Thomas Piketty: “Proponho um imposto que permita
dar 120.000 euros a todo mundo aos 25 anos”
Consagrado como um dos economistas
mais influentes de sua geração, o francês disseca em seu novo livro os
paradoxos da desigualdade e aposta em um socialismo participativo
O economista Thomas Piketty, em Paris , no dia 7 de
novembro. MANUEL BRAUN
24 NOV 2019 - 10:06 BRT
Thomas Piketty (Clichy,
1971) se consagrou há cinco anos como um dos economistas mais influentes de sua
geração. Seu livro O Capital no Século XXI contribuiu para
colocar as desigualdades de
renda e patrimônio no centro do debate na Europa e nos Estados
Unidos. Piketty, professor da Escola de Economia de Paris, publica agora na
Espanha Capital e Ideologia (ainda sem previsão de lançamento
no Brasil). Ao longo de 1.200 páginas que cobrem quase meio milênio e quatro
continentes, disseca as ideologias que justificaram as desigualdades. E fixa o
foco na propriedade
privada: a chave que explica tudo.
Pergunta. O senhor fala em “superar” o capitalismo e a
propriedade privada. Superar é um eufemismo? Por que não aboli-los,
diretamente?
Resposta. Prefiro “superar”. Se disséssemos “abolir” ou
“suprimir”, seria meramente negativo. Superar permite mostrar que se trata de
um processo e obriga a dizer com qual sistema vamos superá-lo.
P. O resultado, seja “superando” ou “suprimindo”
a propriedade, não é o mesmo?
R. O bom resultado é aquele que funciona.
Defendo um sistema de socialismo participativo. Também se pode falar de
economia participativa ou circular. A ideia é que precisamos da participação de
todos, não apenas na vida política, mas também na econômica. Não pode haver
hiperconcentração do poder em um pequeno número de pessoas. O poder deve
circular. E esse movimento está em andamento: o capitalismo hoje é diferente
daquele do século XIX. O capitalismo puro consistiria em concentrar todo o
poder nos proprietários e nos acionistas, poder demitir quem quiser e quando
quiser, ou triplicar o aluguel do inquilino da noite para o dia. Um capitalista
do século XIX veria como uma heresia os regulamentos atuais para limitar os
direitos dos proprietários.
“Como não conseguimos regular o
capitalismo, atingimos estrangeiros pobres”
P. As coisas estão melhorando?
R. Existe uma evolução em direção a uma maior
igualdade. As desigualdades, embora tenham aumentado desde os anos oitenta ou
noventa, são menores do que há um século. O mundo do século XIX, com a
propriedade concentrada em uns poucos, não era apenas injusto, mas produzia
menos crescimento do que aquele que houve no século XX, com a clara redução das
desigualdades.
P. Esse processo em direção a uma maior
igualdade não pode ser atribuído também à propriedade privada e
ao capitalismo?
R. A questão é qual capitalismo. A lição da
história é que a propriedade privada é útil para o desenvolvimento econômico,
mas unicamente se for equilibrada com outros direitos: os dos assalariados, dos
consumidores, das diferentes partes. Eu digo sim à propriedade privada, desde
que se mantenha no razoável.
“A propriedade privada pode ser
emancipatória, mas também alienante”
P. A história de Capital e Ideologia poderia
ser explicada por meio de ideias como a liberdade ou a inovação. O senhor opta
pela propriedade. Por quê?
R. O desenvolvimento da propriedade privada é
uma transformação fundamental, com uma dimensão emancipatória, ligada à
liberdade e, ao mesmo tempo, uma dimensão de
alienação e de domínio. A passagem das sociedades que chamo de
trifuncionais do Antigo Regime, composta pelo clero, pelos guerreiros e pelo
terceiro Estado, às sociedades de proprietários no século XIX, depois da
Revolução Francesa, representa um progresso. O problema é parar no meio do
caminho: desenvolver a igualdade formal diante do direito de propriedade sem
avançar em direção à igualdade real, à verdadeira difusão da propriedade. Na
época da Revolução não foi feita uma grande reforma agrária na França. Não se
deu aos camponeses 10 hectares, nem as propriedades individuais foram limitadas
a 200 ou 500 hectares. Outras sociedades o fizeram. Quando se oferece às
pessoas a possibilidade de trabalhar a terra para si mesmas, a produtividade
melhora. O mesmo se aplica em geral.
Piketty, no dia 7 de novembro, em Paris.
P. Em que sentido?
R. A propriedade privada é um bom sistema para
coordenar as ações individuais e permitir que cada um realize seus projetos,
com uma condição: que haja acesso à propriedade. E, em alguns casos, a
sacralização do direito de propriedade transforma as relações sociais em algo
brutal.
P. Por exemplo?
R. Nos debates sobre a abolição da escravidão no
século XIX, intelectuais liberais como Alexis de Tocqueville consideravam que
era preciso compensar os proprietários de escravos, e não os escravos. E
lembre-se de que em 1825 a França fez o Haiti —que tinha a maior concentração
de escravos do mundo atlântico e a primeira revolta de escravos em 1791-1792—
pagar 300% do seu PIB, com juros enormes, pelo preço de sua liberdade, e o
Haiti arrastou isso até os anos cinquenta do século XX. Aí se vê a contradição
da filosofia da propriedade. Tem uma dimensão emancipatória e outra que
sacraliza o direito de propriedade a ponto de perpetuar as velhas
desigualdades, mesmo em sua forma mais brutal, que é propriedade de seres
humanos por outros seres humanos.
