quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Bifo: Ensaio sobre o Tecnofascismo

 Do Outras Palavras


Relações sociais criadas nas últimas décadas remetem aos campos nazistas. Agora, explorados estão tão submetidos, material e psiquicamente, que a solidariedade torna-se quase impossível. Este inferno tragará até as classes médias do Ocidente

Foto publicada pelo site CTXT
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Por Franco ‘Bifo’ Berardi, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

“Caliban: Você me ensinou a língua
e meu benefício é que eu sei amaldiçoar.
“A peste vermelha leva você por me ensinar sua língua.”
Shakespeare: A Tempestade

Colonialismo histórico: extrativismo de recursos físicos

A história do colonialismo é uma história de depredação sistemática do território. O objeto da colonização são os locais físicos ricos em recursos de que o Ocidente colonialista necessitava para a sua acumulação. O outro objeto da colonização são as vidas de milhões de homens e mulheres explorados em condições de escravatura no território sujeito ao domínio colonial, ou deportados para o território da potência colonizadora.

Não é possível descrever a formação do sistema capitalista industrial na Europa sem ter em conta o fato de que este processo foi precedido e acompanhado pela subjugação violenta de territórios não europeus e pela exploração em condições de escravatura da força de trabalho subjugada em os países colonizados ou deportados para países dominantes. O modo de produção capitalista nunca poderia ter sido estabelecido sem extermínio, deportação e escravidão.

Não teria havido desenvolvimento capitalista na Inglaterra da era industrial se a Companhia das Índias Orientais não tivesse explorado os recursos e o trabalho dos povos do continente indiano e do Sul da Ásia, como relata William Dalrymple em The Anarchy, The relentless rise of the East India Company (2019).

Não teria havido desenvolvimento industrial em França sem a exploração violenta da África Ocidental e do Magreb, para não mencionar os outros territórios sujeitos ao colonialismo francês entre os séculos XIX e XX. Não teria havido desenvolvimento industrial do capitalismo estadunidense sem o genocídio dos povos nativos e sem a exploração escravista de dez milhões de africanos deportados entre os séculos XVII e XIX.

A Bélgica também construiu o seu desenvolvimento na colonização do território congolês, acompanhada por um genocídio de brutalidade inimaginável. Martin Meredith escreve a esse respeito:

“A fortuna do rei Leopoldo

veio da borracha bruta. Com a invenção dos pneus, para bicicletas e depois para automóveis, por volta de 1890, a procura pela borracha cresceu enormemente. Utilizando um sistema de trabalho escravo, as empresas que detinham concessões e partilhavam os seus lucros com Leopoldo saquearam das florestas equatoriais do Congo toda a borracha que puderam encontrar, impondo cotas de produção aos aldeões e fazendo reféns quando necessário. Aqueles que não cumpriram as suas cotas eram chicoteados, presos e até mutilados, cortando-lhes as mãos. Milhares de pessoas morreram resistindo ao regime da borracha de Leopoldo. Muitos mais tiveram que abandonar as suas aldeias…” (Martin Meredith: The State of Africa, Simon & Schuster, 2005, p. 96).

Muitos autores contemporâneos insistem nesta prioridade lógica e cronológica do colonialismo sobre o capitalismo.

“A era das conquistas militares precedeu em séculos o surgimento do capitalismo. Foram precisamente estas conquistas e os sistemas imperiais que delas derivaram que promoveram a ascensão imparável do capitalismo” (Amitav Gosh: La maldición de la nuez moscada, p. 129).

E segundo Cedric Robinson: “A relação entre o trabalho escravo, o tráfico de escravos e a formação das primeiras economias capitalistas é evidente” ( Marxismo Negro ).

Poucos, porém, observaram como as técnicas utilizadas pelos países liberais para subjugar os povos do Sul global são exatamente as mesmas utilizadas pelo nazismo de Hitler nas décadas de 1930 e 1940, com a única diferença de que Hitler usou técnicas de extermínio contra a população europeia, e contra os judeus que eram parte integrante da população europeia.

Um desses poucos é, surpreendentemente, o ex-secretário de Estado dos EUA Zbigniew Brzeziński que, num artigo de 2016 intitulado Rumo a um realinhamento global, teve a honestidade intelectual de escrever: “Massacres periódicos deram origem, nos últimos séculos, a extermínios comparáveis aos dos nazistas durante a Segunda Guerra Guerra Mundial”. O artigo de Brzezinski conclui com estas palavras: “Tão impressionante quanto a escala destas atrocidades é a rapidez com que o Ocidente as esquece.”

A memória histórica é muito seletiva quando se trata dos crimes da civilização branca. Em particular, a memória do extermínio das populações não europeias não recebe atençãe não faz parte da memória coletiva, enquanto um culto obrigatório é dedicado à Shoah em todos os países ocidentais.

A civilização branca considera Hitler como o Mal Absoluto, enquanto os britânicos Warren Hastings e Cecil Rhodes, o alemão Lothar von Trotha, exterminador do povo Herrero, ou o rei Leopoldo II da Bélgica são esquecidos, se não perdoados, pela memória branca.

Como o general Rodolfo Graziani, torturador da Líbia e da Etiópia, que foi gravemente ferido num ataque em Adis Abeba, mas infelizmente salvou a sua vida, e que depois da guerra foi perdoado pelo governo italiano para que pudesse tornar-se presidente honorário do Movimento Social Italiano, o partido dos assassinos que agora governa novamente em Roma.

Exterminaram populações inteiras para impor o domínio econômico da Grã-Bretanha, Bélgica, Alemanha ou França, para não mencionar a Itália. Porém, não são lembrados, pois só Hitler merece ser execrado para sempre, já que suas vítimas não tinham pele negra.

Quanto aos exterminadores dos povos das pradarias norte-americanas, são mesmo objeto de um culto heróico que Hollywood decidiu celebrar.

A colonização agiu de forma irreversível não só a nível material, mas também a nível social e psicológico. Contudo, o principal legado do colonialismo é a pobreza endêmica de áreas geográficas que foram saqueadas e devastadas a tal ponto que não conseguem escapar à sua condição de dependência. A devastação ecológica de muitas áreas africanas e asiáticas empurra hoje milhões de pessoas à procura refúgio através da emigração. Depois, encontram a nova face do racismo branco: a rejeição, ou uma nova escravatura, como ocorre na produção agrícola ou no setor da construção e logística em países europeus.

Dado que o processo de descolonização não conseguiu transformar a soberania política em autonomia econômica, cultural e militar, o colonialismo surge no novo século com novas técnicas e modalidades, essencialmente desterritorializadas, embora as formas territoriais do colonialismo não sejam anuladas pela soberania formal dos que desfrutam (por assim dizer) dos países do Sul global.

Com o termo hipercolonialismo refiro-me precisamente a estas novas técnicas, que não suprimem as antigas baseadas no extrativismo e no roubo (de petróleo ou de materiais essenciais para a indústria eletrônica, como o coltan [de onde se extrai o nióbio e o tântalo]), mas antes dão origem a uma nova forma de extrativismo que tem a rede digital como meio e como objeto tanto os recursos físicos da força de trabalho capturada digitalmente quanto os recursos mentais dos trabalhadores que permanecem no Sul global, mas produzem valor de forma desterritorializada, fragmentada e tecnicamente coordenada.

Hipercolonialismo: extrativismo de recursos mentais

Desde que o capitalismo global foi desterritorializado através das redes digitais e da financeirização, a relação entre o Norte e o Sul globais entrou numa fase de hipercolonização.

A extração de valor do Sul global ocorre em parte na esfera semiótica: captura digital de mão de obra muito barata, escravatura digital e criação de um circuito de trabalho escravo em setores como a logística e a agricultura. Estes são alguns dos modos de exploração hipercolonial integrados no circuito do Semiocapital.

A escravatura – que há muito consideramos um fenômeno pré-capitalista e que foi uma função indispensável da acumulação original de capital – reaparece hoje de forma generalizada e onipresente graças à penetração do comando digital e da coordenação desterritorializada. A linha de montagem do trabalho foi reestruturada de forma geograficamente deslocalizada: os trabalhadores que dirigem a rede global vivem em locais a milhares de quilómetros de distância, pelo que não conseguem lançar um processo de organização e autonomia.

A formação de plataformas digitais lançou sujeitos produtivos que não existiam antes da década de 1980: uma força de trabalho digital que não consegue se reconhecer como sujeito social devido à sua composição interna.

Este capitalismo de plataforma funciona em dois níveis: uma minoria da força de trabalho dedica-se à concepção e comercialização de produtos imateriais. Cobram salários elevados e se identificam com a empresa e com os valores liberais. Por outro lado, um grande número de trabalhadores geograficamente dispersos dedica-se a tarefas de manutenção, controle, etiquetagem, limpeza, etc. Trabalham online por salários baixíssimos e não possuem nenhum tipo de representação sindical ou política. No mínimo, não podem sequer ser considerados trabalhadores, porque estas formas de exploração não são de forma alguma reconhecidas e os seus escassos salários são pagos de forma invisível, através da rede celular. No entanto, as condições de trabalho são geralmente brutais, sem horários ou direitos de qualquer tipo.

O filme The Cleaners (2018), de Hans Block e Moritz Riesewick, narra as condições de exploração e esgotamento físico e psicológico a que está submetida esta massa de semitrabalhadores precários, recrutados online segundo o princípio da plataforma Mechanical Turk, criadas e gerida pela Amazon.

