É imprescindível enxergar o papel das classes sociais agora como sempre ao longo da história. Do The Intercept Brasil
19 de Novembro de 2018, 0h03
“DUAS COISAS SALVARIAM o Brasil: interpretação
de texto e consciência de classe.”
A frase é de um meme das
eleições, mas funciona para resumir o pensamento do sociólogo Jessé Souza,
professor titular da Universidade Federal do ABC, em seu novo livro, A Classe
Média no Espelho (Estação Brasil, 2018), que chega às livrarias na próxima
semana.
Na obra, Souza analisa os
movimentos da classe média brasileira nos últimos anos – especialmente aquela
que, segundo sua expressão, se mostrou “dócil e manipulável” ao ir às ruas
contra a corrupção política e, mais tarde, engrossou as fileiras de apoio a
Jair Bolsonaro. “Um tiro no pé”, descreve.
Para o sociólogo, faltou à
classe média entender as causas reais da crise econômica. Por não compreender a
lógica do capitalismo financeiro e erroneamente se imaginar como parte
integrante da elite, a classe média abriu mão do pacto democrático para abraçar
a ideia de que a corrupção do estado é a fonte de todos os males no Brasil – e
não o assalto “legalizado” promovido por bancos e grandes corporações. “O
vínculo orgânico entre empobrecimento e corrupção política é uma mentira. É
óbvio que a corrupção política é recriminável, mas não foi ela que deixou a
população mais pobre. Esta é a grande questão que ficou fora do quadro. E era o
que importava nas eleições”, afirma.
Ex-presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2015 e 2016, e autor de títulos
como A Ralé Brasileira (2009), A Tolice da
Inteligência Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016)
e A Elite do Atraso(2017), Souza vem criticando duramente a
imprensa e os intelectuais alinhados à elite econômica que, a seu ver,
“imbecilizaram” a sociedade. Nesta entrevista ao Intercept, o autor martela: “O país
inteiro foi feito de imbecil. Não há melhor palavra”.
Você inicia A Classe Média no
Espelho com uma
parábola sobre verdade e mentira. Em tempos de discussões sobre pós-verdade,
fake news e agora “disputa de narrativas”, qual foi o peso da confusão entre
verdade e mentira na ascensão de Bolsonaro?
A elite econômica expropria a
maior parte da população em seu benefício, e isso só acontece a partir de uma
mentira socialmente aceita, isto é, uma visão distorcida sobre o funcionamento
da sociedade. É como dizer: o mundo é assim, ponto. A mentira legitima os
interesses da opressão econômica e da dominação moral. E uma das mentiras é
“querer é poder”: se você fracassa, a culpa é só sua – e não de um sistema
injusto e explorador. Se você não compreende as causas de sua miséria econômica
no capitalismo, você está condenado a atribuir seu fracasso pessoal a você
mesmo ou, como foi feito, a políticos corruptos. Assim, uma dominação econômica
de uma classe só se sustenta ao longo do tempo se é moralizada.
Obviamente, a única forma de
combater a mentira social é com a prática da verdade, a arma dos frágeis. É
disso que trata a parábola, e que vale para o atual contexto: as pessoas são
historicamente acostumadas a ouvir a mentira, pois a verdade muitas vezes pode
ser bastante incômoda.
Apesar de esforços (de parte da
imprensa, intelectuais e movimentos sociais) para esclarecer fatos nas
eleições, como a ideia de que o presidente eleito é antissistema e
anticorrupção acabou vingando?
Desde que o Brasil é Brasil, e
principalmente a partir de 2013 de modo mais insidioso e perverso, a elite
econômica conseguiu consolidar, junto a seus intelectuais e sua imprensa, a
ideia de que o empobrecimento da população teria sido causado apenas pela
corrupção política, o que é uma mentira.
‘A esquerda foi singularmente incapaz
e burra nessas eleições.’
A imprensa e a Lava Jato
criminalizaram a Petrobras, deixando-a pronta para vendê-la a preço de banana.
O estado deixou de ganhar royalties, o pessoal perdeu emprego. A Lava Jato
prendeu meia dúzia e deixou invisível o saque real trilionário de uma elite proprietária
e uma alta classe média, que inclusive empobrece a massa da classe média. O
foco na corrupção política invisibilizou a continuidade dos juros extorsivos
embutidos nos preços, da estarrecedora exploração do rentismo e da corrupção
legalizada dos donos do mercado. A boca de fumo da corrupção está no Banco
Central, que assalta legalizadamente a população. Mas as classes exploradas
economicamente acreditaram na balela: ficamos mais pobres por conta do roubo de
políticos. É óbvio que a corrupção política é recriminável, mas não foi ela que
deixou a população mais pobre. Esta é a grande questão que ficou fora do
quadro. E era o que importava nas eleições.
A esquerda foi singularmente
incapaz e burra nessas eleições. Tanto Haddad quanto Ciro Gomes elogiaram a
Lava Jato, o bode expiatório da corrupção política. Na minha visão, o país
inteiro foi feito de imbecil, não há melhor palavra. Poderia dizer “falsa
consciência” e agir contra os próprios interesses, mas, na linguagem do senso
comum, isso é simplesmente ser “imbecil”. Dentro da própria esquerda, ninguém
problematizou o rentismo, ninguém questionou: nós todos pagamos juros que vão
para o bolso de quem? Esse assalto econômico não é visto como corrupção, como o
engano de meia dúzia sobre 200 milhões de brasileiros. O principal dispositivo
do poder é se tornar invisível. E o poder econômico é ainda mais invisível.
Qual é a sua definição de
classe média?
Souza foi presidente do Ipea
até 2016 – saiu com o impeachment de Dilma Rousseff.
Classe social não é definida pela renda. Renda é um resultado, considerando a vida adulta. Mas é preciso pensar que diabo acontece na infância e na adolescência de alguém, que faz com que um ganhe mil vezes mais do que o outro? Esta é a questão, que implica a reprodução de privilégios, positivos e negativos. O privilégio da elite econômica é econômico, a propriedade.
O privilégio da classe média,
que corresponde a 20% da população brasileira, é principalmente o acesso a
capital cultural, isto é, conhecimento, cursos de línguas, universidades etc.
Isso explica, por exemplo, a raiva de parte da classe média ao ver pobre
entrando na universidade, que era seu “bunker” que garantiria salários
melhores, mas também reconhecimento e prestígio.
Você diferencia “alta”
(equivalente aos segmentos superiores da classe A) e “massa” da classe média
(as chamadas classes A e B). Seguindo esse paralelo, onde estaria a dita classe
C?
[A classe C] foi uma bobagem da
propaganda do PT. No Brasil, temos quatro grandes classes: uma ínfima elite
econômica proprietária, uma classe média de 20%, uma classe trabalhadora
majoritariamente precária e uma classe marginalizada que está fora do mercado
competitivo. O PT ajudou os marginalizados subirem à classe dos trabalhadores,
o que é histórico e extremamente importante. Por miopia política, isso foi
interpretado por marketing malfeito como “chegar à classe média”, o que também
é uma mentira. E é preciso saber a verdade: seria preciso montar um projeto
político de longo prazo e dizer “um dia” vamos chegar a uma sociedade de classe
média real. Dizer que renda média é classe média é uma idiotice. Renda média de
um país pobre equivale à renda da classe trabalhadora, que é precária.
Se há uma vocação vira-lata da
alta classe média, “que considera melhor tudo o que vem de fora”, segundo sua
expressão no livro, os alertas de diversos veículos da imprensa internacional,
como The Economist, The New York Times e Le Monde, não deveriam ter pesado nas
eleições?
Classe não é definida por
critérios econômicos. As pessoas procuram se distinguir umas das outras – e se
sentir melhores do que as outras. A classe média é moderna, nasce com o
capitalismo e começa a ficar realmente importante com o capitalismo industrial.
E se cria uma alta classe média, que representa interesses da elite: o CEO de
um banco, por exemplo, não é um banqueiro. O primeiro é alta classe média, o
segundo é elite.
Mas o CEO tem a ilusão de se
considerar parte da elite e, portanto, defende interesses de seus patrões. E
assim molda uma distinção diante das outras classes, a partir do alto consumo
de bens importados, por exemplo. Ele quer se sentir um pouco europeu, um pouco
americano, dentro de seu próprio país. Só que a alta classe média é muito
conservadora e faz qualquer negócio para manter seus privilégios. Ela não tem
sensibilidade em relação ao restante da sociedade, portando-se como uma elite
estranha ao próprio país.
‘O que antes era ódio ao escravo,
agora é ódio ao pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à
condição de pobre.’
Há ainda divisões dentro da
alta classe média: uma fração da indústria mais “democrática”, digamos, que
depende e se importa com um mercado interno pujante; e uma fração predominante
do agronegócio e mercado financeiro, voltada para o mercado externo, que fica
rica independentemente se o país vai bem ou vai mal. Temos, afinal, uma elite
de herança escravocrata que pensa a curto prazo: quero o meu agora, não me
importa projeto de futuro. Isso amesquinha o país como um todo.
Se antes o escravo era
submetido a trabalho desqualificado, agora a maior parte da população
brasileira faz trabalho semiqualificado ou desqualificado. E é excluída das
benesses do mundo moderno. O que antes era ódio ao escravo, agora é ódio ao
pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à condição de pobre.
Afinal, classe não é só um cálculo econômico, mas um cálculo moral de distinção
social.
No livro, você projetou que
muitos se voltariam “ao voto de protesto desesperado e irracional” de apoio a
Bolsonaro. Passadas as eleições, pensa a vitória como “voto de protesto”? Ou de
uma busca genuína por mudança?
O que está acontecendo hoje faz
parte de um processo de luta de classes. Um processo que se estende desde 1930.
O que foi que a elite fez? A elite montou, a partir da imprensa e das universidades,
o domínio simbólico, moldando a visão de mundo da classe média. Agora, para a
alta classe média, esse discurso é racional e pautado pelo interesse econômico:
estou ganhando mais. Mas, para a massa da classe média, é irracional: para
pensar que está ganhando algo, uma recompensa moral, a massa da classe média
protestou e se portou como “ah, sou moralmente superior do que as classes
populares, estou escandalizada porque me incomoda e combato a corrupção
política”. Foi explorada.
Mas a ideia de que o empobrecimento
ou o risco de empobrecimento estaria ligado organicamente à corrupção…
Corrupção política. Desculpe
interromper, mas veja que, sem querer, você equalizou corrupção e corrupção
política.
Sim, corrupção política. Você
diria que a construção desse discurso escapou ao controle de quem o construiu –
parte da imprensa, como indica no livro? Se a população brasileira fosse tão
“manipulável” por uma imprensa a favor de interesses da elite econômica, como
compreender críticas tresloucadas que atribuem à Folha de S.Paulo a alcunha Foice, de
referência comunista, e o bordão “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”
capturado por militantes de direita a partir de 2013?
Quando se começa uma coisa, só
se sabe como ela começa, mas não sabe como termina. Nossa imprensa é venal, desde
o início comprada pelo mercado. Nunca tivemos uma rede pública [de comunicação]
como existe na Europa – e às vezes alguns até confundem TV pública com TV
estatal. Nunca tivemos uma imprensa confrontando o poder de forma plural.
A imprensa atacou o governo,
pois a presidenta, um pouco estabanadamente, atacou o juro, o lucro dessa
elite, a partir de 2012. Isso foi usado contra o governo eleito e que era tudo
menos corrupto – a presidenta não roubou um lápis que seja. Mas o ataque
midiático se voltou a todos os consensos morais de uma democracia. Não é a
letra legal de uma Constituição que dá sangue à democracia, mas os consensos
morais: não se pode expurgar a presunção de inocência, banalizar vazamentos
ilegais, banalizar desrespeito de direitos fundamentais. Isso é a base de uma
democracia.
‘A imprensa toda foi muito burra. Ela
pisoteou a democracia, e agora vai ter uma vida muito difícil.’
A imprensa ajudou a fazer terra
arrasada disso e, depois, veio a eleição de Bolsonaro como uma espécie de
vingança das classes médias e parte das classes populares contra esse estado
retratado como corrupto. Se você ataca a democracia como um todo, obviamente
você ataca a liberdade de expressão. Tecnicamente, a imprensa toda foi muito
burra. Entenda-se: burrice é pensar a curto prazo, seja para o bem seja para o
mal; inteligência é pensar a longo prazo, seja para o bem seja para o mal. Ela
pisoteou a democracia, e agora vai ter uma vida muito difícil. Parte da
imprensa e setores da alta classe média deram um tiro no pé. Se isso terminará
num banho de sangue, numa tribalização da sociedade ou numa tomada de
consciência, ninguém sabe dizer. Mas que será problemático, será.
Nos últimos tempos, o caráter
fascista ou não das ideias representadas por Bolsonaro foi muito discutido.
Você teme que a expressão “fascismo” se desgaste tal qual “populismo”, que a
palavra se torne um coringa para desqualificar adversários?
Não. O principal mecanismo do
fascismo é a desumanização, o não reconhecimento do outro. Na minha opinião,
obviamente há elementos fascistas nas ideias do presidente eleito: apologia da
tortura, assassinato de adversário político etc. Historicamente foi assim que o
fascismo se expandiu no entre-guerras: pega a raiva e o ressentimento da classe
média e do povo e joga num bode expiatório socialmente aceitável. Logo, estamos
num contexto de neofascismo, junto a uma dominação do capitalismo financeiro:
na economia, invisibiliza, deixa opacos elementos econômicos; na política,
provoca desmobilização popular.
Nos Estados Unidos de Donald
Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói
relações sociais e vida associativa, provocando desorientação e isolamento do
indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um
sistema injusto. É uma estrutura fascista, sim, de novo tipo. Que está se
internacionalizando e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que
fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente,
merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se
sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é
exatamente o que o fascismo produz.
Você usou muito a palavra
“golpe” para tratar do impeachment de Dilma Rousseff. Pensa que a palavra foi
desgastada?
Não. Foi um golpe de novo tipo,
articulado por uma situação econômica. O dado econômico é incrível, porque é
sempre o mais invisível. A causa de tudo foi a tentativa de se apropriar do
orçamento público e do mercado interno via juros. Foi um golpe parlamentar, mas
qual é a independência que esse parlamento tem? Um parlamento de baixíssimo
nível, eleito com dinheiro de bancos e grandes corporações. No ano anterior [ao
impeachment], a presidenta tinha feito um enorme esforço para diminuir os juros
e usado os bancos públicos para isso. De uma hora para outra, empresas deixaram
de investir, e a imprensa inteira passou a atacá-la.
Mas, veja, a elite se apropria
do que é público mediante parcerias público-privadas – um exemplo, como as
estradas. Entretanto, foi ensinada a imbecilidade de que o Brasil é corrupto
por causa da herança de Portugal, uma mentira legitimada com prestígio científico
nas universidades. Um povo ladrão por conta da herança portuguesa e, agora,
ladrão dentro do estado. Sendo que o estado é a esfera que se pode contrapor a
um mercado desregulado.
Dias antes do segundo
turno, universidades se tornaram alvo de
diversas ações de fiscalização – e justamente faixas contra o fascismo foram
censuradas. Dias depois do segundo turno, investidas do Escola Sem Partido
avançaram com a convocatória de denúncias contra docentes “doutrinadores”.
Ainda há pensamento crítico e resistência nesses espaços?
Como você mantém uma população
inteira precarizada? Você pega a escola, um elemento de classificação e acesso
a conhecimento que está relegado à classe média. O privilégio positivo
específico da classe média é este: estímulo para estudo, domínio de línguas,
capacidade de concentração. Você chega aos cinco anos na escola particular como
um vencedor, pois é aparelhado psicológica e moralmente: espera bons salários e
prestígio. O pobre já é tratado como um perdedor, num abandono secular e
cumulativo. Depois, você vê a classe média culpando a classe pobre, dizendo que
ela é preguiçosa e indolente – e que o mérito do seu sucesso é só seu. Assim, a
sociedade brasileira sacramentou dois caminhos: um, da felicidade; outro, do
fracasso.
‘Nenhum povo pode ser senhor do seu
próprio destino sem conhecimento. E conhecimento deve ser compreensível.’
Agora, quais são os dois
pilares do desenvolvimento de um país? Indústria e educação. Só que a educação
está toda montada dentro de um contexto elitista. É Paulo Freire, pensamento
crítico e educação libertadora para a classe média; e trevas para a classe
trabalhadora. É loucura dizer que essa estrutura de educação classista é de
esquerda. E apenas tende a transformar e sacralizar esse caminho perverso que
monta a opressão de classes entre nós: duas educações, duas classes, dois tipos
de indivíduo.
Você declarou, certa vez, que o
“que provoca efetiva dor de cotovelo nos meus detratores é o fato de ter
conseguido, com muito esforço, expor questões complexas de modo simples e
compreensível para a maioria das pessoas”. No seu novo livro, a atenção à
acessibilidade da linguagem também está presente. Para quem você escreve?
Não quero falar para seis
pessoas. Nisso está embutida uma crítica ao próprio saber acadêmico. Passei
minha vida juntando capital acadêmico, acumulando trabalho. Penso que estou
usando um capital acadêmico de vanguarda com uma linguagem acessível. Nenhum
povo pode ser senhor do seu próprio destino sem conhecimento. E conhecimento
deve ser compreensível.
Tenho tentado fazer um esforço
enorme de dizer coisas complexas que, com boa vontade e interesse, qualquer
pessoa possa compreender. Não é por falta de conhecimento prévio e formação
acadêmica que a pessoa não vai entender o livro. É por falta de coragem. A
gente não nasce sabendo, é preciso aprender: aprender é um ato de coragem. A
ciência pode ser libertadora; o conhecimento, empoderador. Imagina se o povo
brasileiro compreende que está sendo enganado?
Sociólogo diz que autocrítica
em relação à sua própria posição o levou a uma ‘epifania’.
No campo da linguagem, destacaram-se autores de direita como Olavo de Carvalho, tido inclusive como intelectual vencedor dessa eleição. Como ele conseguiu arregimentar tantos adeptos?
A sociedade brasileira está em
uma esquina em que uma série de aprendizados são necessários. Algumas pessoas
estão começando a compreender o tamanho da fera que está a um metro de nós.
Algumas pessoas que estavam muito acomodadas no seu mundinho. E, agora, ou a
gente reformula esse comportamento, ou nós todos, como país, vamos perder. Esta
questão está muito presente agora. Principalmente entre a esquerda colonizada
por uma linguagem que só beneficiou a direita.
Você chegou a ser chamado de
‘Olavo de Carvalho da esquerda’. O que pensa da comparação?
A Elite do atraso teve
muita repercussão, muito além do que eu imaginava. Retornos de pessoas simples,
o público que eu gostaria de atingir, me comoveram muito. A escola de samba
Paraíso do Tuituti usou elementos; o presidente Lula leu o livro na prisão.
Efetivamente, penso que pude fazer, pela primeira vez, uma interpretação
crítica da sociedade brasileira de fio a pavio. Sei que é ambicioso dizer isso,
e fico à disposição para quem queira contrapor meus argumentos. [O que
propus no livro] compromete toda uma tradição de pensamento, de direita e
de esquerda. O núcleo dessa tradição, esse liberalismo chique, aceita a ideia
de corrupção política. O que fiz foi articular uma visão crítica, com
encadeamento explícito dessas ideias. O novo livro A classe média no
espelhoé uma continuidade. Trago uma visão mais sofisticada e crítica do
que a tradição intelectual brasileira. Estudei todas as classes anos a fio,
dediquei uma vida inteira a isso. Logo, interpreto esse tipo de interpelação
como inveja.
Por fim, professor, o livro
propõe posicionar a classe média brasileira diante do espelho e revelar suas
concepções do mundo. Enquanto integrante da classe média, como você afirma no
livro, como você se vê diante do espelho?
No fundo, minha atividade é
intelectual. E o intelectual, para criticar e inclusive para se autocriticar,
precisa conhecer. Eu também tinha esse academicismo antes. Achava que meu
público se limitava a uma dezena de pessoas que poderia compreender o que eu
estava dizendo, como se “só eu e mais alguns aqui eleitos entendemos como o
mundo funciona”. É isso, afinal, que as classes procuram: se distinguir uns dos
outros. Isso move o ser humano tanto quanto dinheiro.
Embora eu tenha vindo de
estratos mais baixos da classe média, como professor universitário pertenço à
massa da classe média. E me questionei: numa sociedade perversa como a nossa,
que peso a massa da classe média tem sobre a pobreza dos pobres?
Foi uma epifania quando compreendi que alguns,
pensando que estavam à esquerda, estavam montando de uma forma ideológica o
poder de meia dúzia de proprietários. Você cria uma distância em relação a você
mesmo, uma autocompreensão. A partir da crítica da minha própria posição e dos
pressupostos que ela envolve legitimando uma lógica, tentei a começar uma
autocrítica e uma crítica da própria sociedade que tinha me marcado essa visão
de mundo.
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