segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O imperialismo americano em convulsão

 800 bases militares espalhadas pelo mundo. Controle dos fluxos de informação essenciais à economia. Violência e tortura contra os inimigos. Três livros mostram como, ainda assim, o poder dos EUA nunca foi tão decadente e vulnerável

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Por Ladislau Dowbor

Cold inhumanity
Burning insanity
Thomas Hood, The Bridge of Sighs, 18441

Entender o imperialismo americano moderno envolve juntar diversas dimensões, e vale a pena. Queiramos ou não, os Estados Unidos constituem hoje uma ameaça planetária, com as convulsões e reações extremistas de um império em decadência. Nada como os próprios americanos para apresentar as transformações em curso, e queria aqui apresentar três livros que ajudam muito na compreensão das dinâmicas. Apresento uma breve resenha de cada um, pois são muito complementares em termos de construção de uma visão sistêmica.

David Vine, em United States of War: a global history of America’s endless conflicts, permite uma visão excepcionalmente bem documentada da força da dimensão guerreira americana distribuída no mundo. Underground Empire: how America weaponized the world economy, de Henry Farrell e Abraham Newman, mostra como as plataformas modernas de comunicação e de mídias sociais, incorporadas ao sistema de inteligência e segurança, se integram às formas de dominação militar, política e cultural nos Estados Unidos e no mundo. Tim Weiner, em The Mission: the CIA in the 21st century, nos traz uma análise extremamente detalhada de como funciona, no mundo e nos próprios Estados Unidos, o sistema de ações encobertas, e as lutas pelo seu controle em sucessivos governos. Os três livros são de pesquisadores excepcionalmente capacitados: estamos aqui no campo da análise científica, dado importante nesta era de gritaria política generalizada.

Violência e Guerra como cultura política


O título do livro de David Vine, um jogo de palavras, Estados Unidos da Guerra em vez de “da América”, é forte. A violência aqui é um negócio, business. Lembro aqui o pano de fundo econômico, apresentado por Peter Phillips: “Os fabricantes de armas e seus investidores são, de certa forma, viciados em conflitos militares e em gastos para se preparar para eles. Por exemplo, as ações de empresas militares e de segurança dispararam quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022. Algumas semanas após o início do conflito, as ações da Raytheon subiram 8%, as da General Dynamics 12%, as da Lockheed Martin 18% e as da Northrop Grumann 22%, enquanto as ações de guerra na Europa, Índia e outros lugares experimentaram picos semelhantes na expectativa de um aumento exponencial nos gastos militares globais.”2 (p.171) Apenas negócios, mas globais. E não temos uma estrutura regulatória global correspondente, com os organismos reguladores internacionais, datando de Bretton Woods, fragilizados. A ONU tem 80 anos.

O complexo militar-industrial é poderoso, e vem se expandindo, e isso permite entender melhor que não se trata apenas de guerras, mas de uma rede mundial de infraestruturas militares que foram cobrindo a maior parte do planeta. “Em vez de olhar primariamente para as próprias guerras, este livro olha para a infraestrutura que tornou essas guerras possível. Mais do que um livro sobre batalhas, este livro utiliza as bases militares como janelas para compreender o padrão de guerras intermináveis dos Estados Unidos.” (p.2)

Bases militares dos EUA no exterior, 2020 (Américas não incluídas aqui)3



Segundo Vine, “Na altura de 2020, os Estados Unidos controlavam cerca de oitocentas bases fora dos cinquenta estados americanos e de Washington DC. O número de bases e o segredo e falta de transparência da rede de bases torna qualquer apresentação gráfica um desafio. Este mapa reflete o número relativo e o posicionamento das bases segundo os melhores dados disponíveis.” A normalidade com a qual aceitamos esta rede de bases é impressionante. Rafael Correa, presidente do Equador, recusou em 2009 a instalação de uma base militar americana no seu país e comentou, frente à pressão americana, que então deveria ser normal o Equador abrir uma base militar em Miami. (p.2)

O custo do sistema global é imenso, mas os Estados Unidos, por terem o dólar como moeda-reserva no resto do mundo, podem imprimir a sua moeda (hoje simplesmente “emitir” moeda virtual), financiando a sua infraestrutura militar com dólares que serão gastos fora dos Estados Unidos, sem gerar inflação. “O que, senão um império, é um país que em grande parte desenhou o sistema político-econômico internacional do mundo pós-Segunda Guerra Mundial; que tem tido a economia mais poderosa do mundo; que pode imprimir dólares para pagar as suas dívidas porque o dólar americano é a moeda-reserva mundial; que tem um controle sem paralelo sobre as Nações Unidas e outras organizações internacionais; e que tem tido influência sem paralelo na mídia e cultura, sobre outros países e populações, graças a Hollywood, música pop, a Internet e mídia social? O que, senão um império, é um país que tem uma lista ininterrupta de guerras desde a sua fundação, incluindo, em anos recentes, a invasão e ocupação por longo prazo de dois países, Afeganistão e Iraque, do tamanho do Texas e da California, respectivamente? O que, senão um império, é um país que mantém oitocentas bases militares no solo de outros povos?” (p.10)

Essa vontade de controle global, segundo Vine, é absurda: “Contrariamente à afirmação de que as bases melhoram a segurança global, estão estimulando a corrida de armas e tensões militares regionais. Isso aumenta igualmente o risco de confrontos militares ou guerras, acidentais ou não, enquanto também desperdiça vastas somas de dinheiro que podia ser utilizado para responder às necessidades das populações nas áreas de saúde, educação, habitação, infraestruturas e semelhantes.” (312)

Interessante notar que os US$2,3 trilhões de dólares gastos nos 20 anos de guerra no Afeganistão, para devolver o governo dos Talibãs aos Talibãs, representam 315 milhões de dólares ao dia (1,7 bilhões de reais). Isso teria permitido custear numerosas escolas e hospitais por dia, durante tantos anos, e teria sido muito mais produtivo, em termos de ganhar as populações, do que as bombas. E se não aceitassem, podiam fazer nos países vizinhos, com efeitos políticos profundos para a região. Em termos geopolíticos, é simplesmente burrice.


O controle da comunicação e da informação


O livro de Farrell e Newman4 foca outra rede, a de comunicação e controle tecnológico. Cheguei ao livro a partir de um comentário sobre ele por parte de Paul Krugman, Nobel de Economia: “Não é só que o comércio global representa uma parte maior da atividade econômica do que no passado; é também que a complexidade das transações internacionais é muito maior do que antes. E o fato que tantas dessas transações passam por bancos e cabos que os Estados Unidos controlam, dando a Washington poderes que nenhum governo possuiu na história.” 5

Esta é a essência do livro de Farrell e Newman, como o controle dos fluxos de informação online se transforma numa arma global. “Nossa pesquisa sobre a interdependência armada – o uso pelos governos de redes globais como ferramentas de geopolítica – levou à forma como quem gera as políticas pensa sobre o mundo.”(p.207)

O impacto é profundo: “A propriedade intelectual se tornou uma linha de pesca longa e quase invisível, com atrativos brilhantes e anzóis com iscas que empresas estrangeiras engoliam. Quando os Estados Unidos começaram a puxar a linha, Huawei e a China compreenderam o quanto a sua sorte dependia de um poder crescentemente hostil…Os Estados Unidos podiam usar sua capacidade de estrangulamento nos canais através dos quais passavam as comunicações globais, as finanças, e a tecnologia, de modo a aprisionar até as empresas chinesas mais poderosas.”(105) Esses pontos de estrangulamento controlados pelos Estados Unidos controlam ”o maquinário subterrâneo da economia mundial.” (110)

É curioso o ataque dos Estados Unidos contra a Huawei, acusada de ser uma empresa particular, mas com laços com o governo chinês, como se o sistema de comunicação e informação americanos existissem no “livre mercado”. ”A NSA manteve e expandiu o seu foco na segurança em sinais. Novas leis, tais como a lei CLOUD (Clarifying Lawful Overseas Use of Data), autorizam as agências de execução de leis de forçar as empresas a entregar a sua informação, mesmo quando estão em servidores localizados em países estrangeiros. Os cabos de fibra ótica que passam pelos Estados Unidos ainda são desviados para salas secretas, onde os seus segredos são revelados para decodificadores.”(p.60)

As transferências de recursos pelo SWIFT são igualmente acessadas pela CIA. (p.63) “O SWIFT tinha sido transformado de uma organização politicamente independente, o que se supunha que ajudasse a proteger os bancos de regulação governamental, num servente clarividente dos Estados Unidos, cujo conhecimento mapeou o mundo escondido de transações financeiras internacionais (…) Depois que o SWIFT abriu as portas a demandas políticas, não podia fechá-las.”(p.66) Economia de mercado? Na realidade, o poder do governo e das corporações se reforçaram mutuamente.(p.171) Microsoft e outros gigantes da comunicação não só repassavam as informações sobre os seus usuários para o governo americano, como foram proibidos de revelá-lo publicamente. (p.152)

Nossa informação privada está na nuvem, e a nuvem está nas mãos dos sistemas políticos e de segurança. São “cloud services”. Bancos estrangeiros como BNP Paribas ou HSBC passaram a ter supervisão direta americana, “direct US supervision.”(p.72) No mercado energético, que tem importância estratégica evidente, o controle é integrado: “E porque o petróleo é precificado em dólares, quando um cliente alemão ou francês fazia uma compra, os seus bancos tinham de realizar a transação através dos bancos correspondentes localizados nos Estados Unidos”, gerando controle comerciais e informações para as firmas americanas. A invasão das comunicações telefônicas de Angela Merkel ou de Dilma Rousseff, uma invasão impressionante, hoje é muito mais sofisticada e generalizada.


O gráfico que acrescento aqui, de outra fonte, mostra a dominação do fenômeno corporativo pelos Estados Unidos, a globalização de controle no mundo online em particular. O controle econômico planetário se desloca, a própria China tem um volume de produção muito maior do que os Estados Unidos, mas o controle global por gigantes corporativos é essencialmente norte-americano. A dominância dos gigantes da área digital, aliada aos seus contratos com o sistema militar e de inteligência dos Estados Unidos, geram uma capacidade planetária de controle tão ou mais importante do que a rede de bases militares. O livro não menciona a Palantir ou as atividades de Peter Thiel, provavelmente assunto demasiado delicado, pelos envolvimentos diretos nas guerras da Ucrânia e da Palestina.

Fonte: https://www.visualcapitalist.com/ranked-50-most-valuable-companies-in-the-world-july-2025/

Vemos no gráfico a que ponto o sistema planetário de comunicação norte-americano é dominante, e a sua articulação com os sistemas de inteligência, as informações militares, as informações tecnológicas e diversos grupos de interesse asseguram uma estrutura imperialista poderosa.

A rede clandestina de violência

O livro de Tim Weiner,6 de 2025, foca as atividades da CIA nas últimas décadas, e demonstra um nível excepcional de acesso às informações internas do sistema de inteligência norte-americano. Tendo trabalhado no New York Times cobrindo as áreas de segurança, tornou-se uma pessoa de nível excepcional de informação na área. O livro mostra tanto a brutalidade das atividades, como a corrupção interna do sistema, as guerras com os sucessivos governos (os Bush, Trump, Biden, Trump) e em particular o detalhe dos procedimentos de busca de informações em diversos países. Estamos no século 21, não na Idade Média, mas é essencial relatar esta parte de um relatório interno sobre um interrogatório.

“Os interrogadores amarraram as bandagens apertadas sobre a ferida, viraram ele para trás, e começaram a derramar água por sua garganta abaixo e no seu nariz por quarenta segundos de cada vez. Ele sufocava, se engasgava, vomitava, uivava e se contorcia. Os afogamentos continuaram até as 8:54 p.m. Então o trancaram numa caixa do tamanho de uma pequena casa de cachorro, 53 cm por 75 por 75 cm, e o mantiveram nela toda a noite. Então repetiram o afogamento (waterboarding) por quatro dias.” Seguem detalhes, o interrogatório mencionado aqui se deu na Tailândia, porque o presidente Bush tinha declarado com força que “Os Estados Unidos não torturam.”

Os interrogatórios se dão em diversas partes do mundo, fazem parte dos acordos de bases militares, constituindo os chamados “black sites”, centros de tortura por exemplo em Stare Kiejkuty na Polônia, e são numerosos os países. Nas reuniões políticas nos Estados Unidos, inclusive na Casa Branca, a tortura é chamada de enhanced interrogation techniques. Essas atividades são frequentemente privatizadas, de maneira a livrar os Estados Unidos de responsabilidade política direta – por exemplo com a empresa Blackwater. “A Blackwater gerou uma fortuna, US$600 milhões em contratos com a CIA, US$1,2 bilhão com o Departamento de Estado, e centenas de milhões mais com o Pentágono”. A empresa tem uma rede em escala mundial. (p.185)

É útil, pelo menos, do ponto de vista militar americano? “O buraco negro na Casa Branca estava devorando dezenas de milhares de vidas e centenas de bilhões de dólares. A guerra no Iraque estava gerando terroristas muito mais rapidamente do que a CIA e os soldados americanos os conseguiam capturar ou matar.”(p.159) Como no caso do Afeganistão, este tipo de comportamento, generalizado, gera muito mais revolta do que respeito. O mundo islâmico viu os vídeos documentando as torturas em Abu Ghraib, gravados pelos próprios militares americanos.

O que é eficiência para um torturador? Sim, estamos no século XXI. A guerra na Palestina é dominantemente financiada pelos Estados Unidos. Como o foi o golpe de estado na Ucrânia em 2014. O general americano H. R. McMaster comentou sobre a derrota no Afeganistão: “O Talibã não nos derrotou. Nos nos derrotamos a nós mesmos”.(p.357) Bush chamou esta guerra de Operação Liberdade Duradoura, Operation Enduring Freedom.

Tim Weiner é fortemente anti-Trump: “O que a CIA deve fazer quando o presidente dos Estados Unidos é uma ameaça à segurança nacional?” (p.313)

De dentes arreganhados para o mundo, defendendo um império em declínio, e mordendo


É interessante aproximar esses livros, que apresentam a máquina militar americana espalhada pelo planeta, mostrando a articulação dos sistemas militares e de informação com as mídias sociais que todos utilizamos, e a rede de atividades clandestinas da CIA, NSA e semelhantes, sequestrando, torturando ou matando pessoas em diversas partes do mundo, em atividades que mais parecem que estamos na Idade Média.

Eu associo esses três livros, que ajudam a “compor” a estrutura de funcionamento real dos Estados Unidos, ao livro de Peter Phillips, sobre The Titans of Capital: how concentrated wealth threatens humanity, mencionado acima. Considerem que os dez maiores controladores financeiros do mundo, gestores de ativos (asset management), asseguram o domínio americano sobre of fluxos financeiros no mundo, administrando, em 2022, US$ 50 trilhões, equivalentes à metade do PIB mundial, US$ 100 trilhões.

Estão todas presentes nas grandes empresas militares dos Estados Unidos. E muito presentes no Brasil, por exemplo a BlackRock nos bancos Itaú e Bradesco e outras grandes empresas brasileiras privatizadas. Pela importância, fiz uma resenha separada deste livro, que você pode acessar no meu site.7

E faltaria apresentar o funcionamento do gigante Palantir, um gestor privado de intervenções americanas internacionais. Ainda estou à procura de boa documentação de um destes aspectos mais tenebrosos da política internacional dos Estados Unidos. Igualmente importante é a rede mundial chamada de Atlas Network, co-organizadora das mobilizações populares no Brasil em 2013, mas de ampla atuação em numerosos países, rede de cerca de 500 organizações, outra forma de rede americana, os think-tanks.8 E é importante lembrar que os Estados Unidos têm de longe a maior população carcerária do planeta, sem falar das chacinas que ocorrem regularmente. A deformação é sistêmica, e profundamente enraizada na cultura do país. MAGA?

1 Em tradução livre: Fria desumanidade, ardente insanidade

2 Peter Phillips – Titans of Capital: how concentrated wealth threatens humanity – Censored Press, New York, 2024, p. 171

3 David Vine – United States of War:a global history of America’s endless conflicts, from Columbus to the Islamic State – 2020, University of California Press, p.5 (No livro, p.4 e 5 incluem as Américas, não incluídas aqui devido ao tamanho. No mapa, as estrelas maiores são de países onde os EUA têm 25 ou mais bases. – LD)

4 Henry Farrell e Abraham Newman – Underground Empire: how America weaponized the world

economy – Henry Holt, New York, 2023, 278p.

5 Foreign Affairs – Paul Krugman – “The American Way of Economic War” – Jan/Feb 2024

https://www.foreignaffairs.com/reviews/american-way-economic-war-paul-krugman

6 Tim Weiner – The Mission: the CIA in the 21st Century – Mariner Books, New York, 2025, 454 p.

7 Peter Phillips – Titans of Capital – Seven Stories Press, 2024 –

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Um buraco negro na memória coletiva: China e Segunda Guerra Mundial

 


Do Counterpunch :


Fonte da fotografia: Sha Fei – Domínio Público

Enquanto a China se prepara para comemorar o 80o aniversário da vitória sobre o fascismo em 3 de setembro de 2025, a atenção global se volta para o desfile militar de Pequim. Especulações giram sobre quais líderes mundiais se juntarão ao presidente Xi Jinping – a presença de Putin é quase certa, embora os sussurros de Trump participem pareçam exagerados. Alguns defensores da paz argumentam que este momento oferece uma chance para as potências globais refletirem sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial, um sentimento alinhado com o espírito da Carta da ONU e urgente em meio a crescentes tensões globais. No entanto, a recusa dos líderes europeus em participar, citando preocupações sobre ofender o Japão, revela uma questão mais profunda. A comemoração da China encerra o ciclo dos aniversários da Segunda Guerra Mundial, mas levanta uma questão crítica: realmente entendemos o alcance global desta guerra ou permitimos que capítulos vitais desaparecessem na obscuridade?

Existe uma lacuna gritante em nossa memória coletiva da Segunda Guerra Mundial – uma guerra que chamamos de “global”, mas uma em que o papel do quarto vencedor aliado, a China, é consistentemente marginalizado. A China entrou no conflito primeiro em 1931, não em 1939, e durou até a rendição do Japão em 1945. Ao longo de 14 anos, sofreu aproximadamente 35 milhões de baixas e reteve um milhão de soldados japoneses, permitindo que a URSS e os EUA se concentrassem em outros lugares. Líderes como Roosevelt, Churchill e Stalin reconheceram o papel fundamental da China na formação do resultado da guerra. Então, por que essa contribuição é tão frequentemente ignorada e enterrada sob camadas de narrativas focadas no Ocidente?

Para muitos, a tragédia definidora da Segunda Guerra Mundial é o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, atos horríveis que servem como um aviso severo do poder destrutivo da humanidade, desencadeado pelos Estados Unidos. Esses eventos merecem lembrança, mas a subsequente ocupação do Japão pelos EUA e a constituição de paz imposta (também conhecida como a Constituição MacArthur) eram menos sobre harmonia do que garantir uma posição estratégica no Indo-Pacífico durante a Guerra Fria. Hoje, o Japão se arma sob o guarda-chuva nuclear dos EUA, ostensivamente para combater uma “ameaça” da China. Essa reviravolta narrativa é tão conveniente quanto enganosa.

Como a Rússia, que preserva ferozmente seus sacrifícios da Segunda Guerra Mundial, a China agora exige reconhecimento pela sua própria. Sua resistência ao militarismo japonês continua sendo uma saga em grande parte incalculável. Um visse sobre esse “buraco negro” de memória coletiva revela atrocidades que desafiam a compreensão: o Massacre de Nanjing de 1937, onde 300.000 civis foram mortos e estupros em massa cometidos; experimentos químicos e biológicos da Unidade 731 em prisioneiros, incluindo crianças, tão vis que chocaram até mesmo os observadores nazistas. Enviados alemães pediram a Berlim que restringisse Tóquio, enquanto os registros japoneses documentaram meticulosamente seu caos brutal. Corajosos historiadores japoneses expuseram esses horrores, mas permanecem marginais no discurso global. Por que o silêncio?

Descobrir a história da Segunda Guerra Mundial a partir da perspectiva da Ásia expõe uma verdade vergonhosa: narrativas ocidentais, amplificadas por Hollywood e pela mídia, glorificaram seletivamente algumas histórias enquanto apagam outras. O resultado? Os perpetradores são reabilitados e as vítimas são reformuladas como vilãs. O Ocidente muitas vezes se apega a uma postura tendenciosa que valoriza algumas vidas sobre outras. As vítimas chinesas receberam pouco reconhecimento global, seu sofrimento ofuscado pela narrativa de redenção do pós-guerra do Japão. Essa hipocrisia ecoa hoje em Gaza, onde a indignação seletiva, lágrimas pela Ucrânia, mas o silêncio por 22 meses de sofrimento de Gaza sob as políticas de Israel, revelam o mesmo duplo padrão. Os líderes europeus, moldados por legados coloniais que enquadram como uma “missão civilizadora”, são cúmplices. Enquanto isso, os EUA alimentam uma guerra comercial com  media a China e, como Kaja e alguns meios de comunicação alertam, se prepara para um conflito mais amplo, enquanto pinta a China como “autoritária e beligerante”. Isso se choca duramente com a história antifascista da China e seu compromisso moderno com a paz global.

O ditado que os vencedores escrevem história se perde aqui. A China, um vencedor claro, teve negada a plataforma para mostrar sua coragem, sacrifícios e contribuições. Hoje, é injustamente marcado como uma ameaça pelo discurso ocidental. A Segunda Guerra Mundial não começou nem terminou na Europa. A China, membro fundador da ONU e a primeira a assinar a Carta da ONU, continua sendo seu apoiador mais firme. Ela rejeita a narrativa dominada pelos EUA, trabalhada por um retardatário na guerra que sofreu o mínimo, mas desencadeou a devastação atômica. O legado da Segunda Guerra Mundial na China alimenta sua missão moderna: erradicar a pobreza, ajudar o Sul Global, construir infraestrutura global e defender a paz e um futuro para a humanidade.

A comemoração de Pequim é uma refutação ousada à monopolização da memória da Segunda Guerra Mundial pelo Ocidente. Como Warwick Powell afirma:“Por oito décadas, o Ocidente reescreveu a Segunda Guerra Mundial como uma vitória dos EUA e da Europa, relegando a China ao status de nota de rodapé. A comemoração da China este ano desafia essa amnésia, recuperando o papel do país como uma força central na derrota do fascismo. Nos tempos difíceis de hoje, no entanto, a lembrança por si só não é suficiente. De Gaza para além, a luta contra a desumanidade e o fascismo exige que enfrentemos esses pontos cegos históricos e seus ecos modernos.

Este artigo foi produzido pela Globetrotter.

 

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Quando o Império engasga, o Sul respira

 

Este artigo encontra-se em resistir.info

 

– O BRICS+ é contraditório, desigual e frágil, mas nas suas frestas o Sul Global abre espaço para a soberania e a luta
– A multipolaridade surge da crise, não do consenso

Prince Kapone [*]

BRICS, cartoon de Latuff.

A história que nos vendem é que a "ordem" foi construída por homens sensatos em fatos elegantes. A história que vivemos é diferente. A multipolaridade não surgiu de seminários ou cimeiras; é o ressalto de cinco séculos de pilhagem, o recuo das guerras e sanções e a recusa dos colonizados em continuar a pagar pela civilização de outrem. A sua genealogia remonta ao Comunicado de Bandung (1955) — o primeiro grande encontro em que a maioria da humanidade falou em seu próprio nome — passando pelo longo desvio da dívida, do ajustamento estrutural e da contra-insurgência disfarçada de "desenvolvimento".

A promessa de Bandung era simples e subversiva: soberania, coexistência pacífica, cooperação e voz na economia mundial para aqueles que realmente fazem a economia mundial funcionar. Pode ler essa promessa preto no branco no texto do comunicado, um documento que ainda soa radical porque os mesmos impérios continuam ofendidos pelas mesmas palavras. O recente dossiê da Tricontinental, O espírito de Bandung (2025), mostra que não se tratava de etiqueta — era um programa de trabalho para a descolonização a partir de baixo.

A resposta do núcleo imperial foi apertar os parafusos. Em 1975, a Comissão Trilateral diagnosticou o verdadeiro problema como “demasiada democracia”, uma admissão franca em The Crisis of Democracy (A Crise da Democracia) de que a participação popular tinha de ser disciplinada para restaurar o controlo da elite. Pouco depois, veio o chicote da dívida e o ajustamento estrutural: privatizar os bens comuns, cortar os bens públicos, abrir as veias ao capital, chamar-lhe modernização. Até mesmo os próprios registos da família da ONU descrevem como esses programas de ajuste foram vinculados aos empréstimos, como exigiram austeridade como preço do crédito e como os órgãos de direitos humanos alertaram durante anos que tais “reformas” prejudicam os direitos e a proteção social. A literatura académica preencheu o custo humano: o ajuste estrutural está correlacionado comsistemas de saúde mais fracos e maior mortalidade infantil. Por outras palavras, recolonização por folhas de cálculo.

Então caiu a máscara. A crise de 2008 — criada na metrópole e exportada para todos — ridicularizou os sermões sobre “finanças sólidas”. O Relatório sobre Comércio e Desenvolvimento (2009) da UNCTAD e seu capítulo sobre países em desenvolvimento documentaram como o Sul pagou um “preço alto” por uma crise nascida no centro. A lição foi aprendida: se as regras são manipuladas para socializar as perdas de Wall Street e privatizar o futuro do Sul, o Sul deve mudar as regras — ou sair do jogo.

Esse é o solo em que os BRICS brotaram — não como utopia, mas como recusa. Com o tempo, o bloco se ampliou para BRICS+, adicionando novos membros e parceiros à medida que os Estados buscam espaço para respirar fora do jugo do dólar. A onda mais recente não é um rumor, mas um facto:   em 1 de janeiro de 2024, o Egito, a Etiópia, o Irão e os Emirados Árabes Unidos entraram como membros plenos e, em janeiro de 2025, o Brasil anunciou a adesão da Indonésia, ecoada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da China e corroborada por reportagens independentes. Nada disso torna o BRICS+ socialista; torna-o útil — um espaço contestado onde o monopólio da gestão imperial está a quebrar. Para uma visão sóbria do Sul Global sobre o que realmente está a acontecer (e o que não está), veja a análise do South Centre sobre os debates sobre a desdolarização no interior do BRICS.

A multipolaridade não é um slogan; é uma contracorrente material. É possível observá-la na infraestrutura e nos canais de pagamento do mundo. A linha de vida marítima da Etiópia agora funciona com a ferrovia eletrificada Addis–Djibouti, uma parte concreta da artéria Sul-Sul que os planeadores em Washington nunca pretenderam que existisse. Em todo o continente, a plataforma de pagamentos transfronteiriços da África está a reduzir os custos em moeda forte e a minar o hábito do dólar — precisamente o tipo de mudança tecnicamente “aborrecida” que muda o clima político.

A multipolaridade garante a emancipação? Claro que não. Como a Tricontinental coloca em linguagem simples, a tarefa é passar da redução do risco para a soberania genuína, não trocar um senhor por vários gestores. Mas a virada da história é audível. Bandung nomeou os princípios; o neoliberalismo puniu aqueles que tentaram vivê-los; a crise expôs a hipocrisia; o BRICS+ é a fresta por onde a história respira. A nossa aposta — baseada nos arquivos, nos dados e na memória da luta — é que essa fresta pode ser ampliada por pessoas organizadas, não apenas negociada por Estados.

Linhas de fratura e fronteiras dentro do BRICS+

Peritos em Nova Iorque e Londres continuam a descrever o BRICS+ como se fosse uma única besta, uma espécie de hidra de “mercado emergente” com dez cabeças. É uma ficção conveniente. A realidade é muito mais fragmentada:   uma coligação unida por um antagonismo comum ao poder unipolar, mas repleta de motivos e trajetórias distintas. Para ver este bloco com clareza, precisamos de uma cartografia dos seus tipos, não como um exercício académico, mas como um guia para onde se encontram as contradições.

Comece com os Resistentes Sancionados. O Irão suportou quatro décadas de cerco económico, construindo sistemas comerciais paralelos e rotas de exportação de petróleo, apesar da tentativa de Washington de sufocá-lo. Os especialistas em direitos humanos da ONU chamam a estas sanções pelo que elas são: punição coletiva, fome como arma. A Bielorrússia, sob embargo europeu, respondeu aderindo à Organização de Cooperação de Xangai em 2024, aprofundando a sua viragem eurasiática. Estes Estados trazem para o BRICS+ um conhecimento íntimo da sobrevivência sob o bloqueio imperial. Depois vêm os Estados Estranguladores, situados nas artérias do comércio global. O Canal do Suez, no Egito, movimenta cerca de 12% do comércio mundial. A Etiópia, embora sem litoral, está ligada ao mar através da ferrovia Addis-Djibouti, construída pela China, uma artéria do Belt and Road. A Indonésia aderiu formalmente ao BRICS em janeiro de 2025, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China a confirmar a sua adesão e reportagens independentes a corroborar a adesão. Controla o Estreito de Malaca e o fluxo global de níquel, o mineral da transição energética. A Nigéria, ainda listada como um peso pesado da OPEP, está presa no paradoxo da riqueza petrolífera e da austeridade imposta pelo FMI. Os Emirados Árabes Unidos, outro novo membro, controlam as rotas marítimas e as finanças do Golfo. Nenhum destes Estados é ideologicamente anti-imperialista, mas cada um introduz pontos de influência que corroem o monopólio do controlo dos EUA e da OTAN sobre a circulação. A seguir vêm os Estados oscilantes do subimperialismo:   Brasil, Índia e África do Sul. As suas classes dominantes querem autonomia de Washington, mas também guardam zelosamente as suas esferas regionais, muitas vezes reproduzindo a mesma lógica imperial que afirmam resistir. O Centro de Políticas BRICS do Brasil e o Centro de Políticas para o Novo Sul de Marrocos sublinham a ambivalência:   soberania sem socialismo, influência sem transformação. A Índia troca rupias com a Rússia enquanto participa de exercícios navais dos EUA no Indo-Pacífico. Os barões do agronegócio brasileiro vendem soja para a China enquanto se alinham com o FMI em metas fiscais. A África do Sul desempenha o papel de mediadora na Ucrânia, mesmo enquanto as suas elites aprofundam o domínio do capital mineiro.

Depois, há o Pólo Socialista em Formação. A China, com as suas artérias de aço da Belt and Road e as suas vastas reservas financeiras, e a Rússia, com os seus hidrocarbonetos e dissuasão militar, são as âncoras indispensáveis. Sem elas, o BRICS seria uma sopa de letras. Com eles, o BRICS+ torna-se tanto um escudo quanto uma armadilha:   um abrigo para Estados sancionados e uma plataforma para manobras soberanas, mas também um bloco onde a lógica capitalista está viva e bem, e na Rússia dominante, embora abalada pela guerra. A sua presença é a condição de possibilidade — e a contradição central — de todo o projeto. Finalmente, a Órbita Parceira. Em julho de 2025, o Vietname aceitou o convite do BRICS para se juntar como país parceiro, ao lado da Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. Isso deu vida ao BRICS “20”: dez membros e dez parceiros, representando 56% da humanidade e 44% do PIB global (PPC). A adesão do Vietname é mais do que uma estatística. Ela sinaliza a persistência do não alinhamento — os “Quatro Nãos” proclamados por Hanói: sem alianças, sem tomar partido contra outro país, sem bases estrangeiras, sem uso da força. Numa era em que Washington busca transformar o Vietname num peão contra a China, Hanói, ao contrário, junta-se a um bloco que inclui Pequim. Isso é uma manobra multipolar, não capitulação. O BRICS+ não é um projeto socialista. Mas a inclusão de Cuba muda a geometria. Traz não apenas uma voz, mas uma vanguarda: uma memória viva da revolução e uma tradição ininterrupta de luta anti-imperialista. A sua presença injeta clareza política e profundidade histórica num bloco muitas vezes puxado para os interesses da elite e do nacionalismo burguês. Cuba lembra ao bloco que o Sul Global não precisa apenas de soberania — precisa de emancipação.

Tipologias como estas não são bolas de cristal. São mapas de um campo de batalha. A retórica revolucionária coexiste com práticas subimperiais, a determinação sancionada com os petrodólares. O que une o BRICS+ não é uma ideologia coerente, mas as fissuras na estrutura do império. É nessas fissuras que o Sul Global experimenta um espaço para respirar — e onde os movimentos ainda podem encontrar alavancas para ampliar a ruptura.

O terreno comum da contradição

Retire as siglas e os discursos das cimeiras e o que resta é claro: a única coisa que une o BRICS+ é uma situação difícil comum. Cada Estado chega com as suas próprias cicatrizes. Décadas de austeridade imposta pelo FMI esvaziaram os serviços públicos, deixando dívidas que nunca poderão ser pagas. Organismos de direitos humanos alertam que esses programas de ajuste violam direitos básicos, mas os credores continuam a apertar o cerco. A situação do Sul Global não é abstrata; é a experiência vivida de sistemas de saúde frágeis e mortes evitáveis, uma crise permanente fabricada em Washington e Bruxelas.

As sanções são o outro instrumento de disciplina. Peritos da ONU condenaram repetidamente as sanções unilaterais como punição coletiva. O Irão pagou o preço com medicamentos bloqueados, Cuba com remessas estranguladas, a Rússia com ativos congelados. Todos os Estados sancionados que aderem ao BRICS+ trazem consigo a memória e o know-how de como navegar nesta guerra económica — através da troca, moedas locais ou sistemas de pagamento paralelos.

A geografia agrava a pressão. O canal do Egito, o corredor ferroviário da Etiópia, os estreitos da Indonésia, a infraestrutura petrolífera da Nigéria — oleodutos, terminais e o Golfo da Guiné — são linhas de vida há muito policiadas pelo capital ocidental. Agora, esses mesmos corredores estão a ser reposicionados em condições multipolares, mesmo com a expansão das bases do AFRICOM e as "parcerias" da OTAN a espalharem-se pelo Sul Global. O campo de batalha não está apenas nos parlamentos ou palácios, mas também nos portos, oleodutos e cabos de fibra ótica.

Também não devemos ignorar a dimensão interna:   todos os Estados do BRICS+ enfrentam crises de legitimidade em casa. A crescente desigualdade no Brasil, as revoltas dos agricultores na Índia, a escassez de energia na África do Sul, o peso esmagador da dívida no Egito e na Nigéria. Estas não são contradições que desaparecem por trás das bandeiras multipolares; elas estão incorporadas no bloco. Como nos lembra a Tricontinental, as classes dominantes manobram para sobreviver, mas as manobras podem criar aberturas para rupturas quando as forças populares intervêm.

Estas contradições não são um erro, mas a própria bússola do presente. Como argumentei em outro lugar, os Estados multipolares devem contar com as massas para sobreviver, mas muitos são liderados por classes que temem essas mesmas massas. Eles são obrigados a distribuir o suficiente para manter a lealdade, mas não o suficiente para empoderar a transformação. Essa tensão é instável e, sob o cerco imperial, pode se romper em uma soberania mais profunda — ou colapsar de volta à dependência.

É por isso que o BRICS+ não pode ser interpretado como uma ideologia, mas apenas como um terreno. Não é o renascimento de Bandung, mas ecoa o desafio de Bandung:   recusar o monopólio da gestão imperial. As suas contradições são a sua essência. O bloco é costurado pela necessidade, não pela unidade. E a necessidade, como Marx nos lembrou, é a parteira da história.

A contra-insurgência do império contra a multipolaridade

O império não recua educadamente; ele sabota. À medida que o BRICS+ amplia a sua presença, Washington e os seus aliados redobram a sua ação disruptiva. O AFRICOM ampliou o seu alcance em todo o continente, tecendo uma rede de bases do Sahel ao Corno de África, garantindo que todos os portos ou oleodutos possam ser vigiados ou atacados. Na Ásia, a chamada Estratégia Indo-Pacífica tem menos a ver com a "liberdade de navegação" do que com a militarização da periferia da China e a restrição de novos parceiros como a Indonésia e o Vietname. Na América Latina, os regimes de sanções e as operações secretas continuam a ser os instrumentos preferidos da "diplomacia".

A guerra financeira acompanha a guerra militar. O Federal Reserve dos EUA usa as taxas de juro como arma, provocando crises de dívida em todo o Sul e forçando pacotes de austeridade que desmantelam a soberania. Quando a Etiópia anunciou em 2023 que entraria em incumprimento do seu eurobônus, não se tratou de um fracasso interno, mas do resultado previsível do aperto monetário global. Todos os Estados do BRICS+ enfrentam esta pressão de alguma forma: fuga de capitais, volatilidade cambial, agências de notação de risco usadas como arma. A guerra da informação não é menos agressiva. Os mesmos meios de comunicação que venderam a invasão do Iraque agora inundam as agências noticiosas com histórias sobre a "China autoritária", a "Rússia expansionista" e os "BRICS instáveis". O Centro de Envolvimento Global do Departamento de Estado dos EUA descreve abertamente a sua missão como "combater a desinformação", o que na prática significa desacreditar qualquer narrativa do Sul Global que desafie o guião do império. O objetivo é deslegitimar as experiências multipolares antes que elas se consolidem. E depois há a sabotagem por cooptação. O sistema do dólar não está a ser defendido apenas com bombas e sanções; está a ser defendido atraindo "estados indecisos" de volta à órbita de Washington com promessas de investimento, acordos comerciais ou pactos de segurança. A Índia é cortejada como contrapeso à China. Às elites do Brasil é oferecida a aprovação do FMI em troca de disciplina fiscal. A África do Sul é persuadida com convites para o G7. O império sabe que, se conseguir fragmentar o bloco por dentro, poderá neutralizá-lo sem disparar um tiro. Confundir o BRICS+ com uma força imparável é subestimar tanto a sua fragilidade quanto a crueldade do seu adversário. Cada avanço — seja um swap de moeda local, um novo corredor logístico ou uma declaração de cimeira — será recebido com contra-ataques:   golpes em África, guerras por procuração na Ásia Ocidental, armadilhas da dívida na América Latina, bombardeios de informação em todo o lado. É assim que a hegemonia se comporta quando encurralada. A questão não é se o império vai contra-atacar; é se os movimentos no Sul podem transformar as manobras das elites em rupturas populares, para que a sabotagem se transforme em bumerangue.

Da desdolarização às infraestruturas alternativas

A arma mais insidiosa do império não é o porta-aviões, mas a câmara de compensação. O dólar americano continua a ser o lubrificante do comércio mundial, e a capacidade de Washington de congelar reservas ou bloquear transações através do SWIFT equivale a um veto global. Não é por acaso que quase todos os comunicados do BRICS+ mencionam as finanças. O boletim de dezembro de 2024 do South Centre documenta a crescente tendência para liquidar o comércio em moedas locais, uma forma pragmática de desdolarização já praticada entre a Índia e a Rússia, o Brasil e a China, o Irão e qualquer país disposto a negociar através de troca ou yuan. Cada acordo enfraquece o monopólio.

Estão a ser criadas instituições para levar a cabo esta mudança. O Novo Banco de Desenvolvimento, com sede em Xangai, concede empréstimos em moedas locais para reduzir a dependência dos programas de austeridade do FMI. O Sistema Pan-Africano de Pagamentos e Liquidação (PAPSS) permite o comércio transfronteiriço em moedas africanas, contornando o hábito do dólar que drena 5 mil milhões de dólares anualmente em custos de conversão. A ambição é clara: criar infraestruturas que permitam ao Sul negociar, investir e construir sem pedir permissão a Washington ou Bruxelas. A tecnologia é uma frente crucial. A ferrovia Addis-Djibouti, o comboio de alta velocidade Jacarta-Bandung e os gasodutos Rússia-China Power of Siberia não são apenas infraestruturas — são artérias da vida multipolar. Eles unem regiões de maneiras que contornam pontos de estrangulamento imperiais.

Os pagamentos digitais também são importantes:   o sistema de compensação CIPS da China, o SPFS da Rússia e o UPI da Índia são alternativas embrionárias ao SWIFT. Mesmo sistemas “chatos” como o PAPSS representam mudanças revolucionárias quando vistos contra séculos de hegemonia do dólar. Mas a desdolarização não é uma varinha mágica. A Tricontinental adverte que “derisking” (redução do risco) é muitas vezes apenas um código neoliberal para hedge, não emancipação. Se as elites usarem swaps em moeda local para proteger os lucros enquanto cortam gastos sociais em casa, nada muda. O risco é trocar a moeda de um senhor por outra, deixando intactas as relações de dívida. A multipolaridade só se torna emancipatória quando a soberania financeira é acompanhada pela soberania popular. Ainda assim, as rachaduras na muralha do dólar estão a ampliar-se. Quando a Argentina pagou as importações chinesas em yuan em 2023, quando a Arábia Saudita sinalizou disposição para vender petróleo fora do dólar em 2024, quando as cúpulas do BRICS+ repetidamente lançaram a ideia de uma unidade monetária comum, o tabu foi quebrado. Nenhuma ação isolada destronará o dólar, mas cada novo gasoduto/oleoduto, sistema de pagamento e linha de swap torna mais difícil para Washington acionar o botão de desligar. A multipolaridade não vive em comunicados, mas nessas infraestruturas alternativas, construídas silenciosamente, disputadas ferozmente e apontando para um mundo onde o veto do império não governa mais por padrão.

A Rota da Seda Digital e a batalha pela soberania tecnológica

A multipolaridade não é travada apenas no terreno dos gasodutos/oleodutos ou dos swaps de dívidas. Cada vez mais, ela é travada nas correntes invisíveis da fibra ótica, dos satélites e dos códigos. A Rota da Seda Digital (DSR) do BRICS representa um dos projetos mais ousados do bloco:   uma tentativa deliberada de construir um ecossistema digital seguro e autossuficiente, livre do domínio ocidental. Onde os Estados Unidos outrora monopolizavam não só as finanças, mas também a espinha dorsal da Internet, o BRICS agora instala os seus próprios cabos, lança os seus próprios satélites e codifica a sua própria nuvem.

O cabo de fibra ótica exclusivo dos BRICS proposto ligaria diretamente os Estados-membros, reduzindo a dependência das redes controladas pelo Ocidente e protegendo contra a vigilância. Entretanto, a implantação do 5G liderada pela Huawei na China e parceiros no Brasil e na Rússia sobreviveu a sanções e proibições, estendendo-se até ao coração das cidades do Sul Global. Em contrapartida, a Índia excluiu os fornecedores chineses dos testes 5G e implementou o 5G com fornecedores não chineses. Os sistemas de navegação GLONASS da Rússia e BeiDou da China, outrora considerados redundantes em relação ao GPS dos EUA, agora formam os pilares de uma rede multipolar de satélites. A cibersegurança está a ser coletivizada. A formação de um Grupo de Trabalho sobre Cibersegurança do BRICS sinaliza que as informações sobre ameaças serão partilhadas em tempo real, com defesas baseadas em IA implantadas além das fronteiras. Ao mesmo tempo, a soberania financeira está a ser repensada:   a China impulsiona o yuan digital, enquanto a Rússia e o Brasil exploram moedas digitais do banco central. Um sistema de pagamento BRICS baseado em blockchain, outrora descartado como fantasia, agora parece uma ultrapassagem plausível do SWIFT. Mas talvez a tendência mais radical esteja na investigação e desenvolvimento. Joint ventures em semicondutores e computação quântica visam corroer um dos últimos monopólios do Ocidente:   o controlo do chip. As colaborações de IA de código aberto, abrangendo setores que vão da tecnologia da saúde às cidades inteligentes, prometem não apenas ferramentas mais baratas, mas também valores diferentes incorporados ao código. Analistas da Iniciativa Cinturão e Rota da China enfatizam que a Rota da Seda Digital não é apenas cabos e servidores, mas uma tentativa de moldar padrões tecnológicos, modelos regulatórios e até mesmo as narrativas que fluem através deles. Nesse sentido, a DSR tornou-se uma infraestrutura estratégica para a autonomia digital e narrativa em grande parte do Sul Global.

Para o império, este é um cenário de pesadelo:   um mundo onde o Sul não só negocia fora do dólar, mas também comunica, armazena dados e protege redes sem passar pelo Vale do Silício ou pelo interruptor do Pentágono. Para os movimentos, é uma abertura. A tarefa é garantir que estas ferramentas digitais sirvam a libertação, e não simplesmente novas elites. Pois, no século XXI, soberania sem soberania digital não é soberania alguma.

Armar a informação, alargar a brecha

Se a multipolaridade é um campo de batalha, então a informação é uma das suas armas mais afiadas. Os think tanks do império, do Atlantic Council à Chatham House, publicam diariamente panfletos sobre os "perigos" do BRICS+. O seu objetivo é enquadrar o bloco como ilegítimo antes mesmo que ele se coesione. Mas o Sul Global tem o seu próprio arsenal. O Instituto Tricontinental de Investigação Social, o Relatório de Economia Geopolítica, o Peoples Dispatch e dezenas de outras plataformas estão a produzir contra-narrativas rigorosas e acessíveis. Isto não é propaganda; é sobrevivência. Ver claramente é lutar eficazmente.

