Peguei na Carta Maior. A tradução também foi republicada pelo Diário do Centro do Mundo e pelo Viomundo.
No último dia 25 de
janeiro, Noam Chomsky participou do Fórum Social Mundial em atividade
organizada por Carta Maior e Fórum 21. Segue abaixo a tradução da fala
de Chomsky, realizada por César Locatelli. O vídeo pode ser conferido na
íntegra em inglês ou em português (com tradução simultânea de Sérgio Ferreira) na TV Carta Maior.
A sociedade global pós-pandemia
por Noam Chomsky
A
última vez que participei de reuniões do Fórum Social Mundial (FSM) no
Brasil foi há 20 anos - dias maravilhosos de exuberância, vitalidade,
expectativa, interação entusiasmada dos participantes que se estendiam
da Via Campesina aos centros urbanos, unidos na crença de que um mundo
melhor é possível e comprometidos em criá-lo. Eles rejeitavam firmemente
a famosa máxima de Margaret Thatcher: "There is no alternative"
[Não há alternativa]. Não há alternativa ao regime neoliberal que ela e
Ronald Reagan estavam tentando impor ao mundo. O slogan do FSM era o
contrário: existe uma alternativa e nós vamos criá-la.
Não é exatamente esse o clima de hoje.
A
empolgação no FSM não era mal colocada. O Brasil estava prestes a
entrar em sua "década de ouro", expressão usada pelo Banco Mundial em
sua avaliação retrospectiva dos anos Lula, revisando as muitas
realizações domésticas do governo enquanto o Brasil também se tornava
talvez o país mais respeitado do mundo e uma voz eloquente para o Sul
Global sob a liderança do Presidente Lula e de seu Chanceler Celso
Amorim.
Novamente, não é exatamente esse o clima de hoje.
A
acomodação do governo Lula às demandas do capital privado
internacional, seja o que for que se pense a respeito, não foi
suficiente para aplacar aqueles a quem Adam Smith chamou de “os senhores
da humanidade”. A reação veio logo, não só no Brasil.
Não há
necessidade de revisar os acontecimentos desde então ou de abordar o
modo como o Brasil é visto agora. Isso talvez seja simbolizado pela
ajuda da Venezuela em fornecer oxigênio para aliviar a catástrofe em
Manaus - agora se espalhando por outro lugar em um país famoso por seu
alto nível de pesquisas e realizações nas ciências da saúde e por um
recorde estelar de eficiência da vacinação, anteriores ao atual assalto à
sociedade.
Para adicionar uma comparação pessoal, minha esposa
Valeria e eu, morando no Arizona, temos o privilégio incomum de ter
obtido máscaras de alta qualidade, graças à generosidade de um amigo de
Taiwan. Enquanto isso, o Arizona acaba de ganhar o campeonato mundial de
infecções per capita de Covid.
O Arizona está um pouco à frente na competição para ser o pior do mundo. Enquanto escrevo, a manchete principal do New York Times diz: “Nova situação pandêmica: os hospitais estão ficando sem vacinas”, referindo-se a todo o país.
A
história continua para relatar que “as autoridades de saúde dos EUA
estão frustradas porque as doses disponíveis não são utilizadas enquanto
o vírus mata milhares de pessoas todos os dias. Milhares de vacinações
agendadas foram canceladas e as autoridades locais, com frequência, não
têm certeza sobre quais suprimentos elas terão em mãos.” A imprensa
local acrescenta que os hospitais não têm mais leitos e que pessoas
morrem nos corredores. O quadro é o mesmo em qualquer lugar do país mais
rico do mundo, com vantagens incomparáveis.
Na mesma primeira
página do NYT, ao lado do relato da catástrofe nos EUA, está uma
história intitulada “Um ano após o bloqueio: isso é Wuhan hoje.” Ela
retrata pessoas se deleitando em "um mundo pós-pandêmico, onde o alívio
de rostos sem máscaras, encontros alegres e viagens diárias esconde os
abalos emocionais".
O número de mortes diárias da Covid 19 nos
EUA é cerca de três a quatro vezes maior que o total de mortos na China
durante todo o ano da pandemia, em equivalente per capita, a medida
correta.
Não podemos ser muito superficiais ao tirar lições do
que aconteceu em todo o mundo neste ano terrível, mas seria insensato
ignorar a história. É instrutivo em todo o mundo. Meu estado natal, a
Pensilvânia, tem quase a mesma população de Cuba e 100 vezes o número de
mortes de Covid: 20.000 em comparação com 200. As mortes por Covid na
cidade de São Paulo têm uma taxa semelhante à da Pensilvânia em
comparação com Cuba (100 vezes maior).
É comum atribuir o sucesso
da China, em contraste com a catástrofe dos EUA, ao rígido controle
autoritário da China sobre a população. A conclusão não é convincente.
Taiwan é tão livre e democrática quanto os EUA. Sua população de 24
milhões registrou sete mortes. Além disso, observadores ocidentais na
China relatam que a aceitação popular dos procedimentos muito rígidos
que virtualmente eliminaram a doença parece ter sido amplamente
voluntária e solidária.
Uma tentativa de revisão em todo o mundo
parece indicar que os principais fatores para domar a catástrofe têm
sido um governo eficaz agindo para o bem-estar de sua população,
combinado com uma mentalidade coletivista geral e espírito de
cooperação: estamos todos juntos nisso, para o bem comum.
É útil
dar uma olhada mais de perto nos piores desempenhos. Vou deixar o Brasil
de lado - um caso por demais deprimente para se discutir. Os mais
instrutivos são os Estados Unidos e seu aliado britânico mais próximo,
ambos com registros terríveis, destacados por seu privilégio incomum e
desenvolvimento econômico. Eles também são incomuns em outro aspecto.
Eles são o lar dos programas neoliberais que varreram o mundo nos
últimos 40 anos, dirigidos por Reagan e Thatcher, e, em seguida, por
seus sucessores. Essas doutrinas contribuíram poderosamente para criar e
intensificar a crise de Covid. Os ricos e poderosos beneficiários dos
programas neoliberais estão agora trabalhando duro para garantir que
irão formatar a sociedade pós-pandemia. As doutrinas e suas
consequências devem ser examinadas de perto. Terei que me limitar a
apenas alguns comentários aqui.
Um impulso central do
neoliberalismo é desmantelar a sociedade civil e diminuir a preocupação
do governo com o bem-estar do público em geral. Como Thatcher proclamou,
“não existe sociedade”, apenas indivíduos que enfrentam as forças do
Sagrado Mercado sozinhos e, se não sobreviverem às devastações, azar.
Para citar um dos famosos pronunciamentos do presidente do Brasil: “e
daí?”
Para ser preciso, sob a doutrina neoliberal, apenas alguns
são lançados no mercado para sobreviver de alguma forma. Outros têm o
direito de ser mimados pelo Estado - ou seja, por seus infelizes
cidadãos. Nunca devemos esquecer o ditado de Balzac, extraído da
sabedoria popular tradicional, que “leis são teias de aranha pelas quais
as grandes moscas passam e as pequenas são pegas”. Os programas
neoliberais foram cuidadosamente elaborados para garantir que esses
princípios prevalecessem, com subsídios maciços e resgates para as
grandes moscas. Temos testemunhado isso repetidamente desde os primeiros
dias do ataque neoliberal.
Os pensamentos de Thatcher não eram
originais. Sem querer, ela estava parafraseando Karl Marx. Ele condenou
os governantes autocráticos da Europa por tentarem transformar a
sociedade em “um saco de batatas”, indivíduos isolados, atomizados,
lutando sozinhos, sem sociedade civil, sem organizações populares de
defesa contra o poder concentrado.
Reagan e Thatcher seguiram o
roteiro com cuidado. Seus primeiros atos foram destruir os sindicatos,
no caso de Reagan, chegando a trazer trabalhadores substitutos
permanentes, prática logo adotada pelas empresas privadas. Os golpes do
martelo contra a organização do trabalho continuaram sob seus
sucessores. Estudos recentes de economistas proeminentes, como
recentemente Lawrence Summers, atribuem a espetacular desigualdade
criada durante os anos neoliberais principalmente à destruição dos
sindicatos, privando os trabalhadores de qualquer meio de autodefesa
contra a incessante luta de classes.
As doutrinas do ataque de 40
anos à sociedade remontam às origens do neoliberalismo na Viena do
período entreguerras. O reverenciado pai fundador do movimento, Ludwig
von Mises, mal pôde conter sua euforia quando o governo protofascista
esmagou violentamente o vibrante movimento operário austríaco e elogiou
efusivamente o fascismo de Mussolini por ter “salvo a civilização
europeia. O mérito que o fascismo conquistou para si viverá eternamente
na história”, escreveu Mises em seu livro clássico “Liberalismo”, anos
depois que os camisas negras expulsaram violentamente os sindicatos e o
pensamento independente para seus devidos lugares.
As luzes
principais do neoliberalismo ficaram ainda mais entusiasmadas com a
ditadura assassina de Pinochet. Por razões de princípio. Medidas severas
devem ser tomadas para salvaguardar uma “economia sólida”, garantindo
que não haverá restrições populares sobre a liberdade dos muito ricos e
do setor corporativo de expandir sua riqueza e poder.
