Com o Dr Meirelles vai faltar goiabada!
Carlos Lessa: retomada? Só se for por "contingência divina"...
O Conversa Afiada entrevistou,
por telefone, nessa terça-feira 26/VII, o professor Carlos Lessa, presidente do
BNDES entre janeiro de 2003 e novembro de 2004, no início do primeiro Governo
Lula.
PHA: Professor, a atual presidente do
BNDES, nesse Governo interino, Maria Sílvia Bastos Marques diz que o BNDES não
será mais financiador de obras de infraestrutura, mas um indutor, um
coordenador. Qual é a sua avaliação?
Prof. Carlos Lessa: Eu não entendo bem
o que quer dizer “coordenador”. Porque um banco de desenvolvimento é um banco
que tem um projeto para o país e se esse país tem falhas de infraestrutura,
para avançar numa determinada direção, essas (obras) de infraestrutura são
fundamentais para que o futuro venha a se configurar. Objetivamente, você não
coordena. Das duas, uma: ou você fomenta e apoia, ou não tem absolutamente
nenhum instrumento relevante para coordenar. E a ideia de que existe uma
quantidade de agentes investidores à disposição para serem coordenados é uma
ideia que, para mim, não parece ter conteúdo nenhum.
PHA: Um dos argumentos dela, professor,
é de que existe, sim, muito investidor querendo entrar nesses projetos de
infraestrutura, e o que falta é confiança, que esse governo interino poderia
dar. O senhor concorda com essa avaliação?
Prof. Lessa: Não, não. Esse é um
argumento político e muito pouco elaborado. O país está vivendo uma crise de
investimento que não é de hoje - na verdade, a taxa de investimento da economia
brasileira está de uma mediocridade enorme - há muito tempo. É muito antiga
essa redução na taxa de investimento. Na verdade, a taxa de investimento
brasileira em nenhum momento nos últimos 20 anos ultrapassou os 20% do Produto.
Isso é muito pouco. A dificuldade que eu tenho é que existem palavras, palavras
e palavras, mas o concreto não é explicitado. O concreto é saber o seguinte:
qual é o projeto nacional brasileiro? Há algum projeto? Eu acho que não existe.
Acho que não existe há muito tempo, não é de agora, não. Na verdade, estamos
vivendo em um país que, na periferia do mundo, se dá ao luxo de não ter nenhum
projeto para o seu futuro. Então, (investimento em) infraestrutura pode ser
fundamental, pode ser perfeitamente justificável. Depende do que você espera
que essa infraestrutura venha a despertar de investimentos derivados dela.
Quando você investe em infraestrutura, das duas uma: ou você consegue uma
resposta sequencial afirmativa, ou simplesmente a infraestrutura não
representou nenhuma alavancagem para o amanhã. Cadê o amanhã que está sendo
perseguido? Há muito tempo o debate brasileiro não dá nenhuma indicação clara e
inequívoca de para onde o Brasil quer ir. Uma coisa que, no meu ponto de vista,
foi lamentavelmente dito é que o Brasil apoiaria a globalização, sem conceituar
absolutamente o que entendia por globalização e sem conceituar com clareza que
diabo de apoio o Brasil buscaria na globalização. Porque vamos supor que o
Brasil se colocasse a seguinte hipótese: exportar é a solução - e a taxa de
exportações brasileiras é relevante. O que não foi relevante é o desempenho da
economia, que continuou sendo bastante medíocre. Uma taxa muito elevada de
crescimento num período de algumas décadas e ... nos últimos 25, 30 anos o
Brasil não consegue recuperar o seu ritmo passado de desenvolvimento. O que o
Brasil está vivendo é um aperto de dinamismo industrial. Não temos mais uma
industrialização sinalizando e fazendo com que as decisões dos brasileiros
sejam referenciadas num cenário em que mutuamente se apoiam. Se você pegar uma
infraestrutura existente e vendê-la barato, talvez encontre compradores. Isso
não é um projeto de desenvolvimento. A pergunta relevante é: por que compram? É
muito simples: as infraestruturas que já estão instaladas e operam bem, se elas
forem vendidas barato, podem representar um negócio interessante. Só isso. Não
é uma retomada, nem a introdução de um futuro dentro dos horizontes
brasileiros.
PHA: No plano do ministro interino
Henrique Meirelles e no da própria Maria Sílvia, o BNDES terá que devolver à
União, para fechar o compromisso do ajuste fiscal, aproximadamente R$ 100
bilhões. O que o senhor acha disso?
Prof. Lessa: Na verdade, o BNDES dispõe
de uma quantidade muito expressiva de ativos. Se os vender muito baratos,
talvez consiga vendê-los. Por exemplo: você está em São Paulo, que é o filé
mignon, o melhor segmento do mercado energético brasileiro, sendo que existe
uma empresa que é central nesse processo, que é a companhia elétrica de São
Paulo, Eletropaulo. Essa empresa é hoje controlada, basicamente, por um
investimento que é, de um lado, público, e de outro, pertence a um grupo
americano. Eu não tenho dúvida de que se vender muito barato, o grupo americano
compra. Aliás, o sonho deles é fazer isso. Mas, e daí? O que vai significar? O
BNDES vai devolver para a União o que for resultado dessa venda? Por que ? E
vai ser feito o quê com isso? Para o Dr. Meirelles pensar ... O que é que o Dr.
Meirelles pensa em relação ao futuro brasileiro? Eu não sei, você não sabe, a
torcida do Flamengo não sabe. Na verdade, ninguém sabe o que o Dr. Meirelles
pretende para o Brasil.
PHA: Ele diz nos jornais de hoje - no
Globo, por exemplo - que provavelmente não conseguirá fechar o compromisso do
déficit primário...
Prof. Lessa: Tudo isso é muito
engraçado. Nenhuma economia capitalista avança sem uma estrutura de crédito.
Todas as economias capitalistas avançam se apoiando na emissão de dívidas. A
dívida não é em si ruim, ela pode ser ruim. Na imensa maioria das vezes, ela
pretende ser positiva e pode ser positiva. Na verdade, a ideia de limitar a
capacidade de um país de dever é, simplesmente, escravizar esse país. Vamos fazer
a seguinte combinação: suponha que você adote uma política que leva todas as
pessoas a adiarem por um ano a compra de um novo automóvel. O que vai acontecer
com o país? Quebra a indústria metal-mecânica. Quebra a siderurgia. Quebra em
cadeia tudo, até a fabricação de goiabada que os operários desempregados não
poderão comprar. Você vai fazer com que os brasileiros não comprem mais nada se
endividando? Esse é o projeto do Dr. Henrique Meirelles? Não. O que pretende é
impedir que o Governo Federal desenhe um futuro para o país. Isso ele impede,
com essa decisão que toma. Você acha que se um país não investir em
infraestrutura urbana as cidades vão prosperar? A partir da decisão do Dr.
Henrique de que se o país se endividar é ruim, ele deveria, também, recomendar
que todas as empresas não se endividem. Mas, se todas as empresas não se
endividarem, para onde vai o país? Para um buraco colossal! Nenhuma economia
capitalista se sustenta sem que cadeias de débito e crédito virem os
protagonistas, sem que haja uma fronteira de expansão para a economia. Qual é a
expansão para a Economia que o Dr. Meirelles quer ? Eu não sei e ninguém
pergunta a ele! Estamos indo para lugar nenhum e ninguém se preocupa ? Vamos
resolver como ? Não indo a lugar nenhum ? Confesso que não consigo entender o
Dr. Meirelles e eu não entendo o debate brasileiro atual. É possível que as
pessoas resolvam essa questão do debate dizendo coisas de conteúdo muito
discutível e enigmático.
PHA: Uma última questão: os jornais,
especialmente os jornais alinhados com a Globo e seus diversos subprodutos,
tentam estabelecer o princípio de que a recuperação econômica já se sente, já
está à vista de todos, exatamente por causa dessa recuperação da confiança. O
senhor está vendo essa recuperação da economia?
Prof. Lessa: Não, eu não estou vendo. Eu tenho percebido que o ritmo da
atrofia econômica diminuiu - quer dizer, a taxa de perda de substância
diminuiu. Porém, não consigo perceber ainda sinais de confiança. Se eles vierem
a surgir, surgirão por atos de transigência divina, porque... deixa eu te dizer
uma última coisa: a inflação. Veja bem: para quem tem emprego, (a inflação) é
algo que reduz o poder de compra de quem não mantém o rendimento, mesmo
trabalhando. Agora, para quem está desempregado, a inflação é infinitas vezes
colossal, sempre, porque o desemprego é não receber nada. Não recebendo nada, a
pessoa está, literalmente, contra a parede. Então, qualquer proposta para
enfrentar a situação brasileira deveria partir dessa coisa absolutamente
elementar: os brasileiros têm que ter direito a emprego. Como se propõe que o
Brasil ascenda no mundo, se há fome no país? Como é que se propõe a um país
cortar seus investimentos públicos quando existem lacunas óbvias em relação ao
futuro? Como se pretende empurrar uma economia fazendo com que as pessoas
tenham medo do amanhã? O grave não é o hoje, o muito grave é o amanhã não
prometer nada em relação ao hoje. Há alguma promessa no ar? Não percebo. E acho
que não há cobrança...
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