Entre os anos 1990 e a primeira década do novo século, formou-se esta nova força de trabalho digital, operando em condições que tornam quase impossíveis a autonomia e a solidariedade.

Houve tentativas isoladas de trabalhadores digitais de se organizarem em sindicatos ou de contestarem as decisões das suas empresas. Penso, por exemplo, na revolta de oito mil trabalhadores do Google contra a subordinação ao sistema militar.

Estas primeiras demonstrações de solidariedade ocorreram, no entanto, onde a força de trabalho digital está reunida em grande número e recebe salários elevados. Mas, em geral, o trabalho em rede parece não regulamentado, porque é precário, descentralizado e porque, em grande medida, ocorre em condições de escravidão.

No livro Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi escreve que quando foi internado no campo de extermínio “ele esperava pelo menos a solidariedade entre os companheiros de sofrimento”, mas depois teve que reconhecer que os internados eram “mil mônadas seladas, entre as que há uma luta desesperada, oculta e contínua.” Esta é a “zona cinzenta” onde a rede de relações humanas não se reduz a vítimas e perseguidores, porque o inimigo estava por perto, mas também por dentro.

Em condições de extrema violência e terror permanente, cada indivíduo se vê forçado a pensar constantemente na sua própria sobrevivência e é incapaz de criar laços de solidariedade com outras pessoas exploradas. Tal como nos campos de extermínio, como nas plantações de algodão dos estados escravistas da Terra da Liberdade, também no circuito escravista imaterial e material que a globalização digital contribuiu para criar, as condições de solidariedade parecem estar banidas.

É o que eu chamaria de Hipercolonialismo, função dependente do Semiocapitalismo: extração violenta de recursos mentais e de tempo de atenção em condições de desterritorialização.

Hipercolonialismo e migração. O genocídio que vem

Mas o Hipercolonialismo não é apenas a extração do tempo mental, mas também o controle violento dos fluxos migratórios resultantes da circulação ilimitada de fluxos de informação.

Dado que o Semiocapitalismo criou as condições para a circulação global da informação, em territórios distantes das metrópoles, pode-se receber toda a informação necessária para se sentir parte do ciclo de consumo e do próprio ciclo de produção.

Primeiro se recebe a publicidade, depois um acúmulo ingente de imagens e palavras que buscam convencer todo ser humano da superioridade da civilização branca, da extraordinária experiência que representa a liberdade de consumo e da facilidade com que todo ser humano pode acessar o universo de bens e oportunidades.

Claro que tudo isto é falso, mas bilhões de jovens que não têm acesso ao paraíso publicitário aspiram a colher os seus frutos. Ao mesmo tempo, as condições de vida nos territórios do Sul global tornaram-se cada vez mais intoleráveis, porque estão efetivamente piorando com as mudanças climáticas, mas também porque enfrentam inevitavelmente as oportunidades ilusórias que o ciclo imaginário projeta na mente colectiva.

Assim, por necessidade e desejo, uma massa crescente de pessoas, especialmente jovens, desloca-se fisicamente em direção ao Ocidente, que reage a este cerco com medo, agressão e racismo. Por um lado, a infomáquina envia mensagens sedutoras e chama ao centro, de onde emanam fluxos de atração. Por outro lado, porém, aqueles que acreditam nisso e se aproximam da fonte da ilusão acabam em um processo massacrante.

A população do Norte global, cada vez mais idosa, pouco prolífica, economicamente em declínio e culturalmente deprimida, vê as massas migrantes como um perigo. Temem que os pobres da terra levem a sua miséria às metrópoles ricas. Eles são apresentados como a causa dos infortúnios sofridos pela minoria privilegiada: uma classe de políticos especializados em semear o ódio racial ilude os velhos brancos, fazendo-os acreditar que se alguém pudesse acabar com aquela perturbadora massa de jovens que pressionam as portas da fortaleza, se alguém pudesse eliminá-los, destruí-los, aniquilá-los, então os bons tempos voltariam, os Estados Unidos seriam grande novamente e a moribunda pátria branca recuperaria a sua juventude.

Na última década, a linha que divide o Norte do Sul, a linha que vai da fronteira entre o México e o Texas até ao Mar Mediterrâneo e às florestas da Europa Central e Oriental, se converteu numa zona onde uma guerra infame é travada: o coração turvo da guerra civil mundial. Uma guerra contra pessoas desarmadas, exauridas pela fome e pelo cansaço, atacadas por policiais armados, cães farejadores, fascistas sádicos e, sobretudo, pelas forças da natureza.

Apesar dos cintilantes anúncios de mercadorias que encorajam os idiotas consumistas, e apesar da propaganda dos porcos neoliberais, a lógica do Semiocapital funciona apenas de uma maneira: o Norte global infiltra-se no Sul através dos incontáveis tentáculos da rede: uma ferramenta para capturar fragmentos de trabalho desterritorializado.

Mas a penetração física do Sul, que pressiona para aceder a territórios onde o clima ainda é tolerável, onde há água, onde a guerra ainda não chegou com toda a sua força destrutiva, é repelida pela força e pelo genocídio. Uma parte significativa, senão majoritária, da população branca decidiu entrincheirar-se na fortaleza e utilizar todos os meios para repelir a onda migratória. Os colonialistas de ontem – aqueles que nos séculos passados atravessaram os mares para invadir os territórios-presas – clamam agora contra a invasão, porque milhões de pessoas estão pressionando as fronteiras da fortaleza.

Esta é a principal frente de guerra que se desenvolve desde o início do século e que se expande, assumindo por toda parte os contornos do extermínio. Não é a única frente de guerra: outra frente da caótica guerra mundial é a interbranca, que confronta a democracia liberal imperialista com a soberania autoritária fascista.

A desintegração do Ocidente, e em particular da União Europeia, como resultado da guerra interbranca, corre paralelamente à guerra genocida na fronteira: dois processos distintos entrelaçados no cenário da década de 1920.

Como sair vivo? Esta é a pergunta que todos os desertores se fazem.

Precisamos nos organizar para desertarmos juntos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A esquerda latino-americana em meio à China, os Estados Unidos, o progressismo tardio e a extrema-direita

 Do Counterpunch


Claudio Katz acaba de publicar um livro em espanhol intitulado America Latina en la encrucijada global [1] (“América Latina na Encruzilhada Global”). Claudio Katz é economista marxista e professor da Universidade de Buenos Aires, autor de cerca de quinze livros sobre a teoria da dependência cinquenta anos após seu surgimento, imperialismo hoje e questões enfrentadas pela esquerda latino-americana. Seu novo livro se concentra na América Latina e lida com as relações do continente com a China e com o imperialismo dos EUA.

O livro está em cinco partes: na Parte 1 Katz analisa a estratégia do imperialismo americano desde o início do século XIX até os dias atuais. Ele demonstra que o imperialismo americano passou por uma fase crescente durante a qual substituiu antigas potências coloniais, como Espanha e Portugal durante o século XIX e a Grã-Bretanha a partir do final da Primeira Guerra Mundial. Agora, depois de dominar totalmente a América Latina, o imperialismo dos EUA entrou em declínio, em particular com a ascensão da China como uma grande potência. Nesta primeira parte, Katz também analisa a política da China na América Latina e a atitude das classes dominantes na América Latina em relação à nova grande potência.

A segunda parte do livro enfoca as características da extrema direita na América Latina, sua natureza específica e a forma como ela opera. Essa seção termina com uma análise do fenômeno de Javier Milei, que se tornou presidente da Argentina no final de 2023.

A terceira parte do livro analisa as experiências do novo progressismo que emergiu das grandes mobilizações populares que abalaram várias partes da América Latina em 2019.

A Parte 4 analisa os debates dentro da esquerda sobre esses novos governos progressistas e também olha especificamente para o que Claudio Katz vê como os quatro países que compõem um “eixo alternativo” para o imperialismo dos EUA – Venezuela, Bolívia, Nicarágua e Cuba. A Parte 5 analisa novas formas de resistência popular nos últimos anos e aborda a questão das alternativas.

Estados Unidos e China vis-à-vis América Latina

Como mostra Claudio Katz, os Estados Unidos ainda têm uma posição dominante na América Latina. De acordo com Katz: “Entre 1948 e 1990, o Departamento de Estado dos EUA participou da derrubada de 24 governos. Em quatro casos, as tropas americanas foram implantadas; em três casos, os assassinatos da CIA foram os meios usados; e em 17 casos, golpes de Estado foram dirigidos a partir de Washington. [2] (Katz, p. 119). 49) Os EUA têm bases militares em vários países, incluindo a Colômbia, onde estão localizadas nove bases norte-americanas. Mas também há bases americanas no sul do continente (duas no Paraguai). A frota dos EUA está preparada para intervir em toda a América Latina, tanto nas costas do Atlântico Sul e do Pacífico.

Os Estados Unidos têm doze bases militares no Panamá, doze em Porto Rico, nove na Colômbia, oito no Peru, três em Honduras e duas no Paraguai. Eles também têm instalações semelhantes em Aruba, Costa Rica, El Salvador e Cuba (Guantánamo). Nas Ilhas Malvinas, a Grã-Bretanha parceira dos EUA fornece uma ligação de rede da OTAN para locais no Atlântico Norte. Katz, p. 50[3]

Ao mesmo tempo, Claudio Katz mostra que, desde a década de 2010, a China conseguiu competir com os interesses dos EUA na América Latina e no Caribe com uma política de investimento que permite aquisições de empresas e uma política de crédito muito dinâmica e massiva. O que estamos a falar aqui? De fato, os Estados Unidos conseguiram convencer os governos latino-americanos, particularmente da segunda metade do século XIX e ao longo do século XX, a assinar acordos de livre comércio. Como os Estados Unidos tinham uma economia que era muito mais avançada tecnologicamente do que os países da América Latina, graças a esses tratados, ela sistematicamente venceu os produtores locais – capitalistas na indústria e no agronegócio, mas também pequenos produtores agrícolas. Os produtos americanos eram superiores em termos de produtividade e tecnologia e, portanto, mais competitivos.

Mas os Estados Unidos são uma potência econômica em declínio, enquanto a China está crescendo. Comparado com as economias da América Latina, mas também com os Estados Unidos, a China agora tem uma vantagem em termos de produtividade e, portanto, em termos de competitividade, em várias áreas tecnológicas. E a China está agora usando as mesmas ferramentas econômicas que os Estados Unidos usaram sistematicamente – ou seja, assinar tratados bilaterais de livre comércio com o maior número possível de países da América Latina e do Caribe. Enquanto isso, o tratado de livre comércio proposto pelos Estados Unidos para todas as Américas (ACLA), cujas disposições garantiram a dominação dos EUA, foi rejeitado por toda uma série de governos sul-americanos em 2005. Desde então, o declínio econômico dos EUA em relação à China se acentuou, e não tem mais meios para tentar convencer os países do Sul a assinar acordos de livre comércio. Acima de tudo, os EUA não estão mais em condições de realmente se beneficiar de tais acordos, por causa da concorrência da China. Como resultado, é a China que favorece o dogma do livre comércio e os benefícios mútuos a serem obtidos pelas várias economias se adotarem esse tipo de acordo. A China se beneficia disso porque, como aponta justamente Claudio Katz, seus produtos são muito mais competitivos na América Latina do que os produtos fabricados pelas economias latino-americanas ou pelos Estados Unidos, e os produtos exportados pelas economias latino-americanas para a China são essencialmente matérias-primas, minerais e soja transgênica. Como resultado, eles não são realmente competitivos com produtos chineses. A China está colhendo todos os benefícios do tipo de relacionamento que está desenvolvendo com os países latino-americanos, ganhando participação de mercado em seus mercados domésticos em detrimento da produção local. Estamos testemunhando uma reprimarização das economias, e isso pode ser visto muito claramente no tipo de produtos exportados da América Latina para o mercado mundial, particularmente para a China – que está se tornando o maior parceiro comercial de vários países da América Latina, Argentina e Peru sendo dois exemplos.

Claudio Katz demonstra que a China obtém o máximo benefício da América Latina, porque os governos latino-americanos são incapazes de conceber uma política comum e uma política de integração que favoreça o desenvolvimento do mercado interno e da produção local para esse mercado interno.

Ele ressalta que a China não se comporta inteiramente como um país imperialista tradicional; não usa a força armada.Ao contrário dos Estados Unidos, a China não acompanha seus investimentos com bases militares.

Como mencionado acima, Claudio Katz lista as agressões militares realizadas pelos Estados Unidos na América Latina – uma lista que é obviamente impressionante e em contraste gritante com o comportamento da China em relação à América Latina e ao Caribe. Como ele corretamente aponta, a China não se tornou uma potência imperialista no sentido pleno da palavra (ao contrário da Rússia, na minha própria opinião). Ele argumenta que o capitalismo não está totalmente consolidado na China. Ele quer dizer que a liderança chinesa poderia fazer uma reviravolta e se afastar do capitalismo? Francamente, isso é duvidoso. Ele também repete a afirmação de que o desenvolvimento econômico na China tirou 800 milhões de pessoas da pobreza, sem explicar em que base ele faz essa afirmação: que estudos? que números? Para falar sobre 800 milhões de pessoas sendo retiradas da pobreza, precisaríamos especificar em relação a que ano, com qual ano a população, e dizer com que base a linha de pobreza é determinada.

Esta é uma questão muito importante, e o argumento de Katz é lamentavelmente carente de fundamento. Os números que ele dá são aqueles dados pelo Banco Mundial e pelas autoridades chinesas, e mostrei em vários artigos que as avaliações do Banco Mundial são altamente questionáveis. De fato, o próprio Banco Mundial admitiu em 2008 que havia superestimado o número de pessoas retiradas da pobreza em 400 milhões.

Na ausência de quaisquer referências de Claudio Katz, só podemos nos perguntar se ele está baseando sua reivindicação em números do Banco Mundial sem dizer isso e, se não, quais dados estatísticos ele está usando. Ele faria bem em fornecer os detalhes necessários, pois isso fortaleceria seu argumento.

Por outro lado, Katz não tem dificuldade em reconhecer que uma grande classe capitalista foi restabelecida na China, e ele critica aqueles que dizem que a China está no centro do projeto socialista do nosso tempo. Ele diz que essa classe capitalista tem ambições de recuperar o poder. Katz acredita que a renovação socialista é possível; que convida a questão de saber se pode vir da liderança do PCC. Acho que temos que deixar claro que a resposta é não: a renovação socialista não virá da liderança do PCC.

Claudio Katz também está certo ao dizer que a China não faz parte do Sul global. Ele escreve:

“Todos os tratados promovidos pela China reforçam a subordinação econômica e a dependência. O gigante asiático consolidou seu status como uma economia credora, aproveitando o comércio desigual, capturando superávits e se apropriando de receitas.

A China não age como um poder imperial dominante; mas também não favorece a América Latina. Os acordos atuais exacerbam a primarização e a fuga da mais-valia. A expansão externa do novo poder é guiada pelos princípios da maximização do lucro, não pelas normas de cooperação. Pequim não é um simples parceiro e não faz parte do Sul.” (p. 73)[4]

O mito do sucesso das políticas neoliberais

Na segunda parte de seu livro, Claudio Katz começa atacando as políticas dos neoliberais latino-americanos e mostra como seu estar no poder – como são em vários países hoje – não levou a nenhum progresso real para o continente.

Katz mostra que o chamado sucesso das políticas neoliberais na América Latina nada mais é do que um mito, já que as classes dominantes e os governos que os servem continuam a ser subservientes ao imperialismo dos EUA, mas também estão se abrindo às políticas da China, que os EUA desdenham enquanto não conseguem oferecer à América Latina uma alternativa genuína em termos de desenvolvimento econômico e humano. O que interessa à China é a possibilidade de explorar as matérias-primas do continente para alimentar a “fábrica do mundo” que a China virou e, em seguida, reexportar seus produtos manufaturados para vários mercados, incluindo o mercado latino-americano.

Katz mostra que a pobreza permanece muito alta na América Latina, e está aumentando, afetando 33% da população. A pobreza extrema afeta 13,1% da população, enquanto a desigualdade está aumentando em favor dos 10% mais ricos.

O crescimento económico é muito lento se considerarmos a taxa de crescimento no período 2010-2024, que foi de 1,6% ao ano. Isso é menor do que o período 1980-2009, quando o crescimento atingiu 3%, e o período 1951-1979, quando chegou a 5% ao ano.

Katz então olha para trás para os movimentos de independência latino-americanos, a maioria dos quais surgiram na década de 1820. Ele mostra que a independência só levou a um novo tipo de subordinação a novas potências: primeiro a Grã-Bretanha, que estava lutando para conquistar seu próprio espaço às custas da Espanha e de Portugal, e depois, a partir do final do século XIX, os Estados Unidos. Devo salientar que abordei esta questão em meu livro O Sistema da Dívida,[5][5] em que dedico vários capítulos ao século XIX e início do século XX, e no qual demonstro que são ao mesmo tempo os acordos de livre comércio e o tipo de endividamento em que os governos dos países latino-americanos se envolveram que levaram a um novo ciclo de dependência/subordinação, com o papel fundamentalmente prejudicial desempenhado pelas classes dominantes.

A ascensão da extrema direita na Europa e na América Latina: especificidades e semelhanças

Então, ainda na Parte 2, Claudio Katz dá uma olhada muito interessante na ascensão da extrema direita na América Latina. Para mostrar a natureza específica desta ascensão, ele começa analisando as características da extrema direita na Europa e de seu crescimento. Ele então analisa as características específicas da extrema direita na América Latina: ao contrário da extrema direita na Europa ou nos Estados Unidos, não coloca a questão da imigração no centro de sua retórica – embora em alguns países, como o Chile, levante o espectro do “perigo” que os migrantes representam. Mas esta não é uma tendência geral, como é nos discursos de Donald Trump e na retórica das diferentes variantes da extrema direita na Europa, incluindo as do governo – por exemplo, Giorgia Meloni na Itália, Viktor Orbán na Hungria, o RN na França, AfD na Alemanha, VB e NVA na Bélgica, FP na Áustria, etc.

