiras, os problemas das grandes finanças, os últimos gols de Neimar.
Ah sim, e quem, depois da Hungria, a Grécia, a Polônia e o Reino Unido está
ameaçando deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais superiores.
É um jogo e tanto.
Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a grande divisão entre os donos
do jogo e os espectadores: 62 bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais
pobres da população mundial. Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo
depende de que papel você desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que
habitam o condomínio de Alphaville estão murados em segurança, enquanto os
pobres que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa
cortar a grama e entregar as compras.
De acordo com o relatório
global da WWF sobre a destruição da vida selvagem, 52% das populações de
animais não-domesticados desapareceram, durante os 40 anos que vão de 1970 a
2010. Muitas fontes de água estão contaminadas ou secando. Os oceanos estão
gritando por socorro, o ar condicionado prospera. As florestas estão sendo
derrubadas na Indonésia, que substituiu a Amazônia como a região número um do
mundo em desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de carne barata
e da beleza do mogno.
A Rede de Justiça
Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares – comparados a um PIB
mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em paraísos fiscais em 2012. O Banco
de Compensações Internacionais da Basileia mostra que o mercado de derivativos,
o sistema especulativo das principais commodities, alcançou 630
trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços das matérias-primas
econômicas básicas. O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e
não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16 corporações
basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou Jean Ziegler
em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo, estamos num ambiente
vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição para os nossos tempos:
vivemos une époque formidable!
Fizemos um trabalho
perfeito em 2015: a avaliação global sobre como financiar o desenvolvimento em
Adis Abeba, as metas do desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e a
cúpula sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram
claramente expostos. Nossa equação global é suficientemente simples para ser
executada: os trilhões em especulação financeira precisam ser redirecionados
para financiar inclusão social e para promover a mudança de paradigma
tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de
Wall Street que traçaram o código moral para este esporte: Ganância é
Ótima!
Afogando em números
Estamos nos
afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo a
respeito dos news four biliion – referindo-se aos quatro
bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da globalização” –
uma hábil referência aos pobres. Temos também os bilhões que vivem com menos de
1,25 dólar por dia. A FAO nos mostra em detalhes onde estão localizadas as 800
milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões
de crianças que morrem anualmente em razão do acesso insuficiente a comida e
água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem
silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são desvalidos.
As coisas estão
melhorando, com certeza, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas a
mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente – e este número está crescendo.
Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de fato o que significa um bilhão:
quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2 bilhões. Não
falo da história antiga, falo do meu pai. E já que não é da nossa experiência
diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se você
investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de juros ao
ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso, então você
alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda mais fabulosamente rico
e alimentando mais operadores financeiros.
Investir em
produtos financeiros paga mais do que investir na produção de bens e serviços –
como fizeram os bons, velhos e úteis capitalistas – de modo que não tem como o
acesso ao dinheiro ficar estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é
naturalmente atraído para onde ele mais se multiplica, é parte da sua natureza,
e da natureza dos bancos. Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo,
investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos
ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de finalmente pensar
na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.
Um suborno global
Muita gente percebe
que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando
pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis
para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão
fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown
fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”],
mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz,
Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema[“Next
System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus
próprios limites.
Joseph Stiglitz e
um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade
Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos econômicos”. De acordo com sua
visão, “igualdade e desempenho econômico constituem na realidade forças
complementares, e não opostas”. A França criou seu movimento de Alternativas
Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino Unido; e estudantes da
economia tradicional estão boicotando seus estudos em Harvard e outras
universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]
E os pobres estão
claramente fartos desse jogo. Sobram muito poucos camponeses isolados e
ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte, seja ela qual for. As pessoas
pobres de todo o mundo estão crescentemente conscientes de que poderiam ter uma
boa escola para seus filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além
disso veem na TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras
têm aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.
Como podemos
esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de Mediterrâneo, se 70% dos
empregos são informais e o desemprego da juventude está acima de 40%? E eles
estão assistindo na TV o lazer e a prosperidade existentes logo ali, cruzando o
mar, em Nice? A Europa bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu
alcance econômico. Nada disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é
explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os desafios
estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos mais prósperos. E,
felizmente, os pobres não são mais quem eram.
Cultura e
convivialidade
Sempre tive uma
visão muito mais ampla de cultura do que o tradicional “Ach! disse Bach”. Penso
que ela inclui desfrutar de alegria com os outros, enquanto se constrói ou se
escreve alguma coisa, ou simplesmente se brinca por aí. Convivialidade.
Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os
parques e praças ficavam cheios de gente e havia atividades culturais para todo
lado.
Ao ar livre, com um
monte de gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, uma trupe de
teatro fazia uma paródia do modo como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita
diversão. Logo adiante, em outras partes do parque Lazienki, vários grupos
tocavam jazz ou música clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou
assentos improvisados, as crianças brincando por perto.
No Brasil, com
Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos
de Cultura. Isso significou que qualquer grupo de jovens que desejassem formar
uma banda poderiam solicitar apoio, receber instrumentos musicais ou o que
fosse necessário, e organizar shows ou produzir online. Milhares de grupos
surgiram – estimular a criatividade requer não mais que um pequeno empurrão,
parece que os jovens trazem isso na própria pele.
A política foi
fortemente atacada pela indústria da música, sob o argumento de que estávamos
tirando o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura,
querem indústria de entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vindo
abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está florescendo novamente. Os negócios
têm uma capacidade impressionante para ser estraga-prazeres.
O carnaval de 2016
em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o carnaval de rua e a
criatividade improvisada estão de volta às ruas, depois de ter sido domados e
disciplinados, encarecidos pela comunicação magnata da Rede Globo. As pessoas
saíram improvisando centenas de eventos pela cidade, era de novo um caos
popular, como nunca deixou de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais
pobres do país. O entretenimento do carnaval está lá, é claro, e os turistas
pagam para sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira
brincadeira está em outro lugar, onde o direito de todo mundo dançar e cantar
foi novamente conquistado.
Um caso de consumo
Eu costumava jogar
futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional
estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida
inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com
bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas
um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras
fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma
cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se
transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós
próprios criamos.
Em Toronto, fiquei
pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa,
porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto.
Aparentemente, por certo nos esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos.
Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento penetrou
em cada moradia do mundo, em todo computador, todo telefone celular, sala de
espera, ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranho
e gigante bate-papo global.
Esse bate-papo
global, com evidentes exceções, é financiado pela publicidade. A enorme
indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de
corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na
transformação das pessoas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos,
docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música,
pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa
piscina com nossas crianças.
Um punhado de
otários consumistas
Que monte de
idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos de dois ou três quartos,
sofá, TV, computador e telefone celular, assistindo o que outras pessoas fazem.
Quem precisa de uma
família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de
3,1 pessoas por moradia. A Europa está na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA
apenas 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A
obesidade está prosperando, graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as
guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao
consumismo. E você pode comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido
seu coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já
foi enviada ao seu médico.
O que tudo isso
significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas vidas.
Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida digna
de ser vivida. Leio livros, e tiro um cochilo depois do almoço, como todo ser
humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os
únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse terrível
negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB –
muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida.
E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição
e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Considerando o tipo de
vida que estamos construindo, eles talvez estejam certos.
Necessitamos de um choque de
realidade. A desventura da terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas
não vai resolver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser
se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir
aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força
política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que
estejam efetivamente informadas sobre nossos desafios estruturais). Enquanto
isso, as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar para os analfabetos) nos
mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor
destas linhas. Sursum corda.
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