Observação: O que Piketty diz sobre o capital que alimentou o crescimento industrial do nordeste dos EUA não é confirmado por Edward Baptist em seu livro The Half has never been told, que diz que esse veio da reciclagem da acumulação primitiva promovida pelo negócio das plantations do Sul. Em cima da população escravizada.
Thomas Piketty
Diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI.
Para entender o que aconteceu no Capitólio, é urgente voltar à história
"Emblema do Sul escravagista durante a guerra civil de 1861-1865, a bandeira confederada empunhada há poucos dias por desordeiros no seio do Parlamento Federal não estava lá por acaso. Remete a conflitos muito graves que devem ser enfrentados", escreve o economista francês Thomas Piketty
Por Thomas Piketty
Após a invasão do Capitólio, o mundo perplexo se pergunta como o país
que há muito se apresenta como o líder do mundo "livre" pode decair
tanto. Para entender o que aconteceu, é urgente sair dos mitos e da
idolatria e voltar à história. Na realidade, a república estadounidense é
atravessada desde o início por fragilidades, violências e desigualdades
consideráveis.
Emblema do Sul escravagista durante a guerra civil de 1861-1865, a
bandeira confederada empunhada há poucos dias por desordeiros no seio do
Parlamento Federal não estava lá por acaso. Remete a conflitos muito
graves que devem ser enfrentados.
O sistema escravista desempenhou um papel central no desenvolvimento dos
Estados Unidos, assim como no do capitalismo industrial ocidental como
um todo. Dos quinze presidentes que se sucederam até a eleição de
Lincoln em 1860, nada menos que onze eram proprietários de escravos,
incluindo Washington e Jefferson, ambos nativos da Virgínia, que em 1790
tinha 750.000 habitantes (com 40 % de escravos), ou o equivalente à
população combinada dos dois estados mais populosos do norte
(Pensilvânia e Massachusetts).
Após a revolta de 1791 em São Domingos (joia colonial francesa e a
primeira concentração de escravos no mundo atlântico da época [Haiti,
desde 1804]), o Sul dos Estados Unidos tornou-se o coração mundial da
economia de plantation, experimentando expansão acelerada. O
número de escravos quadruplica entre 1800 e 1860; a produção de algodão
aumenta dez vezes e alimenta a indústria têxtil europeia. Mas o Nordeste
e especialmente o Centro-Oeste (de onde Lincoln é) desenvolvem-se ainda
mais rapidamente. Apoiam-se-se em outro modelo econômico, baseado na
colonização de terras do Oeste e no trabalho livre, e querem impedir a
expansão da escravidão nos novos territórios.
600.000 mortos
Após sua vitória em 1860, o republicano Lincoln estava disposto a
negociar um fim pacífico e gradual para os escravistas, com indenização
para os proprietários, como aconteceu por ocasião das abolições
britânica e francesa de 1833 e 1848. Mas os sulistas preferiram jogar a
carta da secessão, como parte dos colonos brancos da África do Sul e da
Argélia no século XX, na tentativa de preservar seu mundo. Os nortistas
recusaram a separação e a guerra começou em 1861.
Quatro anos depois, e após 600.000 mortes (tanto quanto o total
acumulado de todos os outros conflitos nos o quais o país participou,
incluindo as guerras mundiais, Coréia, Vietnã e Iraque), o conflito
termina com a rendição dos exércitos confederados em maio de 1865.
Mas os nortistas não acham que os negros estão prontos para se tornarem
cidadãos, muito menos proprietários, e deixam os brancos retomarem o
controle do Sul e imporem um sistema estrito de segregação racial, que
lhes permitirá manter o poder por mais um século, até 1965.
Nesse ínterim, os Estados Unidos se tornaram a primeira potência militar
do planeta e conseguiram por fim ao ciclo de autodestruição
nacionalista e genocida entre as potências coloniais europeias, entre
1914 e 1945. Os democratas, que eram o partido da escravidão,
conseguiram se tornar o do New Deal. Impulsionados pela concorrência
comunista e pela mobilização afro-americana, eles concederam direitos
civis, sem reparações.
Uma grande reversão da aliança
Mas, desde 1968 o republicano Nixon recupera o voto branco sulista
ao denunciar a generosidade social que os democratas concederiam aos
negros como clientelismo (um pouco como a direita francesa suspeita que a
esquerda é islâmica e esquerdista quando menciona a discriminação
antimuçulmana).
Ocorre então uma grande reversão da aliança, amplificada por Reagan em
1980 e depois por Trump em 2016. Desde 1964, os republicanos conquistam
uma clara maioria do voto branco em todas as eleições presidenciais,
enquanto os democratas sempre reunem 90 % do voto negro e 60% -70% do
voto latino.
Enquanto isso, a participação dos brancos no eleitorado diminuiu
constantemente, caindo de 89% em 1972 para 70% em 2016 e 67% em 2020 (em
comparação com 12% para negros e 21% para latinos e outras minorias), o
que alimenta a radicalização dos trumpistas no Capitólio e ameaça
afundar a República dos Estados Unidos em um conflito étnico-racial sem
saída.
O que concluir de tudo isso? De acordo com uma leitura pessimista,
apoiada por boa parte dos grupos mais diplomados que votam doravante nos
democratas - o que permite que os republicanos agora se apresentem como
anti-elites, mesmo que continuem a mobilizar grande parte da elite
empresarial, já que não conseguem seduzir a elite intelectual - os
eleitores republicanos seriam "deploráveis" e irrecuperáveis. As
administrações democráticas teriam feito de tudo para melhorar a
situação dos mais desfavorecidos, mas o racismo e a agressividade das
classes populares brancas os impediriam de reconhecê-lo.
O problema é que essa visão deixa pouco espaço para uma solução
democrática. Uma abordagem mais otimista da natureza humana pode ser a
seguinte. Durante séculos, pessoas de diferentes origens étnico-raciais
viveram sem contato umas com as outras a não ser por meio de dominações
militares e coloniais. O fato delas recentemente conviverem dentro das
mesmas comunidades políticas constitui um importante progresso
civilizacional. Mas continua a gerar preconceitos e explorações que só
podem ser superados com mais democracia e igualdade.
Se os democratas querem reconquistar o voto popular, independentemente
de sua origem, então mais deve ser feito em termos de justiça social e
redistribuição. A estrada será longa e árdua. Mais uma razão para
começar agora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário