Publicado no Sul 21 e republicado no Viomundo
Direito que se derrete em silêncio: de Vyshinsky a Deltan
Por
Tarso Genro
Deltan Dallagnol,
mestrado em Harvard, pregador religioso batista, surfista que viaja para
Indonésia para buscar ondas perfeitas, Procurador da República, 36 anos, tido
como estudioso da “operação mãos limpas”, tem uma obsessão. É o que informam os
seus colegas e celebram os jornalistas que lhe admiram: combater a corrupção no
país. O que lhe diferencia, porém, não é esta obsessão. Ela é comum a milhões
de brasileiros, servidores públicos, trabalhadores e empresários, membros do
Judiciário, políticos de vários partidos e cidadãos comuns, que lutam todos os
dias pela sobrevivência. O que lhe diferencia é a sua visão ideológica
fundamentalista, o seu messianismo provinciano e a sua tendência ao
autoritarismo de caráter fascista.
O espetáculo que o
Procurador Dallagnol promoveu, recentemente, através de uma verborragia
delirante, lamentavelmente nada tem a ver com o combate à corrupção. Muito
menos com o “devido processo legal”, numa sociedade civilizada. Tem a ver,
independentemente da sua vontade imediata, com a estabilização do golpe, que é
feita através de uma seletividade de denúncias destinadas a fazer esquecer quem
— neste momento — ocupa o poder, cujos propósitos nada tem a ver com a
luta contra a corrupção. Tudo a ver com o “ajuste” liberal, para sucateamento
de direitos e a redução drástica das funções públicas do Estado: a
transformação do Estado, de estado provedor (mínimo) em estado pagador da
dívida pública (máximo).
Utilizando um
“Power Point”, com “frases de efeito e comunicação rápida visual” – como
registrou em Zero Hora (17\18 set.) o jornalista Guilherme Mazuí
– Dallagnol fez a fusão de um fundamentalismo religioso de escassa base
republicana, com um messianismo autoritário, digno dos Processos de Moscou e dos
Processos “legais”, da época do nazi-fascismo. Apontou, semeou mais um pouco de
ódio contra o PT, denunciou, julgou e foi mais além: disse, publicamente, que o
já “condenado” (conforme demonstrara o seu “Power Point”!) não poderia mais
dizer “que não sabia”, completando a sua exposição, portanto, com uma restrição
explícita ao direito de defesa do acusado. Não apresentou provas e não fez
denúncia processual nem perto do que expôs, de maneira virulenta e
desrespeitosa, ameaçando, ainda, o restante da família do ex-Presidente.
Este artigo não
afirma que Lula é inocente, o que é trabalho para dos seus advogados. Nem que
ele não deva ser investigado, o que ele mesmo registrou com humildade na sua
fala de resposta. Registra, porém, uma visão crítica sobre como está funcionando
o nosso Sistema de Justiça, neste momento difícil do Estado de Direito, para
alertar que qualquer pessoa, submetida a um “Power Point” como aquele
apresentado pelo Procurador Dallagnol, mesmo sem provas (e sem o contraditório
realizado no próprio ato), está sendo submetida a um linchamento público, não a
um processo judicial compatível com um Estado de Direito minimamente
respeitável.
Em que convicções
se fundamentaram as frases de efeito do jovem Procurador, que se avoca estar
salvando a nação? É fácil de apontar. Em audiência com parlamentares em
junho deste ano, repetindo juízos dramáticos proferidos em outras
oportunidades, o Procurador sintetizou a sua visão de mundo e do Direito: “A
corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. Ela é um serial
killer que se disfarça de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de
crimes de rua e de pobreza.” (ZH 17\18 set). Tudo falso. Frases de efeito, sem
fundamentação científica ou doutrinária, e pior: a partir da fórmula vulgar, de
que a corrupção é uma “assassina sorrateira”, o Procurador transforma-a
numa mera “impressão” cotidiana, que aparece diretamente na debilidade das
prestações públicas do Estado. Nesta fórmula, então, a corrupção não é um
mecanismo clássico e visível de estabilização do poder, utilizado por todos os
governos (tanto dentro como fora do Estado de Direito), mas um veneno promovido
pela falta de ética e de religião (por sorrateira e invisível) como, aliás, é
descrito o próprio diabo, nos diversos fundamentalismos de mercado.
