As coisas, como aconteceram
Um
discurso devastador no Conselho de Segurança da ONU
Sergei
Lavrov [*]
Sr. Presidente,
Senhor Secretário-Geral,
Colegas
A atual ordem internacional foi construída
sobre as ruínas e na sequência da colossal tragédia da Segunda Guerra Mundial.
Baseou-se na Carta das Nações Unidas, uma fonte
fundamental do direito internacional moderno. Em grande parte graças à ONU, foi
possível evitar uma nova guerra mundial, prenhe de uma catástrofe nuclear.
Infelizmente, após o fim da Guerra Fria, o
"Ocidente coletivo", liderado pelos Estados Unidos, arrogou-se arbitrariamente
o lugar de árbitro dos destinos de toda a humanidade e, dominado por um
complexo de exclusividade, começou a ignorar cada vez mais o legado dos pais
fundadores da ONU.
Hoje em dia, o Ocidente refere-se às normas e
aos princípios estatutários de forma seletiva, de tempos a tempos,
exclusivamente em função das suas necessidades geopolíticas egoístas. Isto
conduz inevitavelmente ao enfraquecimento da estabilidade global, à exacerbação
das atuais e ao incitamento de novos focos de tensão. Os riscos de conflito
global também estão a aumentar. É precisamente para os travar, para encaminhar
os acontecimentos numa direção pacífica, que a Rússia insistiu e insiste em que
todas as disposições da Carta das Nações Unidas sejam respeitadas e aplicadas,
não de forma seletiva, mas na sua totalidade e interligação, incluindo os
princípios da igualdade soberana dos Estados, da não ingerência nos seus
assuntos internos, do respeito pela integridade territorial e do direito dos
povos à autodeterminação. As ações dos Estados Unidos e dos seus aliados
indicam um desequilíbrio sistemático dos requisitos consagrados na Carta.
Desde o colapso da URSS e a formação de
Estados independentes no seu lugar, os Estados Unidos e os seus aliados têm
interferido de forma grosseira e aberta nos assuntos internos da Ucrânia. Como
a secretária de Estado Adjunta dos EUA, Victoria Nuland, admitiu publicamente e
até com orgulho no final de 2013, Washington gastou 5 mil milhões de dólares
para alimentar políticos obedientes ao Ocidente em Kiev.
Todos os factos da "engenharia" da
crise ucraniana são conhecidos há muito tempo, mas eles estão a tentar de todas
as formas possíveis silenciar, "cancelar" toda a história até 2014.
Por conseguinte, o tema da reunião de hoje, proposto pela Presidência albanesa,
é muito oportuno e permite-nos recuperar a cadeia cronológica dos
acontecimentos, e insere-se no contexto da atitude dos principais atores em
relação à implementação dos princípios e objetivos da Carta das Nações Unidas.
Em 2004-2005, o Ocidente, com o objetivo de
levar um candidato pró-americano ao poder, sancionou o primeiro golpe de Estado
em Kiev, forçando o Tribunal Constitucional da Ucrânia a tomar uma decisão
ilegal de realizar uma terceira volta de eleições não prevista na Constituição
do país. Uma ingerência ainda mais descarada nos assuntos internos
manifestou-se durante a segunda Maidan, em 2013-2014, quando toda uma série de
voyageurs ocidentais encorajaram diretamente os participantes nas manifestações
anti-governamentais a ações violentas. A mesma V. Nuland discutiu com o
embaixador dos EUA em Kiev a composição do futuro governo, que será formado
pelos golpistas. Ao mesmo tempo, indicou à União Europeia o seu verdadeiro
lugar na política mundial, do ponto de vista de Washington. Todos nos lembramos
da sua frase escabrosa de duas palavras. É significativo que a União Europeia a
tenha "engolido".
Em fevereiro de 2014, as personagens
selecionadas pelos americanos tornaram-se participantes-chave na sangrenta
tomada do poder, organizada, recordo, um dia depois do acordo alcançado entre o
Presidente legitimamente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e os líderes da
oposição, sob as garantias da Alemanha, Polónia e França. O princípio da não
ingerência nos assuntos internos foi repetidamente espezinhado.
Imediatamente após o golpe, os golpistas
declararam que a sua prioridade absoluta era restringir os direitos dos
cidadãos ucranianos de língua russa. E os habitantes da Crimeia e do sudeste do
país, que se recusaram a aceitar os resultados da tomada inconstitucional do
poder, foram declarados terroristas, tendo sido lançada uma operação punitiva
contra eles. Em resposta, a Crimeia e o Donbass realizaram referendos em plena
conformidade com o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos
povos, consagrado no nº 2 do artigo 1.
Os diplomatas e políticos ocidentais, em
relação à Ucrânia, fecham os olhos a esta norma mais importante do direito
internacional, num esforço para reduzir todo o contexto e a essência do que
está a acontecer à inadmissibilidade de violar a integridade territorial. A
este respeito, gostaria de recordar que a Declaração das Nações Unidas de 1970 sobre os Princípios do
Direito Internacional relativos às Relações Amistosas e à Cooperação entre os
Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas,
adotada por unanimidade, estipula que o princípio do respeito pela integridade
territorial é aplicável aos "Estados que observam nas suas ações o
princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos (...) e,
consequentemente, têm governos que representam (...) todas as pessoas que vivem
no território". O facto de os neonazis ucranianos que tomