Por Tati Bernardi
Um terço
Um fenômeno a ser estudado por nossos netos e
bisnetos
Nossos filhos, netos, bisnetos, tataranetos, um dia
estudarão o que os livros de história deverão chamar de "fenômeno do um
terço". Foi no Brasil, na década de 20 do século 21. Um homem que dormia
sob a bênção de um ilustre torturador, que ensinava crianças a fazer gesto de
arma com as mãos, que dizia a uma mulher que
ela não merecia nem ser estuprada. Prevejo
esse futuro progressista e democrático e suas crianças e adolescentes
boquiabertos: "E por que ninguém tirava ele de lá, professor?". E os
professores, talvez filhos ou netos ou bisnetos desse período de feiura
hedionda, quiçá sobreviventes diretos dessa fase obscura, responderão apenas:
"Por causa do um terço".
Adolescentes em grupo de estudo de escola estadual em São Paulo - Bruno
Santos - 15.ago.2018/Folhapress
"História do Fascismo no Brasil - A era
Bolsonaro", capítulo "Coronavírus": "E ele acabou por dizimar dezenas de milhares de pessoas
estimulando-as a sair ao encontro da própria morte". "Mas, professor,
nem assim derrubaram essa desgraça do poder?" "Não, porque, conforme
expliquei na aula passada, e foi tema da última Fuvest, naquele período o
chamado 'fenômeno do um terço' conseguiu entrar pra história, com o Congresso e
com tudo."
Claro que o país se perguntava: o que ainda falta
acontecer? O que pode ser pior do que tudo de pior que uma pessoa pode pensar,
falar, fazer e ser? Perto desse homem, as cagadas econômicas da Dilma e os
vexames de playboy do Collor talvez fossem vendidos na forma de "livro de
história para colorir" em bancas de jornal. As pessoas não conseguiam
dormir: e se hoje ele saísse defecando em nossas cabeças? E se hoje ele
estimulasse o espancamento de gays e mulheres? E se ele disparasse uma
metralhadora em um filhote de labrador na porta de um supermercado? E se ele
escarrasse coronavírus em velhos, doentes e favelados? E se ele derrubasse a escalada no Jornal
Nacional apenas com o poder de sua mente macabra? E se ele
mudasse a Constituição inteira, ou a rasgasse, ou tatuasse uma nova
Constituição em seu peito, escrevendo apenas SOU EU, PORRA. E se ele
estrangulasse até a morte uma grávida da periferia que não quer ser mãe? E se
ele preferisse as lojas Havan mais saudáveis do que seres humanos? Haveria a
comoção necessária? Espera, mas ele já não faz tudo isso?
Contudo, o "fenômeno do um terço" seguia
inabalável, chamando barbárie de "atitude". Chamando assassinato de
"livre comércio". Chamando fascismo de "direita". Chamando
falta de caráter de "é o jeitão dele". Chamando a mais triste
descrença nos alicerces do país de "fé em Deus". Chamando o que tem
de mais terrível e podre e vil em nossos instintos primitivos de "contra a velha
política". Chamando um fetiche sexual bem sujão e mal
resolvido de "conservadorismo". Chamando crime organizado de
"tudo pelos filhos".
Chamando ditadura e tortura de "não tem
negociação". Chamando não tem negociação de "pelo meu povo".
Chamando psicopatia com perversão de "leite condensado no pão".
Chamando uma enorme desculpa pra ser filho da puta de "raiva do PT".
Chamando o fim da humanidade de "recomeço".
"Mas, professor, eles, o 'um terço', eram
burros, detentores de muita ruindade no coração ou só estavam tristes e
perdidos demais?" Eu queria poder ouvir a resposta.
Nós, os "66,6" (o número da besta: quem
diria!), estamos gritando "Fora!!!", enquanto eles, os
"33,3", enfiam um estetoscópio no nosso ânus e ordenam: "Fale
33, fale 33". Eu só espero ter pulmão amanhã e depois de amanhã. Eu só
espero que você também tenha.
Tocou o sinal. Finalmente! Na próxima aula, vamos
ver como isso tudo acaba.
Tati Bernardi
Escritora e roteirista de cinema e televisão,
autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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