O ideal é a
economia de “privatizar tudo”, para citar o atual Ministro da Economia
do Brasil, muito elogiado pelas finanças internacionais que desejam
tirar os recursos do Brasil, de seu povo, sob a bandeira neoliberal.
Essas
são considerações a ter em mente quando se pensa em um mundo
pós-pandêmico. Elas revelam que não há conflito entre o apelo à
liberdade, de certo tipo, e as duras medidas de repressão e controle.
Além disso, como mencionei, existem forças poderosas trabalhando
arduamente agora para garantir que o mundo pós-pandêmico manterá as
principais armas da luta de classes incorporadas à doutrina neoliberal.
Mais uma razão para examinar os princípios básicos e suas consequências.
As
ideias essenciais são capturadas no discurso inaugural de Reagan: “o
governo é o problema, não a solução”. Isso não significa que as decisões
em nível nacional desapareçam. Em vez disso, elas são transferidas para
as mãos dos “senhores da humanidade”, as grandes megacorporações e as
instituições financeiras que explodiram em escala durante os anos
neoliberais. Sua responsabilidade havia sido explicada pelos economistas
responsáveis, principalmente Milton Friedman. A única responsabilidade
das empresas é enriquecerem-se.
Não é difícil prever as
consequências de entregar a tomada de decisões a instituições tirânicas,
cujo único objetivo é o enriquecimento. Algumas são reveladas em um
estudo recente da Rand Corporation, uma instituição quase-governamental.
Ela estima que a transferência de riqueza, dos 90% de renda mais baixa
da população para os muito ricos - principalmente a fração superior de
1% -, tenha sido de US$ 47 trilhões. Não é pouco, mas uma subestimação
muito séria. Não leva em consideração a abertura de Reagan a
manipulações financeiras antes proibidas por lei, como os paraísos
fiscais, que acrescentam outras dezenas de trilhões de dólares ao roubo
em massa dos trabalhadores e da classe média.
Os resultados estão
diante de nossos olhos, onde quer que a marreta tenha atingido. Nos
Estados Unidos, os salários reais dos trabalhadores do sexo masculino
diminuíram durante o violento ataque de 40 anos, junto com benefícios e,
no mínimo, segurança limitada. A democracia política, sempre
profundamente falha, diminuiu ainda mais à medida que está cada vez mais
subordinada à riqueza privada e ao poder corporativo. Os estudos
recentes mais sofisticados mostram que 90% da população literalmente não
está representada; seus próprios representantes estão ouvindo outras
vozes, as dos financiadores de sua próxima campanha. Enquanto isso, as
equipes de seus gabinetes estão sobrecarregadas com enxames de lobistas
que praticamente redigem leis.
Sem precisar prosseguir, pode-se
chegar a entender algumas das raízes da raiva, ressentimento, desprezo
pelas instituições que se espalharam por grande parte do mundo,
facilmente capturadas por demagogos que podem fingir defender as massas
despossuídas enquanto as apunhalam pelas costas, transferindo a culpa
por seu mal-estar para alvos vulneráveis: pessoas não-brancas,
imigrantes, o perigo amarelo, quaisquer venenos que corram logo abaixo
da superfície da vida social.
Uma visão de futuro, agora
perseguida ativamente pelos setores dominantes, é a perpetuação dessa
monstruosidade, de formas ainda mais duras: vigilância mais intensa,
controle, atomização e precariedade para a grande massa da população.
Outra
visão é a que vem sendo promovida pelo Fórum Social Mundial. Uma visão
de um mundo no qual as pessoas assumam o controle de seu próprio destino
em comunidades e locais de trabalho autônomos, livrando-se de seus
senhores, da dominação e das instituições repressivas. Um mundo que
mantenha alto o ideal liberal clássico, há muito reprimido, de que
devemos substituir os grilhões sociais por laços sociais. Um mundo que
incorpore uma cultura de solidariedade e ajuda mútua, de participação
direta em todas as esferas por cidadãos informados e engajados que se
dediquem ao bem comum.
Essa visão não é utópica. Ela pode ser
realizada. Além disso, ela tem que ser realizada de alguma forma se for
para o experimento humano sobre-existir. Não é segredo que vivemos um
momento marcante da história da humanidade, uma confluência de crises de
extrema gravidade. A menos que os desafios sejam vencidos, e em breve,
será perda de tempo contemplar os contornos de uma sociedade
pós-pandêmica, porque não haverá sociedade nenhuma. Isso não é exagero.
