quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Trump: "revolução" e ajuste de contas (2)

 O original, no resistir.info

Daniel Vaz de Carvalho

Cartoon 'O preço da paz', autor desconhecido.

4 – Perante o mundo multipolar

Ao assumir o fim do mundo unipolar, Trump trouxe como que uma "revolução" no pensamento geopolítico dos EUA – os vassalos europeus pouco ou nada contam. A "ordem baseada em regras" de Washington colapsara, substituída por organizações como BRICS, Organização de Cooperação de Xangai, União Económica Euroasiática, que desenvolveram processos de integração baseados no consenso e equilíbrio de interesses. Mais até que nos EUA, os media da UE/NATO não querem que isto se saiba. Não apresentam respostas credíveis para os problemas, persistindo no mundo de fantasia da sua propaganda que não existe – nem nunca existiu...

A guerra na Ucrânia, após a expansão da NATO e o golpe de 2014 em Kiev, procurando tornar a Rússia um país cercado, isolado e submetido, acabou por remodelar a geopolítica, as alianças militares e o comércio global. Esqueceram que outros impérios se perderam tentando dominar aquelas vastas estepes.

Mesmo uma significativa terminologia usada pelo império não é mais aplicável. Não existe uma "ordem mundial" identificável globalmente. O "globalismo" acabou porque o planeta dividiu-se em blocos de nações como os BRICS. O "direito internacional" perde sentido quando milhares de sanções são impostas ilegalmente a dezenas de países, incluindo a Rússia e a China, mas os responsáveis pelas matanças na Palestina são aplaudidos em Washington e apoiados na UE.

A "comunidade internacional" que o hegemónico definia a partir do alinhamento com as suas opções não existe como tal. O neoliberalismo é rejeitado por grande parte dos países, tal como os "valores humanos universais" conduzidos por ONG desacreditadas como agentes imperialistas. Quanto aos "direitos humanos" e à defesa da "democracia", perderam-se nas matanças em Gaza e com a Ucrânia celebrando o criminoso nazi Stephan Bandera e outros SS como heróis nacionais.

Um novo sistema geopolítico formou-se fora do controlo dos EUA. A Rússia e a China, pressionam para "uma ordem mundial alternativa", na qual a Índia alinha. A cimeira dos BRICS em Kazan, outubro de 2024, na qual participaram líderes de 36 países, formalizou o fim do mundo unipolar e a incapacidade do ocidente marginalizar a Rússia e Putin, colocando a hegemonia ocidental em cheque. A realidade da desdolarização comprova-o:   46 países passaram a fazer transações em moedas nacionais e 53 países opuseram-se abertamente ao dólar. (https://t.me/geopolitics_live/40374, Telegram, 05/01)

De cabeça perdida os neocons alojados no Partido Democrata arrastavam o mundo para uma guerra total. Supondo-se excecionais tornavam a diplomacia uma forma de mentir e de chantagem, desprezando os interlocutores, violando tratados assinados (Minsk) e compromissos assumidos (Taiwan, expansão da NATO) fiando-se na cobertura dos seus media. A forma decisiva de lidar com as questões era a da força, a destruição de tudo o que se lhes opusesse: guerras, invasões, "revoluções coloridas", sanções, tudo lhes parecia permitido e justificável. Como disseram os líderes nazis: aos vencedores ninguém pede contas. O problema é que os EUA não o eram, nem são, militar e economicamente.

A participação do G7 na economia global em paridade de poder é já inferior à dos BRICS que representam representam 3,6 mil milhões de pessoas, 45% da população mundial, 36% do PIB global em paridade de poder de compra, superando os 29,3% do G7 e os 14,5% da UE. O crescimento previsto do BRICS em 2024 é de 4%, contra 1,7% do G7.

A nível mundial têm 21,4% das reservas de ouro; 23,8% de cereais; 53,3% carne; 52,3 do gás; 42,7% do petróleo; 40,8% do carvão; 72% das terras raras, 75% do manganês e 50% do grafite". A Rússia, China e RPDC têm cerca de 90% da produção de tungstênio mundial, um metal crucial para a fabricação de armas, tendo a China imposto o controlo da sua exportação, bem como controlos de exportação a quatro outros minerais com aplicações em indústrias de alta tecnologia.

Dos dez portos marítimos de contentores mais movimentados, sete estão na China, um Coreia do Sul outro em Singapura. A maioria do comércio mundial acontece a oriente. Os vassalos europeus tapam as cabeças para não verem que se tornaram simplesmente uma península do continente euroasiático.