P. A propriedade de escravos pode ser comparada
à propriedade de bens não humanos?
R. O argumento então era que, se começamos a
redistribuir as propriedades, não saberemos onde parar. Hoje, embora as formas
de propriedade sejam diferentes, existe o mesmo temor. Penso que é possível
debater coletivamente para limitar a propriedade. Muitas pessoas rejeitam isso
dizendo, como Tocqueville, que se você começa a aplicar mais impostos às
pessoas que têm um bilhão, depois serão as que têm um milhão e as que têm 100.000
euros. Mas a história mostra que, por meio da deliberação democrática, podem
ser encontrados limites para o que é uma propriedade privada razoável e o que é
uma propriedade privada excessiva.
“Defendo um sistema de socialismo
participativo. Todos devemos intervir na vida econômica”
P. O senhor propõe um imposto de 90%
sobre o patrimônio dos mais ricos. Por que 90% e não expropriá-los?
R. O objetivo é fazer circular a propriedade,
permitir que todo mundo tenha acesso a ela. O imposto sobre a propriedade
permitiria financiar uma herança de 120.000 euros para todos aos 25 anos. Hoje,
metade da população não tem patrimônio. Embora você possa ter um bom diploma e
um bom salário, talvez uma parte importante do salário sirva para pagar durante
a vida inteira um aluguel aos filhos de proprietários e que você não tenha os
meios para criar sua própria empresa.
P. Todos proprietários?
R. Quero uma sociedade em que todo mundo possa
ter algumas centenas de milhares de euros e na qual alguns que criam empresas e
têm sucesso tenham alguns milhões de euros, talvez algumas vezes dezenas de
milhões de euros. Mas, francamente, ter várias centenas ou bilhões não me
parece que contribua para o interesse geral. Hoje temos muitos mais ricos, com
um bilhão ou mais nos Estados Unidos do que nos anos sessenta, setenta ou
oitenta. A promessa de Ronald Reagan nos
anos oitenta era que os impostos seriam reduzidos para os empresários e que,
embora isso criasse mais desigualdades, não seria grave porque haveria tanta
inovação e crescimento que os salários e as rendas aumentariam como nunca. O
que se observou foi que o crescimento se dividiu por dois.
“Zuckerberg teve uma boa ideia com 25
anos. Isso justifica que com 50 anos continue decidindo tudo sobre uma rede
social mundial?”
P. Na Europa não houve revolução reaganiana, mas
tampouco a inovação de Silicon Valley.
R. O problema é que essa inovação tampouco se
traduz em um crescimento da renda. O que me interessa é o crescimento e os
salários, e o crescimento nos Estados Unidos foi reduzido à metade. Existem
duas razões. Reduzir os impostos para os mais ricos e ter mais bilionários não
acrescenta nada ao crescimento. Mas a verdadeira razão foi que o investimento
em educação estagnou. O resultado é que hoje muitas pessoas vão para a
universidade sem os meios de que necessitariam. A lição é que o que levará ao
crescimento no século XXI é, acima de tudo, a educação.
P. Por que os bilionários devem pagar 90%? Por
que esse número e não outro?
R. 90% para que tem um bilhão de euros significa
que ficaria com 100 milhões de euros. Com 100 milhões você ainda pode ter um
certo número de projetos na vida. O objetivo é voltar a um nível de
concentração da fortuna que era mais ou menos o dos anos sessenta, setenta ou
oitenta nos Estados Unidos e na Europa. Minha abordagem é empírica. O que
queremos evitar é a sedimentação. Mark Zuckerberg teve
uma boa ideia aos 25 anos. Mas isso justifica que com 50 ou 70 anos continue
decidindo tudo sobre uma rede social mundial?
P. Se nada for feito diante do aumento das
desigualdades, o que acontecerá?
R. O risco é uma explosão da União Europeia,
outros Brexit.
Ou então acontecerá uma tomada de
controle por parte de movimentos xenófobos. Como não conseguimos
regular o capitalismo, fazer pagar impostos aos mais ricos e ter uma economia
mais justa, nos excedemos atingindo os pobres de origem estrangeira. Vimos isso
na história da Europa, ou dos Estados Unidos com segregação racial. Melhor não
experimentar isso.
“Macron decidiu me exonerar do imposto
sobre a fortuna. Eu teria gostado de pagá-lo”
P. O senhor é proprietário?
R. Sim. Mas o presidente Emmanuel Macron decidiu
me exonerar do imposto sobre a fortuna [na França, o imposto de solidariedade
sobre a fortuna, ou ISF, foi abolido em 2017 e substituído pelo imposto de
solidariedade sobre a fortuna imobiliária, ou ISI, que não se aplica ao
patrimônio financeiro].
P. O senhor teria gostado de pagá-lo?
R. Sim. Quando você escreve um livro como O
Capital no Século XXI, que vendeu 2,5 milhões de exemplares, isso não
significa que seja mil vezes melhor do que aquelas que vendem 2.500 exemplares.
Em parte, é a sorte. E me beneficiei das ideias de colegas e do sistema
educacional francês. É uma ilustração perfeita de que as rendas e a propriedade
sempre têm origens sociais. Nós não inventamos tudo sozinhos. A partir do
momento em que alguém obtém uma renda alta, ele se beneficiou de muitas outras
pessoas. Minha experiência confirmou minhas convicções.
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