Na América Latina, a extrema direita, por exemplo, na Bolívia e no Peru, usa um discurso racista dirigido contra a maioria indígena, os povos nativos, e não contra os migrantes. O espectro da “ameaça comunista”, na forma de Castro, chavismo e outras experiências latino-americanas em que a esquerda radical obteve ganhos, é outro tema encontrado com mais frequência na retórica da extrema direita latino-americana do que na Europa. Isso porque na Europa, nos últimos cinquenta anos, a ameaça direta das experiências orientadas para o socialismo, para a direita, não tem sido tão tangível quanto na América Latina. Katz também mostra a importância dos movimentos evangélicos, que são extremamente reacionários, e da reivindicação da extrema-direita latino-americana da supremacia das populações brancas de origem europeia, e especialmente ibérica. A extrema-direita latino-americana amplia a colonização desde Cristóvão Colombo como uma conquista civilizadora, o que explica as estreitas conexões entre a extrema-direita em vários países latino-americanos e o partido Vox na Espanha, que faz o mesmo.

Katz também mostra que, em alguns casos, a extrema direita demonstrou uma capacidade de mobilização de massa. Um exemplo notável é o Bolsonarismo, que conseguiu assumir o governo do Brasil em 2019 até a reeleição de Lula da Silva para a presidência no final de 2022. E o Bolsonarismo mantém essa capacidade de mobilização de massas apesar de sua derrota eleitoral, como demonstrou em fevereiro de 2024, quando quase 200 mil pessoas se reuniram em São Paulo.

A repressão extremamente dura das classes “perigosas” e dos delinquentes é um aspecto importante da retórica da extrema-direita latino-americana. Tal é o caso do governo de Nayib Bukele, em El Salvador, [6]que realizou inúmeras execuções extrajudiciais e criou a maior prisão da América Latina em nome da luta contra o narcotráfico. Outro exemplo é o uso de milícias de Jair Bolsonaro nos distritos pobres, em particular no Rio de Janeiro. 

A segunda parte do livro de Claudio Katz também contém uma reflexão sobre o fascismo e a extrema direita hoje. Eu não vou entrar em detalhes sobre os conceitos que Katz usa; Vou deixar para o leitor descobrir o que é uma contribuição altamente interessante nesta área.

Então, ainda na Parte 2, Katz examina a política da extrema direita usando uma série de exemplos de diferentes países.Ele toma o exemplo do Brasil de Bolsonaro e da Bolívia, seguido pela Venezuela, Argentina, Colômbia e Peru de Javier Milei, seguido por alguns parágrafos referentes a Nayib Bukele em El Salvador e à situação no Equador e no Paraguai.

Entre as explicações para a ascensão da extrema direita está, naturalmente, a decepção de um setor das classes trabalhadoras com suas experiências com governos progressistas; mas há também o impacto do imperialismo americano, a atividade das igrejas evangélicas e a falta de uma reação firme à ameaça da extrema direita pelos governos progressistas.Katz mostra que quando houve uma reação muito forte, como na Bolívia, produziu resultados.

A nova onda de progressismo latino-americano: progressismo tardio moderado, muitas vezes trazido ao poder por mobilizações em larga escala

Na Parte 3, Claudio Katz analisa as experiências dos governos progressistas. Ele começa observando que houve uma onda progressiva que começou em 1999 e terminou em 2014. Seguiu-se uma reação conservadora que provocou mobilização popular em vários países e levou, especialmente de 2021-2022, a uma nova onda progressiva. Ele enfatiza que essa nova onda progressista está um passo atrás do período 1999-2014, na medida em que os governos progressistas estão buscando políticas muito menos radicais do que as de Hugo Chávez na Venezuela (1999-2012), por exemplo, ou Evo Morales no primeiro período de sua presidência na Bolívia (2005-2011) ou Rafael Correa no Equador (2007-2011). Essa onda progressista menos radical está afetando os países que não foram afetados pela onda anterior – México, Colômbia desde 2022 com o governo de Gustavo Petro e Chile com o governo de Gabriel Boric.

Claudio Katz analisa sucessivamente o recente – desde o início de 2023 – o retorno de Lula à presidência do Brasil e a eleição de Gustavo Petro como presidente da Colômbia. Ele analisa o mandato de Alberto Fernández como presidente da Argentina de 2019 até a vitória de Javier Milei no final de 2023. Ele analisa as políticas de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México desde 2018, as de Gabriel Boric no Chile e, finalmente, as do Peru Pedro Castillo, que foi derrubado em 2022.

Concordo plenamente com a avaliação de Katz sobre os governos que acabei de mencionar, e recomendo que leiam esta secção.

Resumindo, o que se destaca sobre os governos progressistas do período 2018-2019, no caso do México e da Argentina, e depois do período 2021-22 para o Brasil, Colômbia, Chile e Peru, é sua falta de radicalismo; eles estão mantendo plenamente o modelo extrativista da agroexportação, e nenhum tratado de livre comércio foi revogado. Katz é particularmente duro em suas críticas ao governo de Gabriel Boric no Chile e Pedro Castillo no Peru. Deixo aos leitores ler os seus argumentos, que eu partilho muito.

A política internacional de Lula

 Na Parte 3, Claudio Katz analisa as políticas internacionais e regionais de vários governos progressistas e, em particular, a mais importante economicamente: a do Brasil. Ele discute o apoio de Lula da Silva ao tratado entre o Mercosul e a União Europeia. Uma das razões pelas quais Lula está pressionando para reduzir o desmatamento na Amazônia é atender às demandas da UE, que está sob pressão dos lobbies industriais europeus, mas também de protestos nos países europeus por movimentos sociais e agricultores, que citam concorrência desleal dos exportadores brasileiros. As demandas ambientais estão sendo apresentadas e, é claro, Lula quer reduzir o desmatamento devido à pressão dos povos indígenas da Amazônia e dos movimentos ambientais; mas ele está ainda mais convencido da necessidade de fazê-lo porque é uma demanda da UE e quer implementar o tratado Mercosul-UE.

Gostaria de acrescentar que a esquerda na Europa se opõe a este tratado. Também deve-se ressaltar que movimentos sociais e ambientalistas de esquerda, bem como os movimentos de povos nativos da América Latina e dos países do Mercosul, se opõem à assinatura do tratado, que ainda está sendo negociado, há anos.

Claudio Katz também explica que o governo Lula quer adotar uma moeda de não-dolar entre os países do Mercosul para reduzir o uso do dólar. A ideia de Lula é importar gás líquido através de um gasoduto que iria para a fronteira sul do Brasil e depois para Porto Alegre, substituindo o fornecimento de gás da Bolívia pelo Brasil, uma vez que as reservas bolivianas estão secando a um ritmo acelerado. Isso é importante para fortalecer as relações econômicas entre a Argentina e o Brasil, porque a Argentina não tem reservas de câmbio, e o Brasil, que exporta pesadamente para a Argentina, precisa para que a Argentina possa comprar seus bens – particularmente sob pressão dos principais capitalistas industriais do Brasil, fortemente investidos na indústria automobilística e para quem o mercado argentino é importante. Portanto, a adoção de uma unidade de conta no Mercosul, e em particular entre Argentina e Brasil, permitiria que a Argentina ficasse sem dólares, que não possui em quantidade suficiente, na compra de produtos importados do Brasil. O Brasil de Lula também está interessado em explorar o campo de gás Vaca Muerta na Argentina, que se opõe aos movimentos sociais, de esquerda e ambientais naquele país.

Katz também explica que Lula gostaria de trazer Bolívia e Venezuela para o Mercosul.

Note-se que neste livro Claudio Katz não faz uso da contribuição teórica do economista marxista brasileiro Rui Mauro Marini sobre o sub-imperialismo brasileiro ou imperialismo periférico e seu papel em relação aos seus vizinhos. Katz fez isso em outras obras, mas poderia ter sido uma ferramenta útil para os leitores deste livro. Uma segunda omissão do livro de Katz (reconhecidamente ele não pode escrever sobre tudo) é o BRICS, o papel do Brasil e as expectativas de Lula em relação aos BRICS. O papel dos BRICS, a questão de se adotar ou não uma moeda comum e o papel do novo banco de desenvolvimento com sede em Xangai – que é presidido pela ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, que sucedeu Lula – não são aspectos marginais do problema geral abordado por Claudio Katz em seu livro. Eu sinto que eles teriam merecido um desenvolvimento mais completo.

Os limites das políticas dos governos progressistas

Então, ainda na Parte 3, depois de discutir a política do Mercosul, os tratados de livre comércio e a relação econômica com os Estados Unidos, Claudio Katz retorna à política da China na América Latina em uma seção altamente interessante que eu não tenho tempo para resumir aqui, mas que contém informações importantes. Concordo também com ele que os governos progressistas não assumiram uma posição proporcional ao desafio colocado pela questão da dívida e à necessidade de auditar as dívidas reivindicadas na América Latina. E concordo que o Brasil de Lula, durante os primeiros mandatos de Lula no início dos anos 2000, sabotou o lançamento do Banco do Sul. Em um artigo recente sobre esse assunto, entrei em detalhes sobre a sabotagem de Lula do lançamento do Banco nos anos seguintes a 2007-2008, e assim partilho totalmente a análise de Katz sobre a questão.

Quanto à questão das alternativas, Katz argumenta que, se os governos progressistas realmente quisessem tentar implementar uma alternativa ao modelo de exportação extrativista neoliberal no continente, eles deveriam trabalhar juntos para criar uma empresa pública latino-americana para explorar o lítio.

Katz também argumenta que os governos progressistas devem adotar uma política de soberania financeira, libertando-se do atual tipo de endividamento e do controle exercido pelo FMI sobre a política econômica de muitos países da região. Ele argumenta que deveria haver uma auditoria geral das dívidas e que alguns dos países mais frágeis devem suspender seus pagamentos da dívida. Ele diz que, se isso não for feito, não haverá como colocar uma alternativa no lugar, e ele argumenta que o Banco do Sul deve novamente seguir o caminho em que estava, para criar uma nova arquitetura continental. Mais uma vez, só posso partilhar o seu ponto de vista.

Debate na esquerda latino-americana

Na Parte 4 de seu livro, Claudio Katz aborda debates em curso dentro da esquerda latino-americana, em particular sobre a atitude que deve ser adotada em relação à direita e extrema direita e em relação aos governos progressistas e suas limitações.

Ele afirma que é um dever expressar críticas claras aos governos progressistas... sem, é claro, identificar erroneamente os inimigos. Não há dúvida de que a primeira coisa a fazer é desafiar as políticas da direita e suas forças políticas, e as intervenções imperialistas – particularmente as dos Estados Unidos – e também a política da China na região. Mas não devemos limitar-nos a isso. Também precisamos analisar e criticar, quando necessário, os limites das políticas dos chamados governos progressistas. Claudio Katz mostra como o governo Alberto Fernández na Argentina, a partir de 2019, tem pesada responsabilidade pela vitória do anarco-capitalista de extrema-direita Javier Milei.

No que diz respeito a estas políticas, gostaria de citar Katz, que diz:

“Devemos lembrar que a opção de esquerda é forjada enfatizando que a direita é o principal inimigo e que o progressismo falha por causa da fraqueza, cumplicidade ou falta de coragem em relação ao seu adversário. Mas não devemos confundir os governos de direita com esses governos progressistas e dizer que eles são da mesma natureza. Há uma distinção fundamental entre os dois, e se esquecermos disso seremos incapazes de conceber uma alternativa e uma política correta. 220) [7]

Para dar um exemplo, Katz explica que a incapacidade de uma parte da esquerda no Equador de ver o perigo representado pela eleição do banqueiro Guillermo Lasso, levou à vitória deste último em 2021, enquanto uma aliança entre os componentes da esquerda poderia ter levado a um resultado diferente.

Como exemplo positivo, no entanto, ele mostra que a compreensão do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) da importância de dar prioridade ao combate ao perigo da reeleição de Jair Bolsonaro em 2020-2022, quando o PSOL pediu um voto a favor de Lula no primeiro turno da eleição, foi benéfico e trouxe a derrota de Bolsonaro. Porque, na verdade, a vitória de Lula sobre Bolsonaro se foi com pouquíssimos votos, e se o PSOL não tivesse pedido um voto em Lula, é bem possível que Bolsonaro tivesse sido reeleito. A esmagadora maioria dos votos de Lula veio de sua base eleitoral, mas o PSOL fez uma contribuição significativa nas margens para lhe dar a vantagem.

Neste ponto, Katz discute o recente debate (final de 2023) dentro da esquerda radical na Argentina, parte da qual não quis votar em Sergio Massa, o candidato peronista neoliberal, contra o candidato de extrema-direita Milei no segundo turno. Katz tem toda a razão para levantar esta questão e para enfatizar a importância de enfrentar a direita. No entanto, é certo que, mesmo que toda a extrema esquerda argentina, agrupada na FIT-U, tenha convocado um voto para o candidato neoliberal Massa, ainda não teria levado a uma derrota de Milei, que venceu por uma enorme margem.

Em relação ao Chile, Katz destaca o fato de que inicialmente houve uma grande mobilização da esquerda em 2021 para impedir a vitória do candidato pinochetista de extrema direita José Antonio Kast, que permitiu que o candidato de esquerda Gabriel Boric vencesse, mas que a moderação e hesitação de Boric levaram à sua derrota no referendo sobre o novo projeto de Constituição em setembro de 2022. A interpretação de Boric da rejeição da nova constituição – que na realidade era bastante moderada, enquanto ele a apresentava como muito radical – finalmente reforçou a retórica da direita, já que Boric fez concessões após concessão a eles.

Claudio Katz e o “eixo radical”: Venezuela, Bolívia e Nicarágua

Depois de analisar as políticas de governos progressistas moderados, Katz se volta para o que ele chama de “eixo radical”. Acho essa parte do livro pouco convincente. Eu não entendo por que Katz coloca a Nicarágua na mesma categoria que a Venezuela e a Bolívia, quando ele mesmo explica que a única coisa que esses três países têm em comum é que eles estão sob fogo do imperialismo dos EUA. Eu não sinto que um país possa ser definido como parte de um “eixo radical” simplesmente porque Washington está trabalhando para minar seu governo.

Seria melhor desenvolver uma categoria específica para incluir a Nicarágua. A Nicarágua é um país onde houve uma verdadeira revolução que levou à vitória em 1979. Depois veio uma derrota eleitoral em fevereiro de 1990, marcando o início de um processo de degeneração da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) sob a liderança de Daniel Ortega. Este processo foi seguido por uma verdadeira traição ao processo revolucionário anterior através de uma aliança entre Ortega e a direita – incluindo seus componentes mais reacionários – em várias questões, particularmente o aborto. Devemos também mencionar a reviravolta pró-Washington e pró-FMI tomada pelo governo de Ortega. Foi de fato essa submissão ao FMI que levou a uma rebelião popular em abril de 2018. Até abril de 2018, o regime de Daniel Ortega se deu muito bem com os Estados Unidos e o FMI. Foi o FMI que queria uma reforma da previdência que levou a uma revolta dos setores da classe trabalhadora, particularmente os jovens, que Ortega colocou de maneira absolutamente brutal, como Katz denuncia corretamente neste livro e em um artigo que data de 2018. Foi depois dessa repressão criminosa do movimento social que Washington decidiu tomar uma posição clara contra o regime de Ortega.

Felizmente, Claudio Katz é crítico da repressão de Ortega e não faz segredo do fato de que seu governo posteriormente reprimiu qualquer candidato que quisesse concorrer contra ele nas eleições subsequentes. Também colocou ex-líderes revolucionários na prisão, como Katz aponta e denuncia. Infelizmente, ele não oferece uma análise geral do que aconteceu na Nicarágua.

Acho que a análise de Katz do que aconteceu na Bolívia é em grande parte correta. No entanto, no que diz respeito à Venezuela, ele agravou suas críticas ao governo de Nicolás Maduro. Ele fala sobre o chavismo em geral, como se Maduro fosse uma extensão das políticas de Hugo Chávez, enquanto na minha opinião houve uma ruptura entre as políticas seguidas por Chávez até sua morte em 2013 e as introduzidas por Maduro. É verdade que Nicolás Maduro está reforçando as fraquezas e inconsistências que já existiam nas políticas de Chávez, mas os elementos mais problemáticos dessas políticas estão sendo amplificados pela consolidação de uma “bolivoburguesia”, que Katz também critica. Ele não faz segredo do fato de que um componente significativo do governo de Maduro é composto por um novo setor capitalista, nascido do ventre do chavismo. Mas, infelizmente, ele mal menciona a repressão das lutas sociais e o movimento operário sob Maduro. E ele não critica a maneira como Maduro está lutando contra seus ex-aliados, como o Partido Comunista Venezuelano, que foi praticamente posto fora da lei.

Claudio Katz e Cuba

Depois de discutir o que Claudio Katz chama de “eixo radical”, supostamente incluindo Venezuela, Bolívia e Nicarágua, ele se volta para uma análise de Cuba. Ele demonstra corretamente até que ponto Cuba é um exemplo, um ponto de referência e uma fonte de esperança para grande parte da esquerda latino-americana e, sem dúvida, para além da América Latina. Ele mostra que há uma tendência para uma maior desigualdade em Cuba, mas enfatiza a conquista do governo cubano no combate ao bloqueio liderado pelos EUA e os problemas enfrentados pela economia cubana. Embora concordemos em grande parte com parte da análise de Katz sobre Cuba, gostaríamos de salientar que ele adota uma posição suficientemente crítica sobre a questão das relações das autoridades cubanas com o povo nos últimos anos, particularmente no momento dos principais protestos a que Katz se refere e, em particular, a de 11 de julho de 2021. Ele não menciona o fato de que o governo cubano inicialmente respondeu ao protesto de 11 de julho de uma maneira muito desajeitada, pedindo aos comunistas que se mobilizassem nas ruas – uma abordagem que o governo então abandonou muito rapidamente porque poderia ter levado a confrontos com um resultado potencialmente prejudicial. Katz não menciona isso, nem menciona a onda de sentenças extremamente pesadas proferidas pelos tribunais cubanos contra vários manifestantes. Essas sentenças, que variam de 5 a 20 anos de prisão, são projetadas para intimidar potenciais manifestantes. Claro, Cuba está sob a ameaça constante e muito real de intervenção direta dos Estados Unidos. E desnecessário dizer, os efeitos do embargo imposto por Washington desde 1962 foram devastadores. Não há dúvida de que os Estados Unidos interferem nos assuntos internos de Cuba; mas o uso de tais sentenças pesadas merece ser criticado e, em qualquer caso, mencionado. Katz deveria ter falado sobre essas convicções e dado seu ponto de vista sobre elas.

