– 4 DE JULHO DE 2016
Que dizer de uma
sociedade que demanda cada vez menos músicos e poetas, enquanto multiplica
legiões de advogados corporativos, contadores e operadores de telemarketing?
Por que o capitalismo dominado pelas finanças produz este monstrengo?
Por David
Graeber, no Vertigens |
Tradução: Ivan LP
Em 1930, John
Maynard Keynes previu que até o final do século a tecnologia teria avançado o
suficiente, para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos
implementassem a semana de trabalho de 15 horas. Existem muitas razões para
acreditar que ele estava certo e no entanto isso não aconteceu. Ao contrário, a
tecnologia foi sendo configurada de maneira a nos fazer trabalhar mais. No
intuito de alcançar este objetivo, trabalhos efetivamente inúteis tiveram de
ser criados. Exércitos de pessoas, na Europa e na América do Norte em
particular, passaram vidas inteiras realizando tarefas que eles no fundo
acreditavam serem desnecessárias. O dano moral e espiritual deste fato é
profundo. É uma marca em nossa alma coletiva. No entanto, quase ninguém fala
sobre isso.
Por que a utopia
prometida por Keynes nunca se materializou? A resposta mais comum hoje é que
ele não visualizou o aumento maciço do consumismo. Dada a escolha entre menos
horas de trabalho ou mais brinquedos e prazeres, escolhemos os últimos. Isto
pode parecer um bom conto moralista, mas um pouco de reflexão nos revela que
não é bem assim. Sim, nós temos testemunhado a criação de uma variedade
infinita de novos empregos e de novas indústrias desde os anos 1920, mas muito
poucas não têm a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones ou tênis
extravagantes.
Quais são esses
novos postos de trabalho precisamente? Um relatório recente comparando o
emprego nos Estados Unidos entre 1910 e 2000, nos dá uma boa ideia. No decorrer
do último século, o número de “trabalhadores braçais” na indústria e no setor
agrícola diminuiu drasticamente. Ao mesmo tempo, empregos como de gerentes,
assistentes, vendedores e outros cresceram de um quarto para três quartos do
emprego total. Em outras palavras, trabalhos produtivos foram largamente
automatizados como previsto (ainda que você leve em consideração os
trabalhadores da industria de maneira global, incluindo China e Índia, a
porcentagem é muito menor do que costumava ser).
Mas em vez de
permitir uma redução maciça da jornada de trabalho, para que a população
mundial tivesse a oportunidade de correr atrás seus próprios projetos,
prazeres, visões e ideias, temos visto um crescimento não só do setor de
“serviços”, como do setor administrativo, incluindo a criação de novos ramos
como o de serviços financeiros ou telemarketing, ou a expansão sem precedentes
de setores como direito corporativo, administração da saúde e acadêmica,
recursos humanos e relações públicas. Esses números ainda não são suficientes
para refletir esse contingente de pessoas cujo trabalho é prover apoio
administrativo, técnico ou de segurança, pois existe toda uma cadeia de ramos
auxiliares (de petshops a pizzarias 24h) que só existem porque todo mundo está
gastando muito tempo trabalhando nessa “nova” atividade.
Estes são os que
proponho chamar de “empregos de merda.”
É como se alguém
estivesse criando empregos inúteis apenas para nos manter trabalhando. Aqui
precisamente reside o mistério. No capitalismo, isto é exatamente o que não
deveria acontecer. Certamente foi o que aconteceu nos velhos e ineficientes
estados socialistas da União Soviética – pois o emprego era considerado tanto
um direito quanto um dever sagrado. O próprio sistema criou tantos empregos
quanto considerava necessário (razão pela qual as lojas de departamento na
União Soviética tinham até três funcionários para vender um pedaço de carne).
Supostamente esse é um problema que a competição no mercado deveria corrigir.
Pelo menos de acordo com a teoria econômica, a última coisa que uma empresa com
fins lucrativos deveria fazer seria gastar dinheiro com trabalhadores que elas
não precisam empregar. Ainda assim, de alguma forma isso acontece.
Se por um lado as
corporações podem, de tempos em tempos, diminuir de tamanho drasticamente, os
cortes e demissões normalmente recaem sobre aqueles que estão efetivamente se
mexendo, ajustando, pensando e fazendo o negócio girar; através de uma estranha
alquimia que ninguém pode explicar, o número de burocratas assalariados está se
expandindo e um número cada vez maior de empregados encontra-se, não como os
trabalhadores da União Soviética, é claro, trabalhando 40 ou 50 horas por
semana, mas efetivamente 15 horas como Keynes havia previsto, desde que passem
o resto da semana assistindo, organizando e participando de seminários
motivacionais, atualizando seus perfis no Facebook, ou fazendo downloads de
séries.
A resposta
claramente não é econômica: é moral e política. A classe dominante descobriu
que uma população feliz, produtiva e com tempo livre disponível é um perigo
mortal (pense no que ocorreu quando esse sonho se tornou possível nos anos
1960). Por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si, e
de que qualquer um que não esteja disposto a se submeter a uma intensa
disciplina de trabalho não merece nada, é extremamente conveniente.
Observando o
crescimento aparentemente interminável das responsabilidades administrativas
dos departamentos acadêmicos ingleses, eu tive uma possível visão do inferno. O
inferno é um conjunto de indivíduos, que estão gastando a maior parte de seu
tempo trabalhando em uma tarefa de que eles não gostam e em que não se dão bem. Digamos
que foram contratados porque eram excelentes marceneiros, mas depois chegou-se
à conclusão de que na verdade boa parte deles deveria passar a maior parte do
tempo fritando peixe. Os empregados então se tornam obcecados e ressentidos ao
pensar que alguns de seus colegas de trabalho possam estar gastando mais tempo
fazendo armários e não compartilhando a justa responsabilidade de fritar
peixes. Em pouco tempo, pilhas de peixe frito ruim se acumulam e isso é tudo o
que eles realmente fazem.
Todos os argumentos
que eu venha a usar vão suscitar imediatamente as seguintes objeções: “quem é
você para dizer quais trabalhos são realmente ‘necessários’? O que é
‘necessário’ afinal? Você é um professor de antropologia, qual a ‘necessidade’
disso?” (leitores de tabloides certamente caracterizariam o meu trabalho
como a definição de desperdício de gastos sociais). Em algum nível, isso
obviamente é verdade. Não deve existir nenhuma métrica objetiva de valor
social.
Eu não me atreveria
a convencer alguém que acredita que está fazendo uma contribuição importante
para o mundo do contrário. Sobre as pessoas que estão convencidas de que seus
trabalhos não fazem sentido, o que podemos dizer? Não faz muito tempo, voltei a
ter contato com um amigo do colégio que não via desde os doze anos. Fiquei
encantado em descobrir que nesse tempo ele se tornou um grande poeta e
vocalista de uma banda de indie rock. Eu já tinha ouvido algumas de suas
músicas no rádio sem saber que o conhecia. Ele era obviamente brilhante,
inovador, e seu trabalho tinha sem dúvida iluminado e melhorado a vida de
muitas pessoas. No entanto, depois de dois álbuns que não tiveram sucesso, ele
perdeu o contrato. Atormentado com dívidas e um filho recém-nascido, acabou
“escolhendo a opção de muitos que não sabem o que fazer da vida: Direito”.
Agora ele é um advogado corporativo que trabalha em uma firma proeminente em
Nova York. Admitiu que seu trabalho é totalmente sem sentido, que não contribui
em nada para o mundo e em sua própria avaliação não deveria existir.
Este fato estimula
a propor inúmeras questões. Por exemplo: o que dizer de uma sociedade que
parece ter uma demanda extremamente limitada por músicos-poetas, mas
aparentemente uma demanda infinita por especialistas em leis corporativas?
(Resposta: se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, o
que nós chamamos de “mercado” reflete o que eles — não qualquer outra pessoa —
acha útil). Isso mostra que a maioria das pessoas que ocupam esses cargos,
estão em última análise cientes disso. De fato, eu não me lembro de ter conhecido
um advogado corporativo que não considere seu trabalho um trabalho de merda. O
mesmo vale para quase todas as novas atividades citadas acima. Existe toda uma
classe de assalariados que você irá encontrar em festas. Diga que você faz um
trabalho interessante (um antropólogo, por exemplo). Eles vão evitar falar
sobre seus próprios trabalhos. Ofereça alguns drinks e em pouco tempo eles
farão discursos sobre como seus trabalhos são estúpidos e inúteis.
Temos aqui uma
violência psicológica profunda. Como alguém pode sequer começar a falar sobre
dignidade no trabalho quando se pensa que o emprego do outro não deveria
existir? Como isso pode não criar uma profunda sensação de raiva e
ressentimento? No entanto, essa é a genialidade um tanto peculiar da nossa sociedade,
onde os que ditam as regras descobriram uma maneira, no caso dos fritadores de
peixe, de se certificarem de que essa raiva fosse direcionada diretamente para
aqueles que fazem o trabalho que importa. Por exemplo: em nossa sociedade
parece existir uma regra geral onde quanto mais o seu trabalho beneficia outras
pessoas, menos remuneração você receberá. De novo, uma medida objetiva é
difícil de encontrar, mas para entender basta perguntar: o que aconteceria se
toda essa classe de pessoas simplesmente desaparecesse? Diga o que quiser sobre
enfermeiras, catadores de lixo, mecânicos, mas se eles desaparecessem do nada,
os resultados seriam imediatamente catastróficos. Um mundo sem professores ou
estivadores estaria em apuros, e mesmo um mundo sem escritores de ficção
científica ou sem músicos seria
certamente um mundo pior. Não está exatamente claro que tipo de problema a
sociedade teria se todos os executivos-chefes, lobistas, pesquisadores de
relações públicas, contadores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça
ou consultores jurídicos desaparecessem. (Muitos suspeitam que poderia melhorar
muito). Tirando alguma exceções (como por exemplo médicos), a regra parece
fazer sentido.
De maneira ainda
mais perversa, parece existir um consenso de que é assim que as coisas devem
ser. Esse é um dos pontos fortes do populismo de direita. Perceba como os
tabloides mostram os dentes quando funcionários do metrô param Londres por
conta de negociações salariais: eles param Londres porque seu ofícios são
necessários, mas isso parece incomodar as pessoas. Isto é ainda mais claro nos
Estados Unidos, onde os republicanos tiveram sucesso notável na tarefa de
mobilizar o ressentimento contra os professores, trabalhadores da indústria
automobilística (mas não contra os administradores das escolas ou gerentes das
indústrias automobilísticas, que de fato parecem ser a fonte dos problemas) por
causa de seus salários e benefícios supostamente elevados. Como se eles
estivessem dizendo “mas vocês são professores! Ou fazem carros! Precisam
arrumar empregos de verdade! Vocês esperam aposentadoria e planos de saúde de
classe média?”
Se alguém tivesse
inventado um regime de trabalho perfeitamente adequado à manutenção do poder do
capital financeiro, dificilmente conseguiria obter um maior êxito. Os
trabalhadores “reais” e produtivos são implacavelmente explorados. O restante
está dividido entre uma porção aterrorizada (universalmente demonizada) de
desempregados e uma outra que é basicamente paga para não fazer nada, em postos
de trabalho criados para a identificação com as perspectivas e sensibilidades
da classe dominante (gerentes, administradores, etc) — e particularmente com
seus avatares financeiros — mas, ao mesmo tempo, promovem um ressentimento
feroz contra aqueles que realizam um trabalho que tem inegavelmente um valor
social. Obviamente, o sistema nunca foi conscientemente construído. Ele emergiu
de quase um século de tentativa e erro, mas é a única explicação que encontrei,
pela qual a despeito de nossas capacidades tecnológicas, nós não estamos
trabalhado 3 ou 4 horas por dia.
—
David Graeber é professor de antropologia da London School of Economics. Tradução livre de Ivan LP. Artigo publicado originalmente na revista Strike.
David Graeber é professor de antropologia da London School of Economics. Tradução livre de Ivan LP. Artigo publicado originalmente na revista Strike.
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