O futuro pós-coronavírus já está em disputa
Como impedir que o capitalismo, que já nos roubou o presente, nos roube também o amanhã?
Eliane Brum08 abr 2020 - 11:35 BRT
Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?
Ninguém
se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo
disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida
ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém,
fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o
fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade
cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da
vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento
do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar
uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.
As
grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do
que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas
por Donald Trump
na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos
efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem
lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco
elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área
social.
Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima
e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses
segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no
mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no
essencial é um truque antigo.
Com o vírus, descobrimos
que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o
número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar
radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em menos de três meses
em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas
práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por
outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.
A tarefa
é inadiável. Se não fizermos isso, o mundo pós-coronavírus será ainda
mais brutal e o colapso climático se aprofundará. Para o extermínio da
natureza não há nem jamais haverá vacina. Nosso futuro depende de
enterrar o sistema capitalista que exauriu o planeta
e nos trouxe até o tempo das pandemias. E para isso também não serve o
comunismo que explorou, destruiu vidas, corroeu a natureza e oprimiu os
corpos. Precisamos encontrar outros caminhos. E rápido. Muitos dizem que
é ingênuo. Outros dizem que é impossível. O que é ingênuo é sentar na
cadeira de pregos que se tornou o presente e esperar os efeitos da
brutal superexploração da natureza (terminar de) deformar a face do
planeta. Impossível é seguirmos vivendo como temos vivido.
O isolamento físico
tem que ser usado para produzir pensamento social e para atuar
coletivamente, em rede. Este artigo, dividido em duas partes, é uma
colaboração para o debate do futuro que precisa ser travado no presente.
Agora.
1) No Brasil, todos os caminhos levam ao neoliberalismo
O presente, no Brasil, é uma armadilha. Temos um antipresidente – e a antipresidência é um conceito criado pelo bolsonarismo
– que faz oposição ao seu próprio governo. A técnica ficou clara desde o
início do mandato, mas ganhou contornos dramáticos na pandemia, quando Jair Bolsonaro abriu guerra contra seu próprio ministro da Saúde.
A negação da realidade, como método de manutenção do poder, tem vários
efeitos sobre a população. Um deles é ocupar o noticiário e sequestrar o
debate.
Em vez de debater a ameaça mais urgente, estamos travando o falso debate lançado contra os brasileiros por Bolsonaro: isolamento ou não isolamento, ou saúde versus economia.
É o que acontece quando se elege um homem que, no passado, planejou
explodir bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. As
bombas de Bolsonaro hoje são de desinformação, visam ao caos e também
podem matar.
O problema é ainda maior porque a negação da
realidade também produz realidade. Neste caso, não só a de colocar a
população em risco, mas também a de fazer acreditar que há oposição
real. Essa ilusão que cresce no Brasil, até por desespero, pode
comprometer o futuro de forma irreversível.
Se Jair
Bolsonaro (sem partido) renunciar, o que parece bastante improvável no
momento, ou se for impedido, o que também ainda parece distante, quem
assume é o vice. Hamilton Mourão
é um general quatro estrelas da reserva que até a eleição era
considerado golpista, devido a várias declarações públicas. Ainda na
campanha, chegou a dizer, em entrevista à GloboNews, que em “caso de
anarquia” um presidente pode dar um “autogolpe” com “o emprego das
forças armadas”. Comparado a Bolsonaro, até um pitbull torna-se
“moderado”. É o que vem acontecendo com Mourão, como escrevi mais de um ano atrás.
O terceiro na hierarquia é Rodrigo Maia
(DEM). Além de indiciado pela Polícia Federal por corrupção, o
presidente da Câmara dos Deputados é totalmente identificado com o
neoliberalismo que nos trouxe até a situação atual e com as forças mais
conservadoras do país, com exceção (por enquanto) dos evangélicos de
resultados. O que tornou Maia um exemplo de moderação e competência para
o que chamam de “mercado” foi realizar a reforma previdenciária que, se
era necessária, claramente o modelo aprovado não foi nem o melhor nem o
mais justo para os trabalhadores, que tiveram suas vidas ainda mais
precarizadas. Maia, a quem até o advento do bolsonanorismo parte dos
brasileiros preferia ver pelas costas (ou na cadeia), tornou-se uma
espécie de oráculo do bom senso, o que mostra o nível do abismo em se
encontra o Brasil.
E então temos os novos candidatos a estadistas, na figura dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. João Doria (PSDB) e Wilson Witzel
(PSC). Doria, o gerente privatizador, e Witzel, defensor da violência
policial nas favelas. Até ontem, ambos eram unha e carne com Bolsonaro.
Ou vogal e consoante, no caso de Doria,
que se elegeu como “Bolsodoria”. Para conter a pandemia, eles apenas
seguem em seus estados as orientações sanitárias internacionais, mas,
como fazer o óbvio é fazer o oposto do que Bolsonaro prega, despontam
como defensores do povo contra o bolsovírus. Têm os olhos grudados na
eleição presidencial de 2022.
Bolsonaro presta um grande
serviço aos ex-melhores amigos. Em São Paulo, especialmente, ele livra
Doria de explicar o pouco investimento na rede de saúde pública pelo seu
partido, que comanda o Estado há mais de 25 anos. Na ponta, é essa
falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai resultar em mortes por coronavírus.
Em
todo o país, o falso debate eclipsa o verdadeiro debate. A pandemia
tornou explícita a importância do estatuto público da saúde. E revelou
toda a monstruosidade da PEC-95, a do teto dos gastos públicos do governo de Michel Temer
(MDB), típica política neoliberal de Estado mínimo, que tirou bilhões
da saúde. Grande parte desta conta está sendo paga agora. Com vidas.
No
atestado de óbito, as vítimas terão “morte por coronavírus”. Mas, em
parte dos casos, o que as terá matado é a precarização da saúde pública,
o aumento da desigualdade e da miséria nos últimos anos, a falta de
investimento em saneamento e moradia digna. E, finalmente, o fato de que
há uma parte da população que segue exposta ao vírus porque não lhes é permitido parar de trabalhar.
A imagem da armadilha em que o Brasil está enfiado é a do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ao afrontar o chefe e tomar medidas óbvias na pandemia,
Mandetta se tornou o novo herói nacional. Todos os erros, como demorar a
providenciar testes, máscaras e outros equipamentos de proteção, são
perdoados. Principal opositor de seu ministro, Bolsonaro também presta
um grande serviço a ele. E a seu próprio governo, já que, qualquer que
seja o resultado, pode ser atribuído ou distanciado do governo. Essa é a
esperteza de abarcar a situação e a oposição.
Vejamos
quem é o novo herói nacional, hoje adulado e apoiado por todos os campos
ideológicos. Mandetta, conhecido defensor dos ruralistas, na saúde se
manifestou frontalmente contra o programa Mais Médicos
e militou contra o aborto. Também já lamentou a fragmentação das
famílias causadas pela Lei do Divórcio. Dilma Rousseff demarcou muito
menos terras indígenas que seus antecessores, uma das razões porque
recebe severas críticas de indígenas e ativistas do meio ambiente. Ainda
assim, Mandetta achou que a presidenta exagerava. “A presidente está
dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu
querer mal ao Brasil no agronegócio", discursou no plenário, em 2016. No
ano seguinte, foi um crítico feroz da Carne Fraca, operação da Polícia
Federal que investigou as irregularidades nos frigoríficos.
O
novo herói brasileiro aponta onde está o Brasil. Cada um conclua. A
oposição real, como já se tornou explícito, é fraca. E não consegue
mostrar qual é a sua grande diferença, muito menos convencer a população
de que é diferente. Enroscada com Lula e com o PT, ou brigando com Lula
e com o PT, a esquerda deixou de disputar o país.
Acha que disputa, é claro, mas ninguém liga. O desempenho mais sólido é
o do Psol, mas o partido ecoa apenas num número pequeno de brasileiros.
Isso
não significa dizer que a esquerda seria uma solução, na medida em que
parte significativa da esquerda brasileira segue cimentada no século 20,
totalmente alienada das grandes questões atuais, como a crise climática
e a destruição da vida natural no planeta. Quem fez oposição de fato,
no Brasil pré-pandemia dos últimos anos, foram grupos identitários:
mulheres, jovens, negros e indígenas. A oposição é política, mas não tem
partidos políticos como protagonistas. E ainda é preciso ter partidos
políticos para fazer a disputa do futuro.
Assim, no
período pós-pandemia, ou mesmo durante a pandemia, já que não se sabe se
ela acaba, todos os caminhos levam à direita neoliberal. Este é o
buraco diante do Brasil. É também o buraco em muitos países – grande
parte deles atolados na crise das democracias ocidentais, alguns às
voltas com os déspotas eleitos.
O Brasil tem, portanto, dois gigantescos desafios. O primeiro é impedir que o vírus mate milhares de brasileiros. Não há dúvida de que serão os mais pobres que morrerão mais. Os que não têm casas compatíveis com o isolamento; os que têm sido obrigados pelos patrões a trabalhar; os que foram demitidos;
os que vivem de bicos, na informalidade, e já não conseguem trabalhar.
Os que não vão conseguir se alimentar com os 600 reais que o governo
está oferecendo. Os que não têm esgoto, não têm água e logo não terão
também comida. Os que ficarem doentes e não encontrarem vagas na rede
pública de saúde, sabotada nos últimos anos em nome da privatização e do
lobby dos planos privados de saúde.
O auxílio emergencial de 600 reais para os informais
é mais uma prova do buraco paradoxalmente grande – e ao mesmo tempo
claustrofóbico – em que o país está enfiado. Diante dos 200 reais
inicialmente propostos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de
repente 600 reais passaram a soar com notas de decência. O valor, porém,
é totalmente indecente. Ninguém vive no Brasil com dignidade mínima com
600 reais. Para a outra metade dos trabalhadores, a que têm carteira
assinada, o governo permitiu cortes de jornada e de salários.
Para
quem se enrosca com o significado de neoliberal, é isso. Vale a pena
pesquisar para encontrar definições mais sofisticadas e completas. Em um
parágrafo, o que pode ser dito é que os neoliberais acreditam que o
Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula.
Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores
e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar,
flexibilizar – estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba
então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os
trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras
espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez
menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e
autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as
razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é
“empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer
continuar a ser.
No estágio neoliberal do capitalismo
todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo – e
submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de
consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas,
preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda
permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para
consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer
outra identidade, você é consumidor.
É neste sistema que o
planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que
espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus
corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para,
consumindo seu corpo e seu tempo, se consumir. E é assim que os humanos
se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo
cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis
fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta.
Pressionadas
pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá
mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles
que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição,
como já fizeram no passado, para continuar no controle. Têm muita
chance de conseguir.
No Brasil, Bolsonaro fez o serviço
de esticar tanto os limites, que tornou todas as forças conservadoras ao
seu redor aceitáveis. Não sei o quanto ele percebe que este é o seu
principal papel. O fato é que o executa brilhantemente. Cada vez que se
comporta como um maníaco, faz figuras que até ontem causariam arrepios
despontarem como estadistas. Antes dele, um Mourão na presidência era
inimaginável depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Antes dele,
Rodrigo Maia era só mais um representante tradicionalíssimo de um
Congresso marcado por corrupção e fisiologia. Antes dele, Doria e
Witzel, cada um no seu estilo, jamais receberiam aplausos de parte da
esquerda ou afagos de Lula. Antes dele, Mandetta era um político
preocupado em apoiar projetos corporativos de setores da saúde e fazer
lobby para ruralistas. Graças a Bolsonaro e à incompetência da oposição
real, todos eles nos lideram.
É assim que vai ser, então?
O
Brasil tem dois enfrentamentos urgentes para fazer: a disputa do
presente, que é o novo coronavírus, e a disputa do futuro, que se dá
também agora, no presente.
Enfrentar uma pandemia num
país em que desigualdade e pobreza extrema aumentaram nos últimos anos
pelas políticas neoliberais é um imenso desafio. Mas talvez seja ainda
maior o desafio de imaginar um futuro que não seja a volta de uma
normalidade que só era normal para os privilegiados de sempre. Na
armadilha que se tornou o país, todos os caminhos levam ao mesmo lugar.
Os personagens que disputam o presente e o futuro dentro da estrutura do
Estado são no fundo todos iguais – ou pelo menos muito parecidos.
Como aprender com o coronavírus a criar um futuro que não seja mais aniquilação?
Parece
quase impossível quando todas as saídas estão barradas pelas tropas
neoliberais. Elas já se organizam para chicotear a população após a
pandemia, com o imperativo de produzir para poder superar a recessão e
retomar o dogma do crescimento. Já tivemos indícios de que o coronavírus
será usado para impor perdas de direitos e de liberdades. A China, com
seu comunismo capitalista (sim, isso é possível), ampliou ainda mais sua
vigilância despótica sobre a população. É apenas um sinal do que está
por vir.
Em breve, pode apostar, os governos vão pedir o
sacrifício de todos, que nunca é o de todos, mas o dos de sempre.
Prestem atenção ao significado que será dado à palavra “retomada” – e
pensem no que será retomado. A pandemia é nova. Os métodos dos que
trouxeram o planeta até este estado de coisas, não.
Parece
impossível disputar o futuro nessas condições. Mas tudo o que temos é
encontrar um caminho para minar a criatura chamada capitalismo, que no
nosso tempo se expressa pelo neoliberalismo, e impedir que se regenere.
Mais do que nunca, hoje lutamos pela vida.
2) Temos que barrar os senhores do mundo antes de eles conseguirem dar o golpe (mais uma vez)
Há
tempos os pensadores ocidentais não se empenhavam tanto em interpretar
um momento. Faz todo o sentido. Nada é – ou foi – maior do que essa
pandemia como ameaça global capaz de mudar tudo em um segundo. Inclusive
o olhar dos humanos sobre si mesmos, ao descobrir a espécie, esta que
sempre se considerou dona do planeta, ameaçada por um ser microscópico.
Já existe pelo menos um livro com coletânea de artigos de filósofos
sobre o coronavírus e seus efeitos. Há uma diferença, porém. Há os
pensadores que compreenderam a crise climática e há os que seguem às
voltas com dilemas do século 20, como grande parte da esquerda mundial, e
que não foram afetados pelas angústias da época atual.
Entre
os pensadores conectados com a emergência do clima, o francês Bruno
Latour é o autor de uma das melhores contribuições para pensar o momento
já como ação. O texto foi traduzido
pela filósofa brasileira Déborah Danowski, outra pensadora relevante
sobre o contexto atual. Em sua análise, Latour assim define a lição
posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a
mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de
semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema
econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou
redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre
a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o
argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era
capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”.
E
aponta o risco: “Qualquer motorista sabe que, para ter alguma chance de
se salvar fazendo uma rápida manobra no volante, sem sair da estrada, é
melhor primeiro desacelerar... Infelizmente, não são só os ecologistas
que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma
grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os
adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século 20, inventaram
a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma
excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que
resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é
uma oportunidade boa demais de se livrar do resto do Estado social, da
rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação
contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrar de toda essa
gente em excesso que atulha o planeta. (...) Os adeptos da globalização
são perigosos porque eles sabem que perderam, sabem que a negação das
mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há
mais nenhuma chance de conciliar seu ‘desenvolvimento’ com os vários
‘envelopes’ do planeta com os quais a economia terá que se haver mais
cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo
para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais,
para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus
filhos”.
Antes que alguém levante a balela do
desenvolvimento “sustentável” como a panaceia capaz de colocar o
capitalismo de novo nos trilhos, vale escutar outro pensador, este
indígena. Autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), Ailton Krenak
provocou ódio e ranger de dentes tempos atrás, ao afirmar que
“sustentabilidade era vaidade pessoal”. Toda corporação, incluindo as
mais destrutivas, tem hoje um gerente de sustentabilidade. Faz parte da
capacidade de cooptação e adaptação do capitalismo. Sempre uma cretinice
a mais.
Em março, já com a pandemia atravessando o
globo, Krenak assim explicou na abertura da Mostra Internacional de
Teatro de São Paulo, ao falar sobre perspectivas anticoloniais: “Nós
vivemos precariamente uma relação de consumir o que a mãe natureza nos
proporciona. E nós sempre fizemos um uso do que a nossa mãe nos
proporciona da maneira mais folgada possível. Até que um dia nós nos
constituímos numa constelação tão imensa de gente que consome tudo, que a
nossa mãe natureza falou: peraí, vocês estão a fim de acabar geral com
tudo que pode existir, aqui, como equilíbrio e como possibilidade
daquilo que é fluxo da vida? Vocês vão esquadrinhar a produção da vida e
decidir quantos pedaços de vida cada um pode obter? E, nessa
desigualdade escandalosa, vocês vão sair por aí administrando a água, o
oxigênio, a comida, o solo? E então [a natureza] começou a botar limites
à nossa ambição.
Mais informações sobre a crise do coronavírus
Uma
maneira que os humanos fizeram para administrar isso foi criando a
ideia, por exemplo, de que existe um meio ambiente e que esse universo é
uma coisa que você pode gerenciar. E dentro desse meio ambiente alguns
fluxos vitais podem ser medidos, avaliados e habilitados, alguns deles
inclusive com selos de sustentabilidade.
Se você tirar
água do aquífero Guarani, por exemplo, uma água de muito boa qualidade, e
se você engarrafar direitinho, você é uma empresa sustentável. Mas quem
disse que tirar água do aquífero Guarani é sustentável? Você pratica
uma violência na origem e recebe um selo sustentável no caminho. E assim
com a madeira. Isso é uma sacanagem, não tem esse papo de água
sustentável e não tem esse papo de madeira sustentável”.
Diz
então a verdade terrível, que é também o ponto de partida de qualquer
proposta para o futuro que formos capazes de esboçar: “Nós somos uma
civilização insustentável, nós somos insustentáveis. Como é que então
vamos produzir alguma coisa em equilíbrio?”.
Este é o desafio.
Assim que novo coronavírus der uma brecha, os profetas do neoliberalismo começarão a sua pregação:
“É preciso produzir e crescer!”. Não há dogma maior na economia do que o
do crescimento. Milhares de economistas perderão seu emprego no ramo da
astrologia econômica caso o dogma do crescimento seja desmascarado.
Crescer é o imperativo de todo país. Quem não lembra do “fazer o bolo da
economia crescer para então repartir o bolo” que o ministro da ditadura
e astrólogo econômico maior do Brasil, Delfim Netto, repetia no regime
de exceção? Mais tarde, com a expansão do neoliberalismo, nem isso.
Bastava que os mais pobres soubessem que, se o país crescesse, alguma
coisinha poderia eventualmente sobrar pra eles.
O dogma
do crescimento é construído sobre uma mentira: a possibilidade de
explorar infinitamente os recursos de um planeta com recursos finitos.
Bastam dois neurônios para entender que não é possível. E aí vem o outro
dogma, o da sustentabilidade, como se fosse possível tornar sustentável
o que, em sua estrutura, é insustentável.
O que o dogma
do crescimento faz é proteger os privilégios dos muito ricos: o problema
deixa de ser a distribuição igualitária das riquezas existentes e passa
a ser o crescimento insuficiente, que não permite garantir o suficiente
para todos. O imperativo de crescer é repetido à exaustão para encobrir
a injustiça estrutural: a desigualdade na distribuição de riquezas.
Carregando seu corpo exaurido, mesmo o pobre passa a acreditar que sua
miséria é provocada por falta de crescimento. Sem reparar que nos
momentos em que o tal bolo cresceu, as fatias se tornaram maiores para
os que já eram donos do bolo e sobrou para ele, quando muito, a farofa
da cobertura.
No Brasil, o 1% mais rico concentra quase
um terço da renda (28,3%), o que dá ao país o título de vice-campeão
mundial em desigualdade, segundo o último Relatório de Desenvolvimento
Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil só perde para o
Catar – e apenas por 0,7%. Cinco bilionários brasileiros concentram a
mesma riqueza que a metade mais pobre do país, segundo estudo da
organização não-governamental britânica Oxfam, publicado em 2018. Cinco
pessoas concentram a mesma renda que 100 milhões de brasileiros. Este é o
problema. Não é por falta de exploração da natureza que o país é
tremendamente desigual. Ao contrário. O esgotamento dos suportes de vida
do planeta é um dos principais geradores de pobreza e de desigualdade.
O
dogma do crescimento, que faz as engrenagens do capitalismo girar, foi
determinante para produzir a emergência climática. O que a emergência
climática torna explícito é que já não será possível “crescer”. É
necessário mudar radicalmente o modo de vida porque, como diz a jovem Greta Thunberg,
“nossa casa está em chamas”. Diante do superaquecimento global e da
perda de ecossistemas vitais, realmente imperativo é distribuir as
riquezas existentes.
É esse conteúdo explosivo que faz
com que as grandes corporações que dominam o planeta apoiem
negacionistas do clima como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com esses déspotas eleitos disseminando mentiras e distraindo o mundo com falsos problemas,
elas ganham tempo. Já sabem que não dá mais para seguir, mas farão o
impossível para ganhar o máximo enquanto for possível. Guardadas as
proporções, é como a indústria do cigarro: negou os malefícios por
décadas, contra todas as pesquisas científicas, e ganhou dinheiro
produzindo câncer enquanto deu. Ainda hoje, contabiliza cifras
bilionárias.
O desafio que nossa geração tem pela frente é
imenso. E será duro. Muito duro. Como a crise climática se desenrola
num outro tempo, o encontro com a realidade era sempre adiado pela
maioria, apesar dos gritos dos cientistas e dos jovens. Os negacionistas
foram eleitos porque grande parte da população mundial quer continuar
negando o inegável junto com eles. Então o vírus escancara a realidade.
Dele não dá para fugir, já que fugir é morrer.
O que
temos hoje é uma janela de realidade, o momento em que todos,
absolutamente todos, são obrigados a se encontrar com a verdade. É por
isso que Bolsonaro se tornou ainda mais pirotécnico. Para manter o poder
ele precisa falsificar a realidade. Vinha conseguindo, e o vírus
arrancou de uma vez essa possibilidade. Diz então que “o vírus não é
tudo isso que dizem”. Porque, apavorado, sabe que o vírus é muito mais.
Diante da verdade da morte, nenhuma mentira vinga.
Bruno Latour assim anuncia o impasse
da janela aberta pelo coronavírus: “Se a oportunidade serve para eles,
serve para nós também. Se tudo para, tudo pode ser recolocado em
questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo
contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de
ano. À exigência do bom senso: ‘Retomemos a produção o mais rápido
possível’, temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’. A última
coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.
Para que possamos seguir esse debate, reproduzo aqui as perguntas que ele lança para cada um e para o coletivo:
“Aproveitemos
a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um
inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas
que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às
seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:
1) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?
2)
Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua /
perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão /
substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis /
pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas
listadas na pergunta 1).
3) Que medidas você sugere para
facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores
/empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas
atividades que você está suprimindo?
4) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5)
Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna
outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas /
pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis.
(Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na
pergunta 4).
6) Que medidas você sugere para ajudar os
trabalhadores / empregados /agentes / empresários a adquirir as
capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver
/ criar esta atividade?
Acrescento à lista uma pergunta
minha. Não há nada que as grandes corporações que controlam o planeta,
assim como os políticos neoliberais que os representam nas várias
instâncias do Estado, temam mais do que a desobediência civil. No
Brasil, as esmolas que concedem para que os mais pobres sobrevivam à
pandemia têm por objetivo estancar a possibilidade do “caos social” ou
de uma “convulsão social”. Ou seja: o povo nas ruas e já sem nada a
perder.
Desde o final de 2018, o movimento que mais
balançou a “normalidade” que os senhores do mundo tanto prezam foi a
desobediência civil dos adolescentes, que se recusaram a ir para a escola a cada sexta-feira.
No ato da greve escolar, eles denunciavam que os adultos roubaram o seu
futuro ao não fazer o necessário para conter o colapso climático. Sem
futuro, para que estudar? Como são crianças e adolescentes, esta era a
desobediência civil disponível. E como funcionou.
Assim, a minha pergunta é: qual poderia ser a melhor ação de desobediência civil neste momento?
No
Brasil de Bolsonaro, sabemos que nossa principal desobediência civil é
sobreviver. Mas, para além de nos mantermos vivos, como podemos
desobedecer aos produtores de morte para criarmos um futuro onde
possamos existir com todos os outros?
Encerro com Ailton
Krenak, porque acho que as melhores ideias virão dos pensadores
indígenas, daqueles que sabem como viver sem esgotar o planeta e sem
produzir iniquidades. Ele diz: “O próprio enunciado de alguma coisa que
virá depois anima nosso sentido de viver. É a ideia de adiar o fim do
mundo. Nós adiamos o fim de cada mundo, a cada dia, exatamente criando
um desejo de verdade de nos encontrarmos amanhã, no final do dia, no ano
que vem. Esses mundos encapsulados uns nos outros que nos desafiam a
pensar um possível encontro das nossas existências – é um desafio
maravilhoso”.
Vamos?
Eliane Brum é
escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de
Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
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