No que diz respeito ao futuro, Claudio Katz tem razão em dizer que não é simplesmente a participação popular e o controle dos trabalhadores que resolverão os problemas de Cuba. Os problemas da economia cubana são de tal natureza que uma maior participação popular e cidadã por si só não os resolverá. O que é necessário, naturalmente, é uma política económica que responda realmente aos problemas da economia cubana, apesar do contexto totalmente desfavorável. A prioridade atualmente dada ao turismo deve ser questionada. Isso leva a uma nova dependência dos ganhos em moeda estrangeira gerados pelo turismo, ao mesmo tempo em que implica enormes custos, porque os alimentos e outros produtos necessários para a indústria do turismo têm de ser importados.

No entanto, concordo com Claudio Katz que não houve reconstituição de uma classe capitalista em Cuba até à data. A liderança cubana não quer ver a restauração do capitalismo, e devemos ter cuidado para não confundir a possibilidade que existe sob o atual sistema cubano de acumular riqueza através de iniciativa privada com o nascimento de uma classe capitalista real que poderia visar a recuperação do poder em Cuba. Por outro lado, devemos certamente nos perguntar se existe o risco de um setor da burocracia cubana considerar que, no final, a única maneira de alcançar o crescimento econômico é restaurar o capitalismo ao longo das linhas dos modelos vietnamita ou chinês. Nesse caso, uma parte dessa burocracia poderia estabelecer o objetivo de se converter em uma nova classe capitalista. Mas isso não aconteceu. Isso não quer dizer que esses setores não existem, mas no momento não estão no controle do governo cubano. O que é certo é que o governo de Cuba está em um tipo de impasse: ele não optou por restaurar o capitalismo, mas, ao mesmo tempo, não conseguiu adotar uma política econômica e uma política para o funcionamento da sociedade que garanta maior participação cidadã, permitindo que Cuba se mantenha em um quadro sustentável não capitalista, melhorando as condições de vida da população. O desafio é extremamente difícil, mas hoje é possível para Cuba. De qualquer forma, diante da política agressiva do imperialismo norte-americano, devemos nos manter unidos e defender as conquistas da revolução cubana.

 As mobilizações populares

Claudio Katz considera corretamente que houve um ciclo progressivo estendido de 1999 a 2014. Seja encerrado em 2014 ou antes – em 2011, 2012 ou 2013 – é discutível, mas independentemente disso, o ciclo durou entre uma dúzia e quinze anos: entre a eleição de Hugo Chávez no final de 1998 e as reversões que testemunhamos em vários países latino-americanos. Entre 2014 e 2019, houve um retorno aos governos de direita que aplicaram políticas neoliberais linha-dura que desencadearam uma sucessão de enormes mobilizações populares. Este foi o caso na Bolívia, Chile, Colômbia, Peru, Honduras, Guatemala e Haiti.

Com exceção do Haiti e do Equador, essas grandes mobilizações populares em 2019-2020 resultaram em forças progressistas de centro-esquerda tomando o poder, o que minou a predominância de governos de direita. Em 2023-2024, 80% da população da América Latina vivia em países com maioria progressiva. É muito importante ressaltar, como faz Claudio Katz, que as vitórias eleitorais das forças progressistas na Bolívia, Colômbia, Chile, Peru, Honduras e Guatemala só foram possíveis graças às enormes mobilizações populares que as precederam.

Argentina, Brasil e México

Como Katz aponta, três países – os mais populosos – devem ser adicionados a esta lista de países com governos progressistas: México desde 2018, Argentina entre o final de 2019 e o final de 2023, e o Brasil desde janeiro de 2023. No caso desses três países, os governos progressistas não chegaram ao poder após grandes mobilizações populares. Na Argentina, o governo de Alberto Fernández não chegou ao poder em 2019 sob o ímpeto de um enorme movimento popular, embora houvesse mobilizações contra o governo neoliberal de Mauricio Macri, presidente de 2015 a 2019. No caso do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) chegou ao poder sem o apoio de mobilização maciça no ano ou dois que antecederam sua eleição. É certo que, alguns anos antes, houve grandes mobilizações, incluindo aquelas em que ele desempenhou um papel. Esses movimentos protestaram contra a fraude eleitoral que impediu AMLO de se tornar presidente. Nem o retorno de Lula ao poder como presidente do Brasil no início de 2023 foi resultado de um enorme movimento popular. Foi o resultado, na urna, das políticas desastrosas do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro e, em particular, sua gestão calamitosa da pandemia de coronavírus.

Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras e Guatemala

Na Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras e Guatemala, por outro lado, governos progressistas foram formados como resultado das mobilizações populares em larga escala que imediatamente precederam as eleições.

Equador, Haiti e Panamá

Finalmente, como aponta Katz, em três países, repetidas grandes mobilizações nas ruas não conseguiram levar à vitória eleitoral para a esquerda ou para a esquerda. Estes três países são o Equador, o Haiti e o Panamá. No Equador, houve uma enorme mobilização popular em outubro de 2019 que ajudou a evitar um programa do FMI que consiste, em particular, de aumentar significativamente os preços dos combustíveis. Isso levou à derrota do governo de Lenín Moreno e do plano do FMI em 2019, mas uma vitória para a esquerda nas eleições de 2021 não se seguiu, em parte pelas razões que Katz dá anteriormente no livro de Katz: a divisão entre a CONAIE (Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador) e o movimento político de Rafael Correa (conhecida como “Correismo”) em abril de 2021, quando o banqueiro Guillermo Lasso foi eleito.

Houve um segundo grande surto de luta popular em junho de 2022 contra Guillermo Lasso que, como seu antecessor Lenín Moreno, foi forçado a jogar a toalha e fazer grandes concessões ao movimento popular, como relatei no epílogo I escreveu para o livro Sinchi, sobre a rebelião de junho de 2022.[8]

Essa enorme mobilização popular, na qual a CONAIE desempenhou um papel fundamental, juntamente com outros setores da população, não levou à vitória de um governo de esquerda nas eleições que se seguiram, novamente como resultado da divisão entre a CONAIE e o movimento ligado a Rafael Correa, mas sim à vitória de um multimilionário dos setores de banana e extrativista, Daniel Noboa.

Depois, há o caso do Haiti, com mobilizações extremamente fortes e repetidas, mas com uma crise política perpétua, sem solução e sem chegada ao poder de um governo de esquerda.

Finalmente, há o Panamá, com enormes mobilizações no setor de educação e, em 2023, enormes movimentos bem-sucedidos entre diferentes setores da população (incluindo professores, mas envolvendo todos os setores da classe trabalhadora) contra um enorme projeto de mineração a céu aberto, mas que não resultou na vitória de um governo de esquerda. Nas últimas eleições, foi eleito um presidente de direita, José Raúl Mulino.

Alternativas

A última parte do livro de Claudio Katz trata de alternativas, e deve-se notar que ele argumenta com razão que devemos resistir tanto à dominação exercida pelo imperialismo norte-americano quanto à dependência econômica gerada pelos acordos que a China firmou com a América Latina. Katz afirma que precisamos agir sobre esses dois desafios se quisermos encontrar um caminho latino-americano para o desenvolvimento, melhorar a renda dos setores da classe trabalhadora e reduzir a desigualdade na região. De acordo com Katz, estas são duas batalhas diferentes; os dois inimigos não são idênticos, mas ambas as batalhas precisam ser travadas. Com relação a Washington, a tarefa é recuperar a soberania, enquanto que no que diz respeito à China, o desafio é reagir ao que ele chama de “regressão produtiva” provocada pelos tratados assinados com Pequim. Esta “regressão produtiva” é a reprimarização das economias: como explicado acima, a América Latina é especializada na exportação de matérias-primas não processadas para a China e importa produtos manufaturados da China. Katz acredita que os acordos de livre comércio celebrados com a China devem ser questionados. Ele acredita que a América Latina deve negociar como um bloco com a China, o que não está absolutamente sendo feito no momento. Atualmente, os governos dos países latino-americanos, em consonância com os desejos das classes dominantes locais, celebram acordos bilaterais com os chineses. Como essas classes dominantes se especializam em grande medida em importação-exportação, elas se beneficiam disso, mas não fazem absolutamente nada para diversificar as economias latino-americanas e retomar sua industrialização. Assim, de acordo com Katz, os acordos com os chineses devem ser renegociados para que a China invista na produção manufatureira e não apenas nas principais indústrias extrativas. A América Latina precisa se reindustrializar e garantir transferências de tecnologia para que um ciclo diversificado de desenvolvimento industrial possa ser reiniciado.

Como os governos atuais e as classes dominantes locais não estão adotando uma política alternativa para aqueles determinados pelas relações com os Estados Unidos ou a China, temos que confiar fortemente na mobilização de movimentos sociais. Claudio Katz dá o exemplo das posições e das ações tomadas pelas organizações da rede global La Via Campesina, que tem forte presença na América Latina. Esta organização mundial incluiu a rejeição de tratados de livre comércio em sua plataforma de ação.

