Quando a ditadura brasileira estava em seu início, uma vez
alguém telefonou para o laboratório de físico-química metalúrgica do IPT, onde
eu fazia estágio, perguntando se lá era o laboratório de corrupção. Se a pessoa
tivesse falado em corrosão, estaria certa.
Mas a confusão com a palavra corrupção vinha antes de tudo do seu uso
quase obsessivo pela imprensa que havia apoiado o golpe. Não é de hoje que a mídia
comercial e os donos do poder aos quais ela serve usam o conceito não para
combatê-lo, e assim conseguir ganhos em justiça, eficiência e equidade para a
população, mas para perseguir seus próprios objetivos econômicos e políticos.
Podemos conceituar corrupção em poucas palavras? Ela se
manifesta de formas muito diversas, mas creio que a corrupção está presente
sempre que, em relações de compra e venda e de poder, usos e normas
nominalmente aceitos por todos são violados por alguém em que se confiou para
agir dentro deles, ou mesmo impor esses usos e normas, no setor público ou
privado.
No período de absolutismo na Europa era normal um nobre
assassinar um não nobre e não ser punido por isso pelos burocratas que se
encarregavam da justiça. Era normal bispos
e papas viverem uma vida de luxo, moralmente dissoluta e venderem tempos de
desconto das penas a serem pagas após a morte no purgatório, que, aliás, foi uma
invenção muito conveniente ao poder da igreja. Normal até que aparecessem
homens que se voltaram contra essas práticas em nome das pessoas prejudicadas
ou para defender alguma mudança nas relações entre as classes sociais.
O termo corrupção se torna de uso comum no estado
capitalista, quando alguns intelectuais passam considerar separadamente a riqueza
dos poderosos e a riqueza do estado. Mais marcadamente quando foi útil e
necessário limitar o poder dos grandes donos de terras, principalmente em favor
da emergente burguesia industrial e financeira.
No mundo real, particularmente no Brasil, essa separação
nunca ocorreu inteiramente. Embora em
uma verdadeira democracia o estado deva servir a todos em condições de
igualdade, na prática alguns são muito mais iguais que os outros, uma
“igualdade” expressa no poder do dinheiro, que compra advogados, capangas,
políticos e jornais. Todas essas compras podem ser feitas de formas
perfeitamente legais, já que nas democracias capitalistas os defensores de
direitos iguais para todos, da diversidade de opiniões e da defesa dos menos
poderosos não prevalecem, ou acabam por subordinar-se a outros interesses.
Corrupção é inimiga da eficiência, principalmente se a
eficiência for medida para além do lucro privado, em função do interesse da
sociedade (ou do planeta). É uma forma de roubo, porque desvia dinheiro público
para determinadas mãos privadas, e principalmente porque induz o poder público
a ações fora do que seria julgado adequado por administradores honestos. É uma
forma de ferir a democracia e o interesse comum, tal como a violência política
e a manipulação da verdade ou a mentira, praticadas por grandes jornais.
Fiz uma volta para tentar situar melhor o que acontece no
Brasil.
Vamos agora falar sobre o PT e seus concorrentes.
Suponhamos que José Sarney, protagonista da ditadura,
durante a qual consolidou e ampliou seu império familiar em seu estado de
origem, que era da UDN, partido que participou do golpe de 1964 “contra a
corrupção e a subversão”, fosse uma pessoa que amealhou sua riqueza e poder de
forma legal e ética. Suponhamos que Orestes Quércia, Paulo Maluf, André Franco
Montoro, Mario Covas, José Serra, Fernando Henrique Cardoso nunca tenham usado
de expedientes ocultos para se financiarem nas eleições (e alguns destes
enriqueceram com dinheiro público).
Suponhamos que os programas e práticas de governo desses
senhores e de seus partidos tivessem sido baseados no interesse público, e não
nos interesses concentrados de grupos econômicos interessados em obter vantagens,
indevidas em uma república democrática. Estes políticos conservadores apresentavam-se
ideologicamente, como agentes de políticas para toda a sociedade, nunca como
representantes de (certos) interesses privados, embora quem acompanhasse de
perto a política visse um cenário muito mais complexo e sujo.
Nesse cenário havia surgido o PT, que havia crescido até
certo ponto. Um partido que contava muita diversidade em seus quadros, e que
realizava muitos debates reais internamente. Sem parar de crescer, o PT, então
respeitado mesmo pela maioria de classe média que hoje prefere o discurso da
grande mídia, não conseguia passar de certo patamar de votação. O crescimento trouxe para as fileiras do
partido também oportunistas e carreiristas, e a sua direção acabou sendo dominada
por grupos que priorizaram a “governabilidade” sobre os propósitos políticos
sempre explicitados nas eleições. Começaram e multiplicaram-se acordos com
outras forças políticas e com empresários interessados em negócios com o
governo. Acordos de que as bases não eram informadas, provavelmente porque se
elas soubessem ao menos parte delas denunciariam e todo o público saberia.
