Já fui de direita, embora tenha sido torcedor do Corinthians
desde os meus dez anos. Até um pouco antes de entrar na escola de engenharia,
meu pensamento foi muito influenciado pelo Estadão que meu pai assinava. O
jornal já era de direita, golpista, mas abria as páginas para um Florestan
Fernandes, um Isaac Deutscher. O primário fiz em escola municipal, em que
convivi com meninos pobres. Influenciado pela religião até os dezesseis anos de
idade, não deixei de perceber as contradições entre a riqueza de uns e a
pobreza de outros, que passou a me incomodar de forma permanente.
Gravitei em torno do PT quase desde a sua fundação. Afastei-me
há já quase dez anos, depois de atuar alguma coisa, sem ser um militante muito
dedicado e, ainda menos, destacado. Falta de dedicação em parte devido ao fato
de na época ter sentido no partido a chatice do movimento estudantil, já
separando os elementos que o constituíram – sindicatos, intelectuais de
esquerda, setores progressistas da igreja católica, e os lideres e seus
seguidores em facções, então apelidadas de tendências. Também não me destaquei
devido a minha natureza, avessa a empurrar e a ser empurrado. Mas procurei
sempre dar minha contribuição e explorar todas as possibilidades de fazer isso.
No começo havia muitos elementos de agregação: reuniões de
base que transmitiam a força de pequenos grupos em para certa democracia ainda pouco
centralista, certa composição entre movimentos sociais, sindicatos e
intelectuais, festinhas que reuniam todos em um ambiente quase familiar. Havia uma vigorosa e sincera denúncia contra
todas as formas de corrupção, corretamente vistas como formas adicionais de
controle da política pelas classes proprietárias, que haviam apoiado o golpe de
1964 e integrado o Estado da ditadura.
Por certo tempo as direções regionais e nacional do partido incluíram
diversos matizes políticos, desde os mais conservadores, em geral ligados à
igreja, até os mais radicais, identificados com políticos como José Genoíno,
com o centro ocupado entre outros por sindicalistas e José Dirceu. Isso antes
de se acirrar a luta de facções, antes de o PT tornar-se um partido com apoio
suficiente para conseguir ser eleito para cargos majoritários em prefeituras e
estados. Lula desde sempre foi a
personalidade dominante, que conciliava as facções, e a partir de certo ponto
passou a manobrar no comando de uma facção, junto com Dirceu e outros, que se
tornou dominante na direção nacional. Os quadros dirigentes passaram a
desfrutar de autonomia crescente em relação às bases locais e temáticas e aos
movimentos sociais e a se distanciar deles.
Os comunistas, à esquerda – aqueles que não consideram o
capitalismo, ou seja, as formas vigentes da economia, necessárias ou
inevitáveis, foram perdendo força ideológica e política dentro do PT. Este acompanhou
seu dirigente máximo, Lula, que desde seu início de atuação como sindicalista,
nunca pretendeu mudar muito as coisas, mas atuar dentro das estruturas e
dinâmicas que vigiam e vigem na política. Atuar nos caminhos estabelecidos,
eventualmente aproveitando atalhos e fendas do sistema, sem procurar mudar as
formas de relação entre as classes sociais, sem procurar influir muito sobre o
futuro. A esquerda, nessa ocasião, foi sendo absorvida dentro do sistema, ou
saiu do PT.
A lógica de mercado, que havia assegurado a permanência das
velhas estruturas políticas no poder, mantendo o PT como um partido
exclusivamente de oposição, acabou por ser absorvida pelos grupos dirigentes do
partido. O trabalho voluntário dos militantes e as contribuições dos afiliados
- um por cento de suas rendas - tornaram-se insuficientes para fazer frente aos
grandes partidos do sistema, filhos da ARENA e do MDB, nas eleições. Seria
necessário mais dinheiro do que os militantes poderiam oferecer.
Quando percebi isso, o que ocorreu aos poucos e em várias
ocasiões ao revisar acontecimentos como as circunstâncias do assassinato de
Celso Daniel, a prevaricação que constatei muitas vezes na atuação da
prefeitura de Marta Suplicy em São Paulo, percebi que o PT, para mim,
tornara-se muito menos interessante. O PT também não gostou de algumas de
minhas intervenções, questionando posturas de dirigentes que eu achara
criticáveis nas poucas ocasiões em que participei de reuniões mais amplas. O
resultado foi que fui marginalizado em minha atuação para a política de
energia, único campo em que eu me mantinha ativo no PT de 2002, e acabei afastando. O PT tornou-se um partido de
corruptos, igualzinho aos partidos tradicionais, incapaz de colocar-se do lado
dos interesses da maioria. Certo?
Não. A realidade não é simples assim. Ainda existe oposição,
aqui como no resto do mundo, entre esquerda e direita. A direita é mais fácil
de caracterizar. Na história brasileira, esteve de acordo com a imposição de
pagar uma indenização a Portugal pela independência do Brasil, esteve contra a
abolição da escravatura, alinhou-se sempre aos interesses ingleses e depois
americanos contra as inciativas de autonomia nacional, exerce desde sempre um
quase monopólio da imprensa escrita, falada e televisada.
Governos do PT em estados e em municípios impulsionaram boas
iniciativas; alguns tentaram, com diversos graus de dedicação e de resultados,
fazer uma discussão participativa de questões de interesse local. Os governos
de Lula e o de Dilma começaram e aprofundaram algumas transformações
importantes na distribuição de renda e na estruturação de uma política externa
mais independente, e ao fazê-lo, mudaram a postura do estado brasileiro. Isso é
muito importante. Estes dois aspectos são defendidos pela esquerda e por
nacionalistas brasileiros desde sempre.
O passivo de omissões, vacilações e alianças reprováveis é
grande, enorme. Não vale aqui detalhar, talvez em um próximo post eu o faça.
Posso citar a leniência com o contrabando e plantio de soja transgênica no sul,
desrespeitando as leis então vigentes, os favorecimentos ao capital financeiro
incluindo a manutenção de altas taxas de juros, os privilégios à indústria
automobilística, a ausência de uma política para o funcionalismo junto a
nomeações por barganhas políticas e para recompensar militantes. Tudo isso os
partidos de direita fazem e esperávamos que essas práticas fossem reduzidas
drasticamente no governo do PT, o que não ocorreu.
O agronegócio: grandes plantações de monoculturas em
latifúndios, favorecimento de tecnologias intensivas em adubos, venenos e
sementes transgênicas, foi apoiado quase sem restrições, enquanto o apoio à
reforma agrária foi ínfimo. Houve algum apoio à agricultura familiar, marginal
em relação ao conjunto.
O PT não criminalizou os movimentos sociais como faz a
direita. Em uma fala durante o seu primeiro governo, Lula pediu que os
movimentos, mais os sindicatos, fizessem pressão sobre seu governo e outras
instâncias de poder em favor de seus interesses. Fala reveladora da fraqueza
dos mesmos em mobilizar suas massas e angariar apoio para causas de interesse
popular, como saúde, educação e segurança para as populações não abastadas.
Quando a economia superou o pior da crise na metade do
primeiro governo de Lula, as massas de trabalhadores começaram a sentir
melhoria em seus níveis de vida, reforçados com a bolsa família. Começou a
ampliar-se o apoio popular a Lula (depois Dilma) e ao PT, nas pesquisas de
opinião e nas eleições, que fizeram do PT o maior partido do Brasil. Ao mesmo
tempo, a maior parte do poder financeiro, e todos os órgãos da grande mídia
corporativa passaram a jogar pesado contra o governo federal, secundados pelos
partidos de oposição (com os Estados Unidos tratando de solapar a política
externa e os laços do Brasil com outros países da América do Sul), além de
partir para a tentativa de impeachment. Diz-me quem são teus inimigos...
O governo negocia, negaceia, trata de não desafiar o poder
econômico. O PT tem caixa dois como todos os outros partidos grandes, mas tem
um projeto para impor o financiamento público às eleições. Aparentemente há acordos
com empresas prestadoras de serviços, mas o governo não tem tentado interferir
no trabalho do ministério público e da polícia federal para investigarem os
malfeitos.
Ainda há muita gente de elevada qualidade moral nos governos
e entre parlamentares do PT. O fato de os outros grandes partidos terem maior
incidência de corruptos e similares também não deveria ser desprezado para se
enfatizar apenas os petistas safados. O que leva a uma conclusão, pelo menos
para mim.
Ações e ideias que possam mudar o mundo no sentido desejado
pela esquerda sincera não se iniciarão, nem se nutrirão muito dentro do
Sistema. Esse Sistema é estéril e tende a esterilizar tudo o que não for capaz
de absorver em seu proveito. Por isso movimentos como os Occupy, de cidades dos Estados Unidos e da Europa são uma coisa
nova, porque eles fazem de maneira eficaz uma ruptura com a conformidade e a
legalidade, para além das velhas organizações de esquerda incapazes de empolgar
as massas de jovens desempregados, marginalizados ou alienados.
A visão conservadora – de favorecimento ao “mercado”, domina
tanto a oposição do PSDB, PPS e DEM como os situacionistas do PT e da base do
governo federal: PMDB, PDT, PP, PSB. Confunde os benefícios reais da
concorrência quando ela existe, da liberdade de iniciativa dentro da segurança
dos outros, com a liberdade total para os monopólios e oligopólios financeiros
e industriais, de dominar a informação, a economia e a lei. No Brasil,
propiciou a privatização e a manutenção dessa privatização dos serviços
públicos, elevando suas tarifas e limitando a sua oferta e qualidade, em
energia e telecomunicações, em benefício de grupos ligados ao grande capital
financeiro.
O combate à pobreza tem tido eficácia, mas a desigualdade
não está diminuindo, talvez esteja aumentando, gerando desunião e violência. A emancipação
do Brasil, como dos outros países da América Latina, passa pelo enfrentamento
de seu Inimigo, as corporações e governo dos Estados Unidos, não através de
guerra, é evidente, mas desafiando sua influência, denunciando os mecanismos de
dominação através de seus agentes, declarados ou não.
Esta tarefa está fora do alcance dos partidos existentes,
inclusive os mais à esquerda. Nem sei se é possível, embora absolutamente
necessária. Existe uma ação dos blogs “sujos” da internet, que é fundamental para
a ruptura do cerco ideológico e de informações exercido pela mídia corporativa.
É possível conciliar o uso do mercado onde ele é desejável e
não concentrador de riqueza junto com uma ação social, que partiria
necessariamente das instâncias locais de ação e poder, tanto das pessoas como
do poder político? Nesta matéria, não explorei essa questão fundamental. Quis apenas
mostrar um pouco minha posição e chamar a atenção para como é fútil concentrar
a avaliação política em termos de contra ou a favor do PT, ou qualquer outro grupo
constituído e organizado, quando o que é necessário é questionar as bases econômicas
e culturais em que a política é exercida. Esse questionamento é tarefa que
interessa aos 99 por cento, mas isto já é outra história.
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