Movimentos sociais e redes internacionais

Claudio Katz observa que as grandes mobilizações do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 – com o Fórum Social Mundial (FSF), as lutas contra a OMC em Seattle e as lutas na Europa contra o Acordo Multilateral sobre Investimento que estava sendo negociado dentro da OCDE – infelizmente chegaram ao fim, e toda uma série de tratados de livre comércio foram assinados. Deve-se lembrar que os protestos, particularmente na América Latina em 2005, resultaram em uma vitória contra o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA) proposto pela administração de George W. A Bush. Desde então, não houve grandes mobilizações e, como parte do projeto da Nova Rota da Seda, a China conseguiu impor acordos de livre comércio com países latino-americanos ou está em processo de finalização de novos acordos com países que ainda não assinaram com a China. Acordos de livre comércio também foram celebrados com outros poderes.

No que diz respeito aos acordos de livre comércio firmados com a China, Katz menciona o assinado em 2004 entre o Chile e a China, o acordo entre o Peru e a China assinado em 2009, entre a Costa Rica e a China em 2010 e, mais recentemente, o acordo com o Equador assinado em 2023, com um governo particularmente de direita.

Diante dessa tendência, Katz diz com razão que há necessidade de recriar os espaços de baixo para cima para a unidade regional, a fim de relançar uma grande dinâmica de mobilização.

Em termos de objetivos, ele afirma corretamente que o objetivo é recuperar a soberania financeira, que foi prejudicada pela dívida externa e pelo controle do FMI sobre a política econômica. De acordo com Katz, precisamos impor uma auditoria geral das dívidas e a suspensão do pagamento da dívida para os países com um nível muito elevado de endividamento, a fim de lançar as bases para uma nova arquitetura financeira. Também precisamos avançar para a soberania energética, criando grandes entidades interestatais para gerar sinergias e reunir uma ampla variedade de recursos naturais, explorando-os em conjunto. Em particular, uma empresa pública latino-americana deve ser criada para explorar e processar lítio.

Katz argumenta que a alternativa deve ser uma estratégia de avançar para o socialismo. Em sua opinião, Hugo Chávez teve o mérito de reafirmar a relevância da perspectiva socialista e, desde sua morte, ninguém mais o substituiu a esse respeito. Katz argumenta que uma estratégia de transição é necessária para romper com o sistema capitalista. Ele diz que devemos lutar contra o imperialismo dos EUA, que embarcou em uma nova guerra fria contra a Rússia e a China. Afirma também a necessidade de lutar contra a extrema direita e contra a adaptação da social-democracia às políticas neoliberais. Segundo Katz, essa adaptação da social-democracia encorajou o fortalecimento da extrema direita.

A necessidade de um programa de transição anticapitalista revolucionário radical

Claudio Katz pede um “programa de transição radical, revolucionário e anticapitalista”. Ele acrescenta: “Esta plataforma envolve a descommodificação dos recursos naturais, a redução da jornada de trabalho e a nacionalização de bancos e plataformas digitais para criar as bases para uma economia mais igualitária”.

Katz parte da observação de que não há padrão atual de vitórias revolucionárias simultâneas ou sucessivas, ao contrário do que aconteceu no século XX com a sucessão de revoluções vitoriosas na Rússia czarista, China, depois no Vietnã e em Cuba. No entanto, ele acredita que é importante reafirmar que apenas uma solução socialista para a crise do capitalismo pode oferecer uma solução real para a humanidade. Ele sustenta que a América Latina sempre será uma região do mundo onde uma renovação da busca por alternativas socialistas pode surgir, mesmo que processos como a ALBA – a associação incluindo Venezuela, Bolívia e Equador lançada por Hugo Chávez no início dos anos 2000 – tenham sofrido um revés.

Conclusão: Um livro indispensável

Em suma, o livro de Claudio Katz é uma leitura essencial para ativistas e pesquisadores que querem entender a atual situação política, econômica e social na América Latina. O que é interessante sobre a abordagem de Katz é que ele não analisa apenas as políticas seguidas pelos governos das grandes potências – Estados Unidos, China, etc. –, mas também as políticas das classes dominantes na região latino-americana. Ele estuda a dinâmica das lutas sociais e, finalmente, conclui que é de baixo para cima que um projeto socialista pode ser recriado.

Só podemos lamentar que a dimensão da crise ecológica e a urgência de encontrar soluções, dentro de um quadro socialista, não sejam suficientemente centrais para o livro, inclusive nas conclusões, embora seja claro que Claudio Katz apoia uma abordagem ecologista socialista. Mas seu livro ganharia força se Katz desenvolvesse explicitamente esse aspecto em vários pontos de seu raciocínio.

O autor gostaria de agradecer a Claude Quémar por sua colaboração, Maxime Perriot pela prova final e Snake Arbusto pela tradução para o inglês.

Site de Claudio Katz em espanhol (mas não exclusivamente): https://www.lahaine.org/katz/

Traduzido por Snake Arbusto

Notas.

[1] Claudio Katz, America Latina en la encrucijada global, Buenos Aires: Batalla de Ideas, La Habana: Ciencias Sociales, 2024, 366 páginas, ISBN: 978-987-48230-9-0 https://batalladeideas.ar/producto/america-latina-en-la-encrucijada-global/

[2] “Entre 1948 y 1990, el Departamento de Estado estuvo involucrado en el derrocamiento de 24 gobiernos. En cuatro casos, actuarons estadoenterenses, en tres ocasiones prevalecieron los asesinatos de la CIA, y en 17 hubo golpe teledirigidos Washington. Katz, p. 49.

[3]“Estados Unidos cuenta con doce bases militares en Panamá, doce en Puerto Rico, nueve en Colombia, ocho en Perú, tres en Honduras, y dos en Paraguay. Mantiene, además, instalaciones del mismo tipo en Aruba, Costa Rica, El Salvador y Cuba (Guantánamo). En las Is Malvinas, el sócio británico asegura una red de la conectada OTAN los emplazamientos del Atlántico norte” Katz, p. 15. 50

[4]“Todos los relógios que ha promocionado China acrean la subordinação econômica y la dependencia. El gigante asiático afianzó su estatus de economía acreedora, lucra con el intercambio desigual captura, los excedentes y sepropia de la renta.

China no actúa como dominado imperial, pero tampo favorecem uma América Latina. Los convenios real agravan la primarización y el drenaje de la plusvalía. La expansión externa de la nueva potencia está por principios de maximización del lucro y no normas por cooperativa. Pequim não és simples sócio y tampoco forma parte del Sur Global. Katz, p. 73-74 (em inglês).

[5]Toussaint, Eric, O Sistema da Dívida: Uma História das Dívidas Soberanas e sua Repudiação, Chicago: Haymarket Books (25 Jun. 2019) ISBN 1642591181

[6] ONU Genebra, “Em Diálogo com El Salvador, Especialistas do Comitê contra a Praticar Praticar a Legislação sobre Violência Doméstica, Pergunte sobre o Estado de Emergência e Reclamações de Torturas”, 18 de novembro de 2022, https://www.ungeneva.org/pt/news-media/meeting-summary/2022/dialogue-elsalvador-experts-commite-commite-commite
Human Rights Watch, “‘Podemos prenderar quem quiser’ – Violações de Direitos Humanos bem-espadas sob o ‘Estado de Emergência’ de El Salvador”, https://www.hrw.org/report/2022/12/07/we-can-arrest-anyone-un-un-want/widespread-human-rights-violations-under-el
La Jornada, “Bukele: la ilusión de la seguridad,” 27/05/2024, https://www.jornada.com.mx/2024/05/27/opinion/002a1edi (em espanhol)

[7] (p. 220)

[8] Publicado no site do CADTM como “A revolta popular no Equador em 22 de junho de 2022 e semelhanças com outras rebeliões na Europa e na América Latina”, 18 de setembro de 2024, https://www.cadtm.org/The-popular-uprising-in-Ecuador-em-22nd-junho-2022-e-semelhança-comoutros

 

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Killary inaugura uma nova fase na repressão do povo americano

Hugo Dionísio
 

Hugo Dionísio é advogado, pesquisador e analista geopolítico. Ele é o proprietário do Canal-factual.wordpress.com Blog e co-fundador da MultipolarTv, um canal do Youtube voltado para análise geopolítica. Desenvolve a atividade como ativista dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais como membro do conselho da Associação de Advogados Democráticos. É também investigador da Confederação Portuguesa do Sindicato dos Trabalhadores (CGTP-IN).

 

© Photo: Public domain

Hillary Clinton, num tête a tête com Rachel Medow (programa Rachel One-to-One na MSNBC) que assume bem o posto de rainha dos propagandistas russófobos e principal propagadora mainstream do infame “russiagate”, vem admitir a promoção de acusações criminais contra americanos que propaguem “desinformação” russa.

A própria Hillary Clinton tem enormes responsabilidades no que a desinformação diz respeito, refira-se, uma vez que foi no seu círculo pessoal que se projectou o “russiagate” e toda uma estratégia de diabolização da Rússia visando separar a União Europeia desta potência euroasiática. Embora, à data, não fosse ainda tão transparente, esta estratégia de acusação da Federação Russa de querer “interferir” nas democracias ocidentais – como se os EUA não fossem monopolistas disso mesmo – representava já o resultado do que podemos chamar de “novo normal” político ideológico: a “normalidade” em que os partidos do centro se unem numa só massa monolítica e coesa de princípios, valores e objectivos. À data, já o Partido Democrata representava Wall Street e todo o complexo militar industrial, como o faziam os mais fervorosos néocons, que muita gente pensava estarem apenas no Partido republicano.

O apoio de figuras como Dick Cheney, acompanhada de um apoio massivo de 238 néocons, antigos “staffers” de George W. Bush, McCain e Mitt Romney, referindo Kamala Harris como a “salvadora da democracia”, demonstram claramente a abrangência do partido democrata junto da classe dominante. Não se deixem enganar, para esta gente, muitos deles genocidas da pior espécie, responsáveis por crimes como o das “armas de destruição massiva” no Iraque, responsáveis pelas guerras eternas como no Afeganistão, não se trata de “salvar a democracia”. Trata-se de prosseguir o plano de recuperação da hegemonia mundial. Com tudo o que essa recuperação possa significar. Trump, para já, ameaça esse projecto, pretendendo virar-se para dentro. Veremos o que fará quando constatar que nada do que possa fazer travará a perda do domínio norte-americano no mundo.

Ora, se existe alguém com culpa na escalada que está a destruir a europa, essa pessoa é Hillary Clinton. No reinado do seu marido (Bill Clinton), entre saxofones e adultérios, o Partido Democrata não apenas se vendeu a Wall Street, iniciando um processo em que com o tempo passou a recolher tantos donativos corporativos (PACS’s) como o partido Republicano, demonstrando o jogo da generalidade das corporações nos dois tabuleiros. Só o fazem porque acreditam que os dois respondem aos seus interesses. A verdade é que o partido democrata recolhe donativos individuais de importantes bilionários como Michael Bloomberg.

O papel do Partido Democrata como instrumento de domínio antidemocrático sofre súbita importância na era Clinton, como quando, em 1996, destruiu a Lei da Imprensa de Roosevelt (Telecomunications act), que impedia o que aconteceu depois e que constatamos hoje: a concentração da média mainstream em meia dúzia de grandes conglomerados que se cartelizam e criam uma narrativa comum. Tudo sob a bandeira da “liberalização dos mercados dos média”, que acabou com as operadoras mais pequenas, acusadas de terem “monopólios locais”. A desregulação conduziu ao domínio dos média por meia dúzia de grandes conglomerados.

Ou seja, foi com Hillary e o Partido Democrata e depois com o “Patriot Act” já com Bush jr, que os EUA perderam a liberdade de imprensa, a privacidade e a liberdade de oposição, abrindo a porta à tortura e à vigilância massiva respaldada na “luta contra o terror”. Foi a era da legitimação do poder através da vitimização.

À data, o Partido Democrata à data dividiu-se, mas ainda tinha 45 resistentes à lógica da guerra eterna. Quando chegámos a 2022 e à Ucrânia, este número já se havia reduzido substancialmente. Hoje, é mais comum assistirmos a resistências do lado republicano, do que do lado democrata, para se ter uma noção do quão corrompido foi o Comité Nacional Democrata.

Provando que a repressão nunca começa com a cabeça no cepo, sendo antes resultado de um processo em escalada, que visa responder a uma crise, também nos EUA – e na europa – a perda da elasticidade democrática e o consequente endurecimento ideológico tem sido progressiva. Novamente, tal como com o 9/11 de 2001, os EUA tentaram com a Ucrânia uma nova forma de legitimação através da vitimização. Contudo, falta aos EUA o capital mundial de confiança, cuja degradação acompanha a perda de influência, respondendo a crescente repressão à perda da hegemonia mundial. A repressão é assim um “tocar a reunir” para impedir a progressão da crise.

A crescente desagregação do dólar – que nem os próprios já conseguem disfarçar – , com Trump a propor uma medida (100% em produtos que não usem dólar), aliada à crescente descredibilização e desmontagem, por cada vez mais países, do seu soft power (média, Think Tank e academia), bem como o surgimento de um competidor de luxo, que assume o lugar que sempre teve na história, deslocando, novamente, para a ásia, o centro da economia mundial, traz aos EUA uma realidade em que, caso percam a europa e o domínio que sobre ela têm, não apenas ficam isolados da “heartland” (Emanuel Todd pensava que tal iria acontecer na primeira década do século XXI, mas o wokismo e a concentração republicana e democrata num bloco de poder unificado conseguiram mitigar a situação por algum tempo), como ficam relegados ao seu pior terror, a descida para um patamar de potência regional.

Para já, não surge uma única notícia na imprensa ocidental mainstream sobre a adopção do BRICS Pay ou do facto de, em Outubro, em Kazan, 126 países irem discutir o fim da sua dependência do dólar. Nestes países concentra-se 85% da população mundial. Se isto não é notícia suficiente para um simples rodapé… A inocuidade ou a vantagem sistémica, passaram a ser a característica fundamental da actividade noticiosa.

Não obstante todos estes desenvolvimentos e a sua previsibilidade já em 2022, infelizmente, apenas uma percentagem ínfima de pessoas viu em que consistia, realmente, o conflito ucraniano. Historicamente, a relação Euroasiática constitui o pior das ameaças para o hegemonismo dos EUA. A Rússia e as relações entre a europa ocidental e o Leste, são a peça chave. Há que separá-las. Contudo, a separação humana não resiste à conexão geográfica e, acima de tudo, à mútua necessidade. Essas serão, a meu ver, inexoráveis. Até ao domínio ocidental, pela força bruta, a partir dos séculos XV-XVI, o mundo havia sido sempre multipolar. É para lá que está a voltar, novamente.

Para o impedir, a estratégia assenta, ainda e sempre, na diabolização e isolamento da Rússia. Há que impedir a conexão intercontinental Europa, Ásia, África. Face à incapacidade e à impossibilidade de tudo caracterizar como “propaganda do Kremlin” quando os factos não se ajeitam à narrativa oficial, Hillary propõe agora uma nova fase no controlo das mentes. Também os nazis perceberam a importância deste vasto país para o domínio do mundo.

Questionei-me muitas vezes quando começariam, no ocidente, a prender as pessoas por falarem “propaganda”, agora do Kremlin, amanhã de qualquer outra coisa considerada inoportuna, para quem comanda. Como num qualquer estado fascista. Já o tinha escrito diversas vezes, alertando para o facto de que as características materiais (económicas, políticas e sociais), do regime em que vivemos, constituírem o tipo de realidade que enforma os regimes que se podem designar por “fascistas”: o momento mais alto do nível de concentração de riqueza numa oligarquia dominante, que usa o poder adquirido para acelerar ainda mais a concentração e que perante a resistência das massas à destruição do seu bem estar, usa a repressão para as conter.

Os mais incautos, vendidos, reaccionários ou iludidos, incapazes de reconhecer na história o seu movimento, a relação dialéctica entre realidade e acção humana, acreditavam que o fascismo não voltaria. Que vivíamos em democracia e que, votando, tudo estaria garantido. No fascismo vota-se, nas constituições fascistas também se fala em democracia. O fascismo é apenas uma fase, mais agressiva, do processo de concentração da riqueza, com os efeitos que tal provoca na vida política, enquanto espelho das relações sociais que lhe estão subjacentes. Alguns ainda acham que vivem na mesma fase do regime em que viviam há 20 anos, mesmo que a estrutura de redistribuição da riqueza se tenha alterado radicalmente. Como se a concentração de maior poder, numa classe dominante – e com cada vez maior domínio – não mudasse nada na política.

Como se a política não fosse o espelho das relações materiais que estão na sua origem! A fase fascista inaugura também a fase mais grave da crise capitalista, reproduzida, neste nosso tempo, na crise da hegemonia do sistema económico neoliberal liderado pelos EUA. Como muito bem demonstra Mathew C. Klein e Michael Pettis no seu excelente livro “Trade Wars are Class Wars”, a guerra comercial EUA-China é também o resultado da luta de classes.

Hillary vem dar o mote político – e teórico – para o início do processo repressivo em que se agrava a luta do povo contra a classe dominante. O controlo dos média, censura nas redes sociais, vigilância em massa de cada telefone, computador, televisão ou electrodoméstico, tudo a fluir para as redes neuronais da NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA), fazendo o profiling, predizendo e prevendo comportamentos, não foram suficientes para impedir a degradação do “full spectrum dominance”, doutrina que desde a segunda guerra mundial constituía o guião da “liderança mundial dos EUA”.

Depois de Jack Rubin culpar a RT pelo falhanço do projecto ucraniano (que melhores assunções da artificialidade desse conflito queriam?), vem agora Killary propôr o próximo passo: prender os que dizem a verdade! Os EUA falham em criar uma falsa Palestina (Ucrânia) e um falso Israel (Federação Russa), prevendo para a Rússia o tratamento mundial que impedem para Israel, e culpam a RT. A culpa não é da realidade, não é da falácia da narrativa. A culpa é de quem a desmonta.

Poderiam dizer-me “ah! mas é propaganda do Kremlin”! Mas quem decide o que é ou não é “propaganda do Kremlin”? Quando os comunistas, progressistas e outros democratas, durante a noite fascista denunciavam a repressão, “tratava-se de propaganda comunista”, quando denunciavam a pobreza, a fome, a miséria e o analfabetismo “era propaganda comunista”. É sempre o repressor quem decide o motivo da repressão. Sempre.

E nenhuma repressão acontece sem motivo, de forma injustificada ou gratuita. Todos assumem as melhores intenções do mundo, quando respondem, a uma crise profunda, com os instrumentos da repressão. E os EUA são quem melhor narra as suas “boas intenções” …

Contudo, como diz o povo: “De boas intenções está o diabo cheio”.