A
crise menos severa de todas é essa que, compreensivelmente, está agora
atraindo a atenção e a preocupação: a pandemia. Mais cedo ou mais tarde,
a pandemia será contida, a um custo terrível e desnecessário, como
podemos ver nas sociedades, ricas e pobres, que conseguiram lidar com
ela com eficácia. Mas a pandemia será superada e, se a história servir
de guia, logo será esquecida.
Pense na chamada gripe espanhola há
um século. O número de mortos foi colossal. Estima-se em cerca de 50
milhões de pessoas. Considerando o tamanho da população, isso seria o
equivalente a 300 milhões de pessoas hoje. Um desastre inimaginável -
que, no entanto, logo foi esquecido. Eu nasci alguns anos depois que a
crise abrandou. Nunca ouvi falar dela quando era criança. Aprendi sobre
isso nos livros de história.
Se revivermos essa experiência,
teremos sérios problemas. Outras epidemias de coronavírus provavelmente
ocorrerão e podem ser mais graves do que esta, devido à destruição do
habitat e ao aquecimento global. Além disso, até agora tivemos sorte.
Epidemias recentes de coronavírus foram altamente contagiosas e não
muito letais, como a atual, ou altamente letais, mas não muito
contagiosas, como o Ebola. Podemos não ter essa sorte da próxima vez.
Essas criaturas astutas têm muitos truques nas mangas.
Nos
últimos anos, os cientistas nos disseram claramente o que devia ser
feito. Não foi feito. As enormes e super-ricas instituições
farmacêuticas não se interessaram, graças à lógica capitalista. Não é
lucrativo se preparar para um desastre que ocorrerá daqui a alguns anos.
O governo dos Estados Unidos e alguns outros têm laboratórios
maravilhosos, que de fato fornecem muitas das descobertas básicas para
medicamentos e vacinas que são comercializados com fins lucrativos em
nosso sistema econômico de subsídio público e lucro privado. Mas eles
foram neutralizados pela variante neoliberal destrutiva do capitalismo: o
governo deve se manter fora dos negócios da empresa privada - exceto, é
claro, quando elas podem se beneficiar da generosidade do contribuinte.
O desastre foi então agravado pela incompetência e, em alguns casos,
pela malevolência da liderança.
Estamos ouvindo os mesmos apelos
de cientistas hoje, os mesmos avisos e conselhos sobre o que deve ser
feito para evitar desastres. Mero conhecimento não é suficiente. Ele
precisa ser colocado em uso.
A pandemia em curso e as que estão
por vir constituem uma das crises atuais. Uma crise muito mais séria é o
aquecimento do globo. A urgência do desenvolvimento da crise foi
enfatizada mais uma vez há algumas semanas, quando a Organização
Meteorológica Mundial publicou seu Relatório anual sobre o estado do
meio ambiente global. O Relatório adverte que em nosso curso atual,
podemos em breve atingir pontos de inflexão irreversíveis. Em breve
poderemos alcançar o que eles chamam de “Hothouse Earth” (Terra
Estufa), estabilizando-se a 4-5º Celsius acima dos níveis
pré-industriais, bem além do nível reconhecido como cataclísmico. O
estudo conclui que é “mais urgente do que nunca prosseguir com a
mitigação ... A única solução é livrar-se dos combustíveis fósseis na
produção de energia, indústria e transporte”. O IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática) marca, para muito breve, a
data para atingir esse resultado, em meados do século.
Assim como
para a pandemia, sabemos como atingir esse objetivo. Existem meios
viáveis que foram descritos em grande detalhe e estão em parte sendo
implementados, mas apenas em parte. Esses esforços devem ser rapidamente
acelerados, e logo, ou o jogo termina. Cientistas respeitados nos dizem
em termos inequívocos que devemos “entrar em pânico agora”. Eles não
estão exagerando.
Outra crise de escala comparável é a crescente
ameaça de armas nucleares, que recebe muito pouca atenção fora dos
círculos especializados, onde a crise é reconhecida como extremamente
grave. Aqui, a solução é óbvia: livrar a Terra dessas monstruosidades.
Passos importantes foram dados. Na sexta-feira passada, o Tratado da ONU
sobre a Proibição de Armas Nucleares entrou em vigor, apoiado por 122
nações - embora, lamentavelmente, nenhuma das potências nucleares. Isso
tem de mudar. Mesmo aquém disso, existem ações muito significativas que
podem ser implementadas, mas que não há tempo para serem discutidas
aqui.
Todas essas crises são internacionais. Elas não conhecem
fronteiras. Elas devem ser confrontadas com a solidariedade
internacional. Nesse caso, as palavras de Margaret Thatcher estão
certas. Não há alternativa.
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