Galbraith, Stiglitz, Trump e o fim do sonho americano
10 de novembro de 2016 às 22h29
Galbraith na biblioteca de sua casa em Cambridge
por Luiz Carlos Azenha
Nos anos 80, correspondente da TV Manchete em Nova York, tive o prazer de entrevistar o economista John Kenneth Galbraith em Cambridge, Massachussets. Ganhei de presente uma cópia autografada de um de seus romances, “O Professor”, traduzida para o português.
A Casa Branca era ocupada por Ronald Reagan. Reagan havia assumido com o objetivo declarado de “tirar o Estado” das costas dos contribuintes.
Cortou impostos dos ricos, cortou direitos sociais. Na verdade, Reagan foi um fantoche da globalização, promotor de regras internacionais que facilitaram a expansão das grandes corporações e os ganhos dos acionistas às custas dos trabalhadores.
Tudo ficou mais fácil, obviamente, depois da queda do Muro de Berlim.
Sem o fantasma da União Soviética no horizonte, George Bush pai e sucessores puderam dilapidar o estado de bem estar social.
Felizmente, a memória das conquistas obtidas sob o governo Roosevelt ainda é tão poderosa nos Estados Unidos que não foi possível — ainda — aniquilar completamente a Previdência Social (cerca de 50% dos norte-americanos recebem algum tipo de ajuda do Estado, hoje).
A grande preocupação manifestada por Galbraith durante a entrevista foi com a formação de uma classe de deserdados nas grandes metrópoles e áreas rurais dos Estados Unidos. Desemprego crônico, consumo de álcool e drogas, taxa de homicídios — ele apresentava estatísticas para demonstrar que um número crescente de norte-americanos vinha sendo deixado para trás.
Sinal, segundo Galbraith, da morte do “sonho americano” construído pós-Segunda Guerra Mundial, segundo o qual os filhos SEMPRE poderiam contar com uma vida melhor que a dos pais.
A partir de Reagan e da primeira-ministra britânica Margareth Tatcher as ideias neoliberais ganharam o mundo, obviamente que com nuances e muita, muita hipocrisia.
Uma das mais chocantes é a crença, fora dos Estados Unidos, de que os Estados Unidos sejam um “estado mínimo” e que os governantes não interfiram no “livre mercado”, quando é justamente o contrário: Washington é fortemente intervencionista — especialmente em nome das grandes corporações — e sustenta uma gigantesca burocracia em escala global.
A pregação de “estado mínimo” é para os outros, por motivo óbvio: é muito mais fácil influenciar/competir/derrotar um adversário cujas instituições sejam frágeis.
O resultado da política pró-corporações dos Estados Unidos, mais de três décadas depois de Reagan, é que hoje elas mantém mais de R$ 6 trilhões em lucros não taxados no Exterior.
Isso mesmo, você leu direito: o Congresso norte-americano deverá em breve discutir uma forma de repatriar mais de U$ 2 trilhões em LUCROS que empresas norte-americanas, se aproveitando de brechas na legislação, estocaram fora dos Estados Unidos, sem pagar imposto!
Enquanto isso, cerca de 45 milhões de norte-americanos recebem food stamps, que equivalem a cheques do governo para ajudar a comprar comida.
Em O Euro e sua ameaça ao futuro da Europa, o Nobel de Economia Joseph Stiglitz demonstra de forma brilhante como a construção da moeda única em 18 países, calcada nas mesmas ideias neoliberais, deu resultado perverso.
Aumentou, em vez de diminuir, a desigualdade e transferiu renda dos países mais pobres para os paises mais ricos, notadamente a Alemanha.
A ideia de que haveria uma convergência entre os integrantes da UE é desmentida pelas estatísticas: Portugal ingressou no grupo com PIB per capita equivalente a 57% da Alemanha mas, em 2015, a relação tinha diminuído para 49%. Isso vale para outros paises da periferia do euro e, não, não é por vagabundagem: em 2014, os gregos trabalharam 50% mais horas semanais que os alemães.
Mantidas as regras atuais, Stiglitz prevê uma implosão do euro.
Taxas altíssimas de desemprego, notadamente entre os mais jovens, provocam imigração que rouba cérebros e contribuintes justamente dos paises que mais precisam arrecadar, como a Espanha, atolada em dívidas.
Curiosamente, Stiglitz usa o mesmo alerta que eu tinha ouvido de Galbraith naquela entrevista, sobre o fim da coesão social: a existência num mesmo espaço geográfico de pessoas que preservem valores e objetivos comuns. A longo prazo a desigualdade social é a fórmula para um desastre político.
Segundo Stiglitz, não é por acaso a ascensão da extrema-direita em vários paises europeus, explorando aqueles nossos velhos conhecidos: racismo, xenofobia, nacionalismo militarista. Ou seja, supostamente criado para integrar — mas, na verdade, para dar escala às corporações europeias na disputa pelo mercado global –, o euro pode levar a uma perigosa desintegração num continente marcado, em termos históricos, por duas guerras recentes e devastadoras.
A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, assim como o Brexit, devem nos servir de alerta sobre o descontentamento dos que foram deixados para trás, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Dão dimensão global ao drama que vivemos exatamente neste momento no Brasil, quando o governo usurpador de Michel Temer, nascido de um golpe midiático-jurídico-parlamentar, ataca direitos e propõe uma agenda econômica e social regressiva não aprovada pelo voto popular.
Isso se torna ainda mais devastador quando constatamos que já existe, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, uma base social sobre a qual emerge um discurso claramente fascista.
Trump pode ser apenas um homem de negócios que, empossado, será obrigado pela realidade política a fazer acordos e moderar as posições e o discurso que apresentou durante a campanha. O fato para o qual não existe retorno é que ele naturalizou o discurso xenofóbico, racista, machista e preconceituoso ao longo de 18 meses de debates públicos.
Por mais pragmático que Trump seja ao assumir a Casa Branca, ele obteve mais de 50 milhões de votos com um discurso que subentende uma “restauração” branca, cristã e com ‘ordem’ num país que até ontem se apresentava como o modelo do multiculturalismo.
A ideia de que pretende começar o governo promovendo investimentos em infraestrutura para reanimar a economia nos faz lembrar, por um fugaz momento que seja, de outro projeto — aquele que, na Alemanha, começou com uma rede de rodovias, as autobahn.
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