Os movimentos sabem há muito que "quem controla a história controla a luta". Durante a Guerra Fria, Washington usou a "economia do desenvolvimento" para justificar a recolonização através da dívida. Hoje, usam palavras da moda como "escoramento amistoso" ("friendshoring") e "de-risking" para mascarar a guerra das cadeias de abastecimento. A recusa do Vietname em ser um peão nesta guerra narrativa — juntando-se ao BRICS+ enquanto Washington procurava colocá-lo contra a China — mostra o poder da soberania narrativa. Hanói insistiu na sua própria voz, enraizada na sua doutrina dos "Quatro Nãos" de não alinhamento, e esse ato repercutiu-se globalmente. E agora, isso já não é mais obra de meios de comunicação isolados. Em julho de 2025, mais de 220 comunicadores de 50 países lançaram a Aliança de Jornalistas para a Comunicação do Sul Global em Caracas, declarando uma frente permanente para combater o domínio da mídia ocidental e defender a verdade como um direito do povo. A declaração final foi inequívoca:   “Os povos têm direito à verdade. De vivê-la, de contá-la e de conhecê-la.” Do ministro das Relações Exteriores da Venezuela aos delegados da África do Sul e da China, as vozes convergiram para a necessidade de “soberania informacional” e “ferramentas digitais soberanas” para quebrar o controlo algorítmico. Por outras palavras:   uma nova ordem internacional da informação, elaborada pelos próprios oprimidos. A informação como arma deve vir tanto de baixo quanto de cima. Não basta que ministros e presidentes emitam declarações; a classe trabalhadora, os camponeses e os jovens devem ser capazes de ler, argumentar e imaginar alternativas. Isso significa que os centros de pesquisa devem traduzir o jargão do FMI para uma linguagem simples, os sindicatos devem compreender como os sistemas de pagamento afetam os salários e os agricultores devem saber como as sanções distorcem os preços dos alimentos. Cada facto esclarecido é uma bala de clareza contra a névoa do império.

É por isso que a multipolaridade é tanto uma oportunidade quanto uma responsabilidade. A oportunidade:   as rachaduras no monopólio narrativo do império permitem que os media alternativos e a pesquisa cheguem a públicos sedentos pela verdade. A responsabilidade: evitar romantizar o BRICS+ como salvador e, em vez disso, insistir que suas contradições sejam expostas e contestadas. O bloco não é uma garantia de emancipação — é um local de luta. Tal como nas experiências de desdolarização, o trabalho narrativo pode transformar as manobras das elites em alavancagem de massas. No final, a informação não é um acessório do poder; é o poder. Quando o império perde o controlo da história, perde a sua aura de inevitabilidade. E quando as pessoas acreditam que o mundo pode ser diferente, começam a torná-lo assim. Essa é a essência da informação como arma:   não mentiras para espelhar as mentiras do império, mas clareza afiada como uma arma, empunhada por aqueles que se recusam a se curvar à inevitabilidade. Nesse sentido, cada ensaio, cada dossiê, cada aliança de jornalistas como os que se reuniram em Caracas faz parte da mesma insurgência — a longa guerra de ideias que torna possíveis as curtas guerras de libertação.

Conclusão: rachaduras na muralha, estradas ainda por construir

O BRICS+ não é nem o horizonte socialista nem um novo Movimento dos Países Não Alinhados. É um bloco de Estados que manobra entre os destroços da unipolaridade dos EUA, unido menos por princípios do que pela necessidade. No entanto, a necessidade importa. Com vinte membros e parceiros que representam agora mais de metade da humanidade e quase metade do PIB mundial, o BRICS+ demonstra que o veto do império já não é absoluto. Essa rachadura na parede — por mais confusa que seja — é, por si só, histórica. O perigo é óbvio:   a multipolaridade sem movimentos consolidar-se-á num cartel de compradores, trocando dólares por yuanes enquanto mantém os trabalhadores e os camponeses acorrentados. Como nos lembra a Tricontinental, a soberania sem poder popular é uma casca vazia. Mas a oportunidade é igualmente clara:   cada novo sistema de pagamento, cabo de fibra ótica e aliança mediática amplia o espaço onde as lutas populares podem respirar.

Desde a Digital Silk Road até a aliança de media Voices of the New World, estão a ser construídas infraestruturas de sobrevivência que, se aproveitadas pelos movimentos, podem ser transformadas em infraestruturas de emancipação. O império não deixará isso passar sem contestar. Eles respondem com golpes, sanções, propaganda e cerco. Mas as rachaduras se espalham; as muralhas desmoronam. O que importa agora é se os trabalhadores, os camponeses, os jovens e os movimentos populares forçarão o BRICS+ a ir além da proteção das elites em direção à libertação genuína. Isso requer transformar a informação em arma, reivindicar a soberania digital e exigir que soberania signifique não apenas a bandeira do Estado, mas a dignidade do povo. O BRICS+ não nos salvará. Mas prova que é possível resistir ao império, que a inevitabilidade é uma mentira. Nas fraturas da multipolaridade, cresce a possibilidade de ruptura. Nossa tarefa é ampliar essas fraturas — através da luta, da solidariedade e da clareza — até que o que começa como uma manobra dos Estados se torne a emancipação dos povos. O muralha está rompida; o caminho à frente está inacabado. Cabe a nós construí-lo.

18/Agosto/2025

[*] Ativista, estado-unidense

O original encontra-se em mronline.org/2025/08/18/when-the-empire-chokes-the-south-breathes


26/Ago/25


segunda-feira, 25 de agosto de 2025

EUA desafiam BRICS e tentam dominar o Atlântico Sul

 

 Do Brasil 247

Reynaldo José Aragon Gonçalves avatar

Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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Sob o pretexto de combater cartéis, Washington militariza o Caribe, pressiona rotas comerciais e mira riquezas estratégicas brasileiras em plena disputa global

Donald Trump - 13/08/2025Donald Trump - 13/08/2025 (Foto: REUTERS/Kevin Lamarque)

A mobilização de tropas e frotas dos Estados Unidos na América Latina em agosto de 2025 marca mais do que uma operação “antidrogas”: trata-se de um movimento calculado para transformar o Atlântico Sul em zona de disputa, pressionar as exportações brasileiras de petróleo, soja, minério, terras raras e nióbio, e conter a expansão do BRICS e da ferrovia bioceânica ligada ao porto chinês de Chancay. Este artigo analisa os riscos, cenários futuros e os mecanismos de guerra híbrida que podem subjugar a soberania regional sem um único tiro disparado.

O dia em que o Atlântico Sul entrou em disputa

No dia 17 de agosto de 2025, os Estados Unidos deslocaram mais de quatro mil militares, submarinos, destróieres e aeronaves de vigilância para o sul do Caribe sob o pretexto de combater cartéis de drogas. A manchete pode soar repetitiva, parte da velha narrativa da “guerra às drogas” que atravessa décadas. Mas a realidade é outra: trata-se de uma manobra geopolítica de longo alcance para transformar o Atlântico Sul em zona de disputa permanente, condicionar o comércio internacional e manter a América Latina sob a órbita de Washington em um momento em que os EUA perdem influência no Oriente Médio, na Ásia e até mesmo no sistema financeiro global.

Esse não é um movimento isolado. Ele se inscreve em um ciclo histórico que o materialismo histórico-dialético ajuda a iluminar: na infraestrutura, o que está em jogo são rotas de comércio vitais, petróleo do pré-sal, soja, minério e minerais críticos como terras raras e nióbio; na superestrutura, o discurso securitário do “narco-terrorismo” que justifica a militarização; na práxis, operações navais, tarifas comerciais e sanções financeiras que produzem estrangulamento econômico sem um único tiro disparado.

A América Latina volta a ser tratada como quintal estratégico de uma potência em declínio relativo. O Brasil, maior economia e centro logístico da região, não está apenas exposto — é o alvo principal. Cada navio revistado, cada prêmio de seguro marítimo que sobe, cada narrativa fabricada de risco serve ao mesmo objetivo: impedir que o Brasil e seus parceiros do BRICS consolidem uma alternativa de soberania logística, mineral e tecnológica.

Este artigo parte dessa constatação para oferecer uma análise rigorosa do cenário atual e dos cenários futuros, sustentada por dados, documentos e tendências estruturais. Não se trata de especulação nem de retórica inflamada: é jornalismo estratégico em seu estado da arte, que conecta fatos imediatos à engrenagem histórica e revela os riscos reais de uma nova fase da guerra híbrida — uma guerra naval invisível no Atlântico Sul.

Projeto 2025 e o narco-terrorismo como pretexto

O pano de fundo da atual mobilização não está apenas nos gabinetes do Pentágono, mas em um documento político-ideológico: o Projeto 2025, desenhado pela Heritage Foundation e abraçado pelo trumpismo como manual de poder. No plano interno, o projeto prevê a centralização do Executivo, a politização do aparato de segurança e o uso irrestrito das forças armadas como instrumento de controle social. No plano externo, projeta a doutrina do inimigo difuso: cartéis de drogas, migrantes, movimentos sociais, qualquer ator que possa ser enquadrado como ameaça à “segurança nacional”.

A designação formal de cartéis latino-americanos como Organizações Terroristas Estrangeiras (FTOs) e Entidades Globalmente Designadas como Terroristas (SDGTs), feita em janeiro de 2025, não foi apenas retórica. Ela abriu a base jurídica para que os Estados Unidos atuem extraterritorialmente, aplicando sanções secundárias, interdições marítimas e operações de “law enforcement” em águas internacionais. Ou seja: sob a bandeira da luta contra o “narco-terrorismo”, Washington pode parar navios, confiscar cargas, travar contratos de exportação e punir empresas estrangeiras sem precisar de uma declaração de guerra.

Esse enquadramento jurídico é, em si, uma operação de guerra híbrida. Ele desloca o combate ao crime do campo policial para o campo da guerra, transformando traficantes em “combatentes inimigos” e mares inteiros em “zonas cinzentas”. Não é coincidência: ao criar esse arcabouço legal, os EUA pavimentam o caminho para militarizar os corredores marítimos que conectam a América do Sul ao mundo. O inimigo declarado são os cartéis; o alvo real, porém, são os fluxos estratégicos de comércio.

A tradição histórica não deixa dúvidas. A “guerra às drogas” sempre foi instrumento de controle sobre países periféricos: serviu de justificativa para intervenções no México, na Colômbia, na América Central. Agora, elevada ao estatuto de contraterrorismo, a narrativa cumpre uma função ainda mais ampla: legitimar a presença militar no Atlântico Sul e abrir espaço para que os EUA se posicionem como árbitros das rotas marítimas latino-americanas.

O Brasil aparece nesse tabuleiro como caso paradigmático. É a maior fonte de petróleo novo fora da OPEP, domina o nióbio e está iniciando a produção de terras raras. É também o país que lidera a resistência diplomática ao unipolarismo via BRICS. Ao enquadrar a região como “zona de narco-terrorismo”, os EUA não estão apenas perseguindo cartéis: estão forjando o direito de intervir onde quiserem e preparando o terreno para estrangular as exportações brasileiras sempre que necessário.

Infraestrutura em disputa – o Atlântico Sul como artéria vital

O que está em jogo não é apenas um combate fictício contra cartéis. É o controle da circulação: a capacidade de decidir quais fluxos de mercadorias passam, quais atrasam e quais param. O Atlântico Sul é hoje uma das maiores artérias do comércio global e, para o Brasil, a principal via de sobrevivência econômica.

Do litoral brasileiro saem três fluxos centrais para a economia mundial:

  • Petróleo do pré-sal, exportado em volumes recordes para a China, a Europa e, em menor escala, os Estados Unidos.
  • Soja, milho e outros grãos, base da segurança alimentar global, com saída pelos portos do Sudeste e do Arco Norte.
  • Minério de ferro, que mantém a indústria mundial de aço, sobretudo a chinesa.

Além disso, o Atlântico carrega cabos submarinos que conectam a América do Sul às redes digitais globais, tornando-se também artéria de informação. O que passa por aqui não são apenas navios cargueiros: são os dados, as finanças e a soberania informacional.

Os pontos de vulnerabilidade são claros e já foram mapeados pelos estrategistas norte-americanos:

O Canal do Panamá, hoje sob crescente influência chinesa, é nó crítico de conexão entre Atlântico e Pacífico. Um simples atraso de inspeção pode gerar efeito dominó em toda a cadeia global.

  • Os estreitos caribenhos — Yucatán, Mona, Windward, Anegada — funcionam como gargalos naturais. Basta uma frota posicionada e a narrativa do “narco-terror” para justificar inspeções seletivas e atrasos que elevam o custo de qualquer embarque.
  • O arco das Guianas, novo polo de petróleo offshore, é corredor sensível tanto para Venezuela e Guiana quanto para o Brasil, via cabotagem e tráfego do Arco Norte.
  • A foz do Amazonas e os portos do Arco Norte — como Barcarena e Itaqui — são vulneráveis a qualquer regime de “patrulha internacional” que se estenda para além das águas jurisdicionais.
  • As saídas do Sudeste (Santos, Rio, Vitória, Açu) concentram petróleo, aço e contêineres, expostos não tanto à força militar direta, mas a mecanismos financeiros e de seguro: basta elevar prêmios ou incluir terminais em listas de risco para estrangular o fluxo.

O cerco, portanto, não precisa de bloqueio formal. Ele se realiza por meio de interdição administrativa: inspeções demoradas, listas negras de embarcações, exigências adicionais de compliance. Cada hora de atraso em um cargueiro, cada dólar a mais no prêmio de seguro, cada auditoria de compliance bancário é uma forma de guerra. Invisível para o grande público, devastadora para um país exportador como o Brasil.

Na lógica do materialismo histórico-dialético, essa infraestrutura marítima é a base concreta da disputa. Sem o fluxo constante de petróleo, grãos e minérios, a economia brasileira sufoca. É aí que se encaixa a superestrutura da narrativa “antidrogas”: o discurso que cobre o ato real de negação de mar. O Atlântico Sul, como outrora o Golfo Pérsico, passa a ser não apenas uma rota de comércio, mas um campo de batalha estratégico em que se decide quem pode se desenvolver e quem deve permanecer dependente.

Superestrutura da disputa – narrativas e bandeiras falsas

Se a infraestrutura são os navios, portos e cabos, a superestrutura é o campo da narrativa: a guerra das palavras e das percepções. Nenhuma operação militar de vulto se sustenta sem um enredo que a legitime. O enredo escolhido por Washington é antigo, mas foi atualizado: o do narco-terrorismo.

A ideia de que cartéis de drogas representam não apenas um problema policial, mas uma ameaça terrorista existencial, funciona como coringa estratégico. Sob esse rótulo, qualquer ação passa a ser admissível. Interceptar navios, atrasar cargas, sancionar empresas estrangeiras, ampliar a presença militar em zonas de livre navegação — tudo pode ser justificado porque, afinal, “estamos combatendo o terrorismo”.

Mas narrativas só funcionam quando são acompanhadas de fatos midiaticamente encenados. É aí que entram as chamadas bandeiras falsas. A história recente mostra que, quando os EUA precisam de pretextos, eles os fabricam. No caso do Atlântico Sul e do Caribe, os cenários mais prováveis são:

O “achado controlado”: um contêiner de drogas “descoberto” em um navio de grãos ou minério saindo de portos brasileiros, ou venezuelanos, amplamente divulgado na imprensa ocidental, criando a imagem de que os fluxos de exportação estão contaminados.

O incidente offshore: uma explosão, sabotagem ou ataque atribuído a cartéis, ou grupos “aliados” em plataformas de petróleo da Guiana ou em embarcações de apoio, legitimando a criação de uma “zona de segurança” que restringe a navegação.

O risco inventado no Canal do Panamá ou no porto de Chancay: denúncias de infiltração do narcotráfico ou de espionagem chinesa, usadas para endurecer regras de trânsito e criar atrasos sistemáticos em corredores logísticos alternativos ao Atlântico controlado pelos EUA.

Esses episódios não precisam sequer ser provados. Basta a força narrativa amplificada por redes de mídia e think tanks alinhados para se tornar “verdade”. A superestrutura não é reflexo neutro da base material: ela é instrumento ativo de dominação, capaz de fabricar o clima político que justifica a interdição da infraestrutura.

Para o Brasil, o risco é evidente: qualquer bandeira falsa que associe seus portos ou exportações a “narco-terrorismo” abrirá caminho para que cargas brasileiras sejam inspecionadas, atrasadas ou sancionadas. O país que hoje disputa protagonismo no BRICS pode ser reduzido a um suspeito crônico sob vigilância permanente.

Essa é a essência da guerra híbrida: transformar narrativas em armas, transformar percepções em fatos, transformar pretextos em políticas. A batalha não está apenas no mar, mas também no imaginário internacional. Quem controla a narrativa, controla o direito de agir.

Minerais críticos: terras raras, nióbio e a cobiça sobre o Brasil

No século XX, o petróleo foi a chave do poder geopolítico. No século XXI, os minerais críticos — terras raras, nióbio, lítio, níquel, grafite — são o novo petróleo. Eles alimentam a transição energética, a indústria de defesa e a revolução tecnológica. E o Brasil, por ironia histórica, tornou-se um dos territórios mais cobiçados nesse tabuleiro.

Em 2024, a mina de Serra Verde, em Goiás, iniciou a primeira produção comercial de terras raras do Hemisfério Ocidental. Poucos meses depois, fundos globais e até o braço financeiro do governo dos Estados Unidos, a DFC, passaram a financiar projetos de extração no Brasil. Não se trata de altruísmo: é a tentativa de arrancar o Brasil da órbita chinesa e colocá-lo sob contratos de offtake que assegurem suprimentos ao Ocidente.

O mesmo ocorre com o nióbio. O Brasil, com a CBMM em Araxá, detém mais de 80% das reservas conhecidas do mundo. O metal, antes restrito a ligas de aço, hoje é testado em baterias de carregamento ultrarrápido, com parcerias de gigantes como Toshiba e Volkswagen. Cada avanço tecnológico nessa direção multiplica o valor estratégico do nióbio e torna o Brasil ainda mais central para a disputa pela indústria do futuro.

Somam-se a isso as reservas de lítio no Vale do Jequitinhonha, de grafite natural na Bahia, de níquel no Pará. O mapa é claro: o Brasil concentra no seu subsolo a base de matérias-primas para semicondutores, turbinas eólicas, veículos elétricos e sistemas de armas de alta tecnologia.

É aqui que a militarização do Atlântico Sul ganha sentido. Não basta investir em minas: é preciso controlar as rotas de escoamento. O objetivo real não é apenas garantir acesso aos minerais, mas também condicionar os termos em que eles chegam ao mercado global. Ao pressionar logisticamente o Brasil com inspeções e ameaças de interdição, os EUA aumentam seu poder de barganha para amarrar contratos favoráveis e evitar que o país negocie livremente com China, Índia ou parceiros do BRICS.

Em termos de materialismo histórico-dialético, o que vemos é a luta direta entre forças produtivas emergentes e relações de produção obsoletas. O Brasil, ao explorar suas riquezas minerais em associação com China e BRICS, ameaça deslocar o eixo do poder tecnológico global. Os EUA, em crise de hegemonia, recorrem ao expediente imperial clássico: estrangular o fluxo da periferia para manter o centro em funcionamento.

Assim, cada tonelada de óxido de terras raras exportada de Goiás, cada quilo de nióbio embarcado em Araxá, cada contêiner de lítio que sai pelo Porto de Santos ou pelo Arco Norte carrega mais do que valor econômico. Carrega uma disputa de soberania: se esses minerais serão instrumentos de emancipação nacional ou se permanecerão como engrenagens de uma nova dependência.

O contra-ataque multipolar – BRICS, Chancay e a ferrovia bioceânica

Enquanto Washington aposta em tarifas, interdições e narrativas de “narco-terror”, o Sul Global responde com integração. A ampliação do BRICS, em 2024, consolidou o bloco como eixo de financiamento e cooperação fora do dólar. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), liderado por Dilma Rousseff, já atua como contrapeso ao FMI e ao Banco Mundial, financiando projetos de infraestrutura que desafiam a dependência ocidental.

Nesse tabuleiro, dois movimentos recentes mudam o jogo: o Porto de Chancay e a ferrovia bioceânica.

O Porto de Chancay, inaugurado em novembro de 2024 no Peru, foi concebido como um hub chinês na América do Sul. Capaz de receber navios de grande calado e operar em escala global, o porto já em 2025 abriu rotas diretas entre a costa pacífica da América do Sul e os terminais chineses. Para o Brasil, isso significa a possibilidade concreta de escoar soja, minério e até terras raras sem depender do Atlântico controlado pelo Comando Sul.

Mas o porto só se torna uma alternativa real com a ferrovia. Em 2025, Brasil e China assinaram memorandos para avançar em estudos da ferrovia bioceânica Brasil–Peru, ligando o Centro-Oeste brasileiro ao Pacífico. Se concretizada, essa linha cortaria o continente, permitindo que commodities e minerais críticos brasileiros cheguem a Chancay sem atravessar o Caribe ou o Canal do Panamá. É a rota terrestre que rompe o cerco marítimo.

É claro que os EUA veem isso como ameaça direta. O Atlântico Sul, sob seu olhar, precisa continuar sendo a “porta de saída natural” da América Latina. Se o Brasil conseguir um corredor bioceânico, fortalece sua soberania logística e estreita laços com a China, enfraquecendo o poder de barganha norte-americano.

Por isso, as pressões narrativas sobre segurança do Canal do Panamá e as possíveis “bandeiras falsas” em Chancay ganham importância. Washington não precisa destruir a ferrovia nem o porto — basta criar ruídos, atrasos regulatórios, campanhas de desinformação e narrativas de “risco” para encarecer a rota alternativa.

No campo do materialismo histórico-dialético, esse embate revela a luta entre formas de integração regional soberana e mecanismos de dependência imperial. O BRICS, Chancay e a ferrovia bioceânica são tentativas de criar uma nova base material de circulação para o Sul Global. O imperialismo reage como sempre reagiu: tensionando rotas, criando zonas cinzentas e tentando transformar o Atlântico Sul em corredor exclusivo de dominação.

Cenários preditivos – curto, médio e longo prazo

A força do jornalismo estratégico está em não apenas descrever o presente, mas antecipar o futuro com base em tendências materiais, correlações de força e movimentos já em curso. O quadro atual — militarização do Caribe, pressões logísticas e narrativas securitárias — abre três trajetórias possíveis para os próximos meses e anos.

Cenário 1 – Dissuasão ativa (curto prazo, 0–6 meses)

Os EUA mantêm patrulhas constantes no sul do Caribe, deslocando destróieres e submarinos de forma ostensiva. As inspeções de navios mercantes ainda são seletivas, focadas em rotas sensíveis, mas suficientes para elevar os prêmios de seguro e gerar atrasos pontuais. O Brasil sente os primeiros impactos no Arco Norte, com navios de grãos revistados e transbordos mais caros.

Risco: elevação gradual do custo logístico, sem ruptura visível.

Objetivo norte-americano: mostrar capacidade de controle e enviar o recado: “quem dita as regras no Atlântico ainda somos nós”.

Cenário 2 – Quarentena informal (médio prazo, 6–18 meses)

As operações de “combate ao narco-terror” se ampliam. Mais navios brasileiros e venezuelanos entram em “listas de interesse”, aumentando inspeções e atrasos sistemáticos nos gargalos caribenhos (Yucatán, Mona, Windward, Anegada). Os prêmios de guerra disparam, navios desviam para rotas pelo Cabo da Boa Esperança, encarecendo exportações brasileiras de petróleo e minério.

Paralelamente, surgem episódios midiáticos de bandeiras falsas, usados para reforçar a narrativa de que a região é “contaminada pelo narcotráfico”. A pressão econômica se soma às tarifas já aplicadas, transformando o comércio brasileiro em refém de custos adicionais.

Risco: erosão da competitividade brasileira nos mercados globais.

Objetivo norte-americano: condicionar os termos de exportação de petróleo e minerais críticos, forçando acordos de fornecimento mais favoráveis ao Ocidente.

Cenário 3 – Militarização estrutural (longo prazo, 2–3 anos)

A presença naval norte-americana no Atlântico Sul se normaliza. Operações conjuntas com países do Caribe e da América Central criam um regime permanente de vigilância. O arco Guianas se consolida como zona cinzenta, sob a justificativa de proteger plataformas offshore e conter o crime organizado.

O Brasil é pressionado não apenas no mar, mas também em contratos de minerais críticos: terras raras, nióbio e lítio passam a ser alvo de acordos forçados, com financiamentos condicionados a alinhamentos políticos. O Canal do Panamá e o porto de Chancay tornam-se palcos de disputa simbólica e regulatória.

Risco: perda de autonomia estratégica do Brasil em sua circulação marítima e em sua política de exportações.

Objetivo norte-americano: manter a América Latina como corredor subordinado e travar a consolidação de alternativas logísticas ligadas ao BRICS e à China.

O fio condutor dos cenários

Do curto ao longo prazo, o padrão é o mesmo: dominar sem disparar tiros. O método não é a invasão clássica, mas o estrangulamento invisível: inspeções, listas negras, prêmios de seguro, lawfare marítimo, narrativas fabricadas. Cada passo aumenta o custo da soberania brasileira e reduz a margem de decisão do país no cenário multipolar.

Soberania ou submissão

O que está em jogo não é apenas a movimentação de navios de guerra no Caribe, nem a retórica sobre cartéis de drogas. O que se disputa é o futuro do Brasil e da América do Sul. O Atlântico Sul, antes visto como mar de paz e cooperação, está sendo lentamente transformado em um corredor de dominação indireta, onde inspeções e narrativas substituem tiros e bombas, mas produzem efeitos igualmente devastadores.

A metodologia é clara: criar um clima de insegurança permanente, justificar a presença militar com o discurso do “narco-terrorismo” e, a partir daí, impor um regime de interdição invisível. Não se trata de bloquear formalmente as exportações brasileiras, mas de torná-las mais caras, mais lentas e mais dependentes de contratos ditados por Washington. O petróleo do pré-sal, os grãos do Cerrado, o minério de ferro de Carajás, as terras raras de Goiás e o nióbio de Araxá — tudo pode ser condicionado por tarifas, inspeções e bandeiras falsas.

A alternativa existe e já está em construção: BRICS, porto de Chancay, ferrovia bioceânica, Novo Banco de Desenvolvimento, integração logística Sul-Sul. Mas nenhuma dessas rotas se consolidará sem que o Brasil assuma com clareza que sua soberania logística, mineral e informacional é questão de sobrevivência. Isso implica ativar a ZOPACAS para barrar a militarização extra-regional, criar mecanismos soberanos de seguro marítimo, reforçar a vigilância do Atlântico com meios próprios, diversificar destinos de exportação e blindar os contratos de minerais críticos contra pressões externas.

O dilema é simples e brutal: ou o Brasil se prepara para proteger suas veias abertas no Atlântico Sul, ou aceitará ser sufocado lentamente, sem um único tiro disparado. Essa é a nova face da guerra híbrida, em que o mar se converte em trincheira silenciosa e a economia em campo de batalha.

No materialismo histórico-dialético, cada crise revela a luta entre forças produtivas emergentes e relações de produção decadentes. O Brasil carrega em suas rotas, minas e portos a possibilidade de um futuro soberano. Mas o império em declínio quer que continuemos a ser apenas um fornecedor subordinado. O tempo para escolher é agora. O futuro já está em disputa.