A presença da Rússia e da China em África, abre uma via para os países africanos se libertarem do neocolonialismo e imposições do FMI e BM. A RPDC não é mais um país isolado, o Irão é uma importante potência política e militar a nível regional. Quanto às ilusões dos EUA serem o país mais avançado em investigação científica e desenvolvimento, embora acumulando Prémios Nobel (!), a China registou em 2022, 1,58 milhões de patentes, quase metade dos pedidos globais, mais do triplo das registadas pelos EUA.

A hegemonia dos EUA consistiu em definir interesses nacionais como interesses internacionais. No período de ascensão dos impérios regista-se a expansão do comércio e da produção. Esta fase termina quando os custos para aumentar ou apenas manter a expansão existente, não são compensados pelos lucros obtidos. A concorrência que se intensifica, despesas administrativas e militares cada vez maiores contribuem para isso.

Ao tornarem-se dependentes de financiamento externo e menor atividade económica real, os EUA ficaram na situação característica do fim dos impérios. A financeirização apenas atrasou o inevitável com várias crises sucedendo-se-se até explodir em 2008. Desde então os desequilíbrios só aumentaram. A hegemonia foi prolongada com truques financeiros e coerção, mas também pelo que se tornou a sua principal arma não nuclear: a propaganda.

5 – Fragilidades militares

A política dos neocons assentava em que poderiam financiar – e possivelmente lutar – em três guerras em três diferentes partes do mundo ao mesmo tempo. Esta política irracional – omitindo o que tem de criminosa – fazia tábua rasa de que os EUA, militarmente tinham-se preparado no fundamental para travar guerras imperiais no exterior, perante oponentes fracos, subestimando a defesa do território nacional. Os EUA não têm defesa contra os Sarmat russos que podem atacar os EUA, pelo sul, ou o míssil submarino Poseidon capaz de devastar zonas costeiras ou esquadras navais de porta-aviões.

O dilema das alucinações neocons reside no excessivo consumo de dólares, envolvendo o império em guerras que não venceu ou, caso da Ucrânia, sem saber sair delas. As guerras custam caro e a questão que sempre acaba por se colocar é: quem as paga?

Por muito que a idiótica propaganda da UE/NATO queira apresentar a produção militar como desenvolvimento económico, são despesas improdutivas. Se exportadas tornam-se bens transacionáveis, mas para quem as compra são sempre despesas improdutivas, mesmo que possam ser necessárias à defesa da soberania do país, porém na NATO dá-se o contrário: quanto mais armas compram aos EUA ou queiram produzir (contra a Rússia?), menos soberania dispõem.

Na Ucrânia a ilusão da supremacia militar ocidental foi destruída. As manobras da China, em redor de Taiwan, mostram que o domínio marítimo dos EUA na região foi posto em causa. Nos EUA e na UE/NATO podem protestar e ameaçar, mas não têm ideia de como entrar em guerras ou aplicar (mais) sanções que não se voltem contra eles próprios. O resto do mundo agora avalia-os em função da realidade.

Os "famosos" Leopard, Challenger, Abrams, da NATO, encontraram na Ucrânia o seu cemitério ou foram expostos em Moscovo para gáudio de locais e visitantes estrangeiros – eventuais ex-compradores. A defesa aérea da UE/NATO é praticamente inexistente contra mísseis hipersónicos ou mesmo determinados tipos de drones. Os EUA não estão em condições muito diferentes, os Patriot são insuficientes contra os mais avançados mísseis hipersónicos russos, a sua fronteira Sul está indefesa e criar uma defesa ao nível dos S-400 ou S-500 russos levaria anos já não falando nos custos.

Claro que num confronto com os EUA a Rússia não ficaria incólume, apesar da eficácia dos S-400 e S-500, mas também não os EUA que não têm defesas contra os Poseidon, os portadores balísticos Sarmat e Yars, o míssil de propulsão nuclear Buresvetnik, ou o míssil de cruzeiro Avangard que atinge Mach 28. Os Kinzhal com alcance de 2 000 km, Mach 10, estão concebidos para atacar porta-aviões. O novo míssil portador Oreshnik veio acrescenta à Rússia uma capacidade sem paralelo num conflito europeu.

Os comentadores podem agora lastimar-se ou indignar-se. Deveriam antes das baboseiras que andaram a debitar meses a fio pensar em que indústrias, que componentes, que tecnologias iriam colocar ao serviço das guerras dos neocons e além disto algo muito simples... que combustível? O delírio cognitivo do Ocidente, pondo de parte soluções construtivas, apenas aprofundou contradições e fracassos. Por isso, a propaganda triunfalista dos comentadores deu lugar a uma espécie de caramunha...

A “Europa” perderá toda a credibilidade se a Rússia vencer na Ucrânia, proclamava Macron. Profético... Como na fábula só lhe faltava dizer como e quem ia pôr o guizo ao gato, isto é, como pensava vencer a Rússia.

As fragilidades militares dos EUA também ficaram bem visíveis perante os Houthis (as da NATO tocaram o ridículo). A Defense Intelligence Agency dos EUA num relatório sobre os ataques Houthis, revelou o fracasso de Washington em proteger uma das vias navegáveis mais importantes do mundo. A dita coligação naval, não só não foi capaz de garantir segurança no Mar Vermelho, como os Houthis aperfeiçoaram as suas ações e aumentaram o seu arsenal com armas mais eficazes, colocando em cheque o hegemónico apesar das centenas de milhões de dólares gastos.

Trump e a sua equipa sabem que as suas forças armadas precisam urgentemente renovar-se. O essencial do seu poder militar, porta-aviões e bases militares espalhadas pelo globo, tornaram-se alvos frágeis, com defesas insuficientes – e ultra caras – face aos mísseis da Rússia, China, RPDC, Irão. Em particular os grupos de porta-aviões tornaram-se obsoletos pelas armas de precisão de longo alcance e hipersónicas, capazes de os afundar a uma distância segura.

Militarmente os Estados Unidos não são competitivos tanto em termos de produção como de desenvolvimento: falharam em desenvolver sistemas de armas hipersónicas utilizáveis e estão muito atrasados quanto à tecnologia de defesa antimísseis.

Porém, a maior fragilidade do furor belicista que as elites ocidentais promoveram são certamente os protestos contra a guerra tanto nos EUA como por toda a UE/NATO, expressando-se contra as ações de Israel, em solidariedade com o povo palestino e contra o envolvimento no conflito na Ucrânia, exigindo o fim das guerras e negociações sérias.

6 – A "revolução" Trump – contradições

Os EUA tal como a UE/NATO têm vivido numa bolha virtual criada por falsos profetas como o do "Fim da História" e pelo desvario neoliberal de Hayek, Friedman e congéneres. Tal não é mais sustentável. Os EUA encontram-se mergulhados em profundas contradições de ordem económica, social, capacidade militar. A oligarquia associada a Trump parece compreender isso.

O vice-presidente Vance, foi a Munique, tratar duramente os políticos da UE/NATO, como um amo descontente com seus vassalos, apontando-lhes maiores despesas militares e o fim da russofobia: "a maior ameaça à Europa não é a Rússia ou a China, é a ameaça interna contra os valores europeus tradicionais". Falou nas eleições anuladas na Roménia e que algo semelhante se podia passar na Alemanha. Baixando as orelhas, tal como Putin tinha dito, van der Leyen considera que a UE "tem de se adaptar às novas realidades" (!) e Mark Rutte mudou de posição acerca das hipóteses da Ucrânia de ingressar na NATO. Sobre o discurso de Vance, disse Trump: "Achei que ele fez um discurso brilhante. A Europa precisa ter cuidado". (!) (https://t.me/geopolitics_live/43733, Telegram, 14/02)

Vance recusou encontrar-se com Scholz. De acordo com um funcionário dos EUA, Vance considera que Scholz "não será chanceler por muito tempo" e não há necessidade de se reunir com ele. Antes, Scholz afirmara não reconhecer negociações estando a Ucrânia sob pressão. Alguns comentadores, choramingando, dizem que Trump fez de Putin um líder mundial. Esta frase reflete bem a sua incapacidade de compreender a realidade...

Embora seis grandes corporações de media possuam 90% do que o povo dos EUA vê, ouve e lê”, determinando o que é "importante", o que se discute, e o que deve ser ignorado, a sua ação estendendo-se aos dedicados vassalos europeus, a mentira não resulta contra a realidade.

A congressista republicana Marjorie Taylor Greene ao confrontar um jornalista, questiona esta situação e introduz um aspeto da "revolução" de Trump:   "Estou farta da imprensa de Washington. Suas suposições são ignorantes, e você está absolutamente desconectado e sem noção sobre o que é importante na vida e para os americanos. Por que não tratam sobre o que é importante para as pessoas?" São estes aspetos que fazem agora os "atlantistas" sentirem-se-se órfãos de partido democrata neocon, a bolha de mentiras em que têm vivido satisfazia-os, mesmo que a única maneira de manter a narrativa fosse empurrar o mundo para uma guerra global.