Falta de transparência é uma das condições para a prática de atos corruptos.
Todos os outros partidos praticavam desde sempre coisas como
acordos antes das eleições com empreiteiras, estabelecimento de consultorias
com membros dos partidos para serem contratadas pelos governos que eles
conquistassem. No governo municipal de Luiza Erundina, um setor do partido que
tratava de uma barganha nunca esclarecida com um grupo imobiliário voltou-se
contra a prefeita, que se insurgiu publicamente, embora com eufemismos, contra
o acordo e destituiu o secretário municipal responsável por ele. O secretário
foi marginalizado, mas a atuação desse mesmo setor acabou por causar a saída de
Luiza do PT.
Esse foi o primeiro incidente notável. Recebeu como seria de
esperar uma repercussão notável na mídia, mas foi um tanto circunscrito. Mais
tarde foram surgindo novos incidentes, alguns mais graves, mas em escala de
grandeza bem reduzida comparada às formas de corrupção endêmicas em todo o
tecido social, que fazem dos funcionários públicos honestos e dedicados minorias
nas instâncias que podem ser corrompidas, e às escandalosas transferências de
serviços públicos (e potencial de lucros) e de recursos da União para setores
privados sem uma contrapartida para o país que ocorreram principalmente no
governo de Fernando Henrique Cardoso, como, aliás, exigia e exige a
Constituição.
O PT não inovou em corrupção, nem aumentou as práticas
corruptas. Algumas iniciativas dos governos Lula e Dilma contra corrupção:
deram força e independência para a polícia federal, nomearam, no início,
magistrados independentes, baseados mais em notório saber do que em suas
ligações políticas, vêm propondo uma mudança na lei eleitoral visando diminuir
o poder dos grandes financiadores privados pela adoção do financiamento público
das campanhas. Seus políticos têm a
menor percentagem de corruptos julgados e condenados entre os maiores partidos.
A questão dos atos corruptos de membros do PT, descontadas as mentiras da
imprensa e os desvios de conduta do STF é mesmo uma questão real?
Sem dúvida é. A adoção de práticas como acordos eleitorais
com empresários associados a caixa dois, junto com o caráter cada vez mais
centralizado e menos transparente de seus quadros dirigentes, feriu o caráter
popular do partido, desmobilizou e desmoralizou muitos quadros, principalmente
à esquerda. De certa forma, enfraqueceu o que distinguia o PT de outros
partidos, a capacidade de mobilizar pessoas quando necessário para fazer
avançar uma agenda mais progressista, ou defende-lo de ataques dos donos do
poder de sempre. Isto foi obra da direção do PT, que inclui Lula, José Dirceu,
José Genoíno. Teria sido possível crescer até a vitória eleitoral sem essas
práticas e sem marginalizar a esquerda do PT? A esta altura, não dá para saber.
Em todo caso, o governo do PT é o que a esquerda brasileira tem tido de fato, e
que ela prefere a governos conservadores, principalmente com os políticos que a
direita tem apresentado.
As questões realmente políticas, as que distinguem valores
conservadores de valores emancipatórios, em outras palavras posições de direita
e de esquerda, não são nunca diretamente colocadas ou discutidas pela mídia,
que é conservadora. Todo brasileiro é contrário às práticas corruptas (dos
outros). Com essa unanimidade, é possível a cada um fazer muitas coisas:
isentar-se de pagar propinas, denunciar tentativas de concussão, denunciar os
atos corruptos que forem detectados e denunciar quem paga as propinas a
governantes e jornalistas, como multinacionais e governos estrangeiros cujos
interesses muitas vezes colidem com os interesses brasileiros, o que inclui
evidentemente o império estadunidense.
É necessário lembrar como a rede Globo atingiu sua condição
dominante em televisão e rádio em conluio com a ditadura, como o jornal O
Estado de São Paulo foi prevenido pela ditadura de uma mudança cambial, do
caráter da associação do grupo Folhas com os órgãos de tortura e assassinatos
da ditadura, como a revista Veja tem produzido matérias escandalosamente
publicitárias como se fossem reportagens e se associado a criminosos como
Carlinhos Cachoeira de forma a atender interesses deste e de seus associados
políticos como Demóstenes Torres. Os jornalistas dessas empresas renunciaram,
em troca de seus salários, a ser objetivos e não seletivos no noticiário.
Em resumo, chamo de corrupção toda deturpação da democracia
pelo poder do dinheiro, algo que deve ser combatido de forma radical, sabendo
que não é possível mudar da noite para o dia um instrumento que tem sido muito
útil ao jogo das forças econômicas e políticas dominantes neste país. Uma parte
dessa corrupção básica tem sido, há muito tempo, o falso discurso moralista
propalado pela mídia e adotado por grande parte da classe média brasileira.
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