Imputar as
carências das prestações públicas à corrupção, todavia, não é um acidente. É
uma afirmação que pertence a um conceito, não só sobre os motivos pelos quais
emerge a corrupção (como se ela decorresse só da faltas éticas de pessoas que governam),
mas também sobre os métodos mais adequados para combatê-la. Mas é conceito de
um autoritarismo gritante, que permite dissolver a neutralidade formal do
Estado que codifica e organiza os tipos penais, substituindo estes tipos penais
pelas pessoas escolhidas para representá-los. O crime, que em si, é
invisível (sorrateiro e “de massa”), que não é compreendido nem visto pelos
comuns dos mortais, é apresentado ao vivo por pessoas escolhidas pela ideologia
do inquisidor. Ao colocar o nome de Lula, sem provas, no centro do seu
diagrama, o Procurador desvela a “invisibilidade” e apresenta o seu criminoso
preferencial, para o escárnio da plateia em transe.
Não trata,
portanto, este método, de apontar com provas a corrupção, com base naquilo que
está regulado pelo Direito do Estado, mas de escolher os criminosos através de
critérios políticos, a partir de uma ética pessoal, fundamentalista e
religiosa, que faz a inquisição de um mundo impuro controlado pelo mal. Tais
pressupostos é que permitiram o Procurador Dallagnol adiantar que “Lula não
pode mais negar”, ou seja, não pode mais se defender dizendo que “não sabia”,
lembrando os recursos verborrágicos de Hitler, para acabar com a República de
Weimar, acusando-a de corrupta e “antinacional” e que, por isso, não deveria
sobreviver. Lembra, também, as acusações de “sabotagens” econômicas e de
“espionagem”- feitas pelo Promotor Vishinsky contra os velhos bolcheviques nos
Processos de Moscou- que criticavam o regime porque este não conseguira
debelar a fome, e, por isso, eram traidores que não mereciam a presunção da
inocência.
Vamos decompor este
discurso do Procurador: a corrupção não é uma assassina “sorrateira”, nem
“invisível”, nem “de massa”. Ela é um modo de fazer política — aberto e visível
— de setores de partidos, de parte da plutocracia nacional, de setores de
empresas e gestores públicos, que formaram o Estado Brasileiro tal qual ele é,
cuja centralidade corrompida é a própria estrutura do Orçamento Público e o seu
sistema político. O Orçamento reserva mais de um terço dos seus recursos — não
para remédios e estradas — mas para sustentar os credores da dívida pública, os
acumuladores sem trabalho, que hoje — na verdade — reinam com as suas
receitas contra as crises, em todos os países endividados do mundo. A crença de
que a corrupção é “sorrateira” e “invisível”, autoriza que tanto a sua
visibilidade seja uma escolha, como a sua invisibilidade seja uma regra. Na
verdade, os agentes da corrupção querem ser invisíveis e são sorrateiros, mas
ela é um processo tão aberto e tão visível, que bastou ter um Governo que
aparelhou os órgãos de controle e investigação no Brasil, que ela começou a ser
combatida em vários setores da vida pública.
As “mãos limpas” e
os processos do “mensalão” e da “lava jato” (embora tenham aberto um novo ciclo
na luta contra a corrupção no Estado de Direito) geraram deformidades
monstruosas nos seus objetivos, tais como na Itália com os 11 anos de
Berlusconi, e aqui no Brasil, com um Governo com Temer, Jucá e Padilha. Isso quer
dizer que a luta contra a corrupção é inútil? Jamais. Quer dizer que, se ela
for implementada pelos métodos do messianismo religioso, em regra falsamente
moralistas, e não for tratada como um processo complexo e profundo
-institucional e cultural- no âmbito público e privado, dentro dos
parâmetros consagrados no Estado de Direito, ela volta com mais força e
com mais capacidade de se tornar impune.
A corrupção não é,
portanto, nem “sorrateira” nem “invisível” nem “de massa”. Ela é visível, tão
clara e determinável, que os nossos próprios marcos legais, não somente
estimularam o surgimento de uma boa parte da “classe política” fundada na
propina — face ao sistema político do financiamento dos partidos pelas empresas
— mas, igualmente a fizeram crescer numa parte do empresariado, a partir do
imperativo da sonegação, naturalizada como “legítima defesa”.
A corrupção,
portanto, não está sequer representada pela “falta de remédios”, pelos “crimes
de rua” ou pelos “buracos nas estradas”. Ela é bem mais “efeito” destas necessidades
não satisfeitas por um Estado corrompido pelo culto dos juros manipulados, do
que causa das carências dos serviços públicos. Dizer que a corrupção é
“invisível”,é uma artimanha para que os tidos como corruptos “da vez”
-presumidamente escondidos nesta invisibilidade- sejam “apontados”,
justa ou injustamente, por decisões messiânicas a serviço de propósitos
políticos imediatos. Por isso, os “decisionistas” — como homens da “exceção” —
precisam de “Power Points” e frases de efeito, para montar os seus processos,
onde o direito de defesa é lesionado e a presunção de inocência deixa de
existir antes do processo judicial, cuja sentença é antecipada por entrevistas
bombásticas.
Em 12 de março de
1938, no “terceiro processo de Moscou”, não tendo obtido provas, mas
baseando-se em acusações de co-réus e dos réus devidamente torturados –
naquele tempo não se usava a delação premiada — André Vychinsky, o Procurador,
fez as suas alegações finais: “Todo o nosso país, jovens e velhos, espera e
reclama uma só coisa: que os traidores e espiões que vendiam a nossa pátria ao
inimigo sejam fuzilados como cães sarnosos! O nosso povo exige uma só coisa:
que os répteis malditos sejam esmagados!” Ao apresentar publicamente a
sua “convicção”, em entrevistas retumbantes, após centenas de matérias da mídia
oligopólica — com vazamentos seletivos e interpretação sem contraditório
— o Procurador Dallagnol já tornou os réus culpados absolutos, antes de
começar o processo. Fez, assim, no começo, a peroração definitiva e terminativa,
antes da aceitação da sua denúncia. Vyshinsky a fez no final dos procedimentos
totalitários. A ordem não altera o fato de que ambos agiram contra o Direito
civilizado.
O jurista do
nazismo, Carl Schmitt, no artigo publicado em 30 de julho de 1934, “O Führer
protege o direito” – ao examinar a conduta de Hitler na “noite das facas
longas” em que este se posicionou contra a submissão do Exército Alemão às
forças irregulares de Ernst Rohm (SA) — chancelou o direito ao assassinato de
mais de 150 militantes do nacional-socialismo, autorizados por Hitler, com a
seguinte fundamentação: “os atos de natureza política somente poderiam ser
objeto de julgamento (“decisão) de um magistrado político, o Führer”. Pergunta
que se impõe, em defesa do Estado de Direito: os Procuradores Federais no
Brasil, são os Juízes “totais” de si mesmos, Magistrados do Direito e da
Política, só porque tem o apoio irrestrito do oligopólio da mídia? O Estado de
Direito se derrete neste silêncio, omissivo e cúmplice. Ele nos faz reféns do
fundamentalismo religioso e do “decisionismo” jurídico, que pode, sim, também
um dia, comer seus próprios filhos.
.oOo.
Tarso
Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre,
Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações
Institucionais do Brasil.
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