Para além do errático que Trump seja ou faça por parecer, expressa a tomada de consciência da oligarquia perante o declínio do poder dos EUA. Esse errático é um assumir de posições de força, mesmo que pareçam inconsequentes, para fazer avançar o seu programa, forçando aliados à obediência e negociando com os que os necons apresentavam como inimigos, transformando-os simplesmente em adversários.

Na política externa talvez o problema mais complexo seja o atoleiro do Médio Oriente, onde interesses contraditórios se defrontam entre a Turquia, Israel, Arábia Saudita, Irão. Embora com garantias de apoio a Nethanyau, Trump mostrou-lhe que não tem intenção de se envolver em novas guerras, pois pretende priorizar as questões internas dos EUA. Os assessores de Trump informaram as autoridades israelenses que o novo governo dos EUA visa trazer estabilidade ao Médio Oriente, concentrando-se em promover a paz entre Israel e o Líbano e manter o cessar-fogo em curso.

O objetivo sionista de empurrar os EUA para uma guerra com o Irão praticamente foi eliminado. Trump ao declarar querer transformar a Faixa de Gaza em zona de turismo de luxo, fez os protagonistas regionais manifestarem-se, evidenciando o isolamento de Israel.

A Arábia Saudita num comunicado de Mohammed bin Salman, reagiu duramente, dizendo que não estabeleceria laços com Israel sem o estabelecimento de um Estado palestino, garantindo que sua posição era "firme, inegociável e inabalável" e que "não interromperia o seu trabalho incansável para a constituição de um Estado palestino independente com Jerusalém Oriental como sua capital". A "violação dos legítimos direitos do povo palestino pelas políticas de colonatos, anexação e deslocamento de Israel", foi categoricamente rejeitada: "esta questão foi claramente estipulada tanto para o governo anterior como para o atual dos EUA".

Netanyahu faria bem em olhar para o exemplo de Zelensky, já que a Arábia Saudita é muito mais importante para os objetivos dos EUA do que Israel, que aparece como enorme encargo financeiro.

No fundo das questões está o problema económico. Pondo de parte que sejam os oligarcas a pagarem a crise, resta fazer os aliados pagar para o serem e cortar despesas. Algo que envolve entrar em conflito com a burocracia imperial. Esta tarefa está entregue a Elon Musk que, com o seu DOGE, já iniciou investigações sobre como funcionários do governo com salários de algumas centenas de milhares de dólares acumulam dezenas de milhões em património líquido, "misteriosamente, eles ficaram ricos", ironizou Musk. O Pentágono também está na mira: com um orçamento de 850 mil milhões (2024) como é que a organização não consegue passar por uma auditoria e dizer para onde foi esse dinheiro? (https://t.me/geopolitics_live/43508, Telegram, 12/02)

Musk quer fechar a Radio Free Europe, a Radio Liberty e a Voice of America:   “São apenas pessoas falando sozinhas enquanto queimam 1000 milhões por ano. Segundo a NBC, vários consulados podem ser fechados para economizar fundos do Departamento de Estado. Claro que há reações e protestos de funcionários dos organismos inspecionados. Juízes levantaram obstáculos à investigações de Musk – Trump reage: "Parece difícil acreditar que juízes queiram tentar impedir-nos de eliminar a corrupção. Parece difícil acreditar que um juiz possa dizer:   Não queremos que você faça isso. Então, talvez tenhamos que olhar para os juízes porque acho que isso é uma violação muito séria”. A tensão atinge também o FED, com graves acusações de Trump ao seu presidente por desencadear e não resolver a crise inflacionária recusando-se a cortar as taxas de juro e te-las manipulado para ajudar os bancos e Wall Street contra os pequenos no passado. (https://t.me/geopolitics_live/43551, Telegram, 12/02)

Estamos assim perante os sinais da crise não só da hegemonia, mas do próprio hegemónico. Trump, assumindo o atual declínio, quer levar a oligarquia dominante a construir uma nova hegemonia. A questão é: como? De qualquer forma, diz Pepe Escobar, o que resta saber é a profundidade à qual a “ordem internacional baseada em regras” será enterrada.

17/Fevereiro/2025

A primeira parte encontra-se aqui.

Este artigo encontra-se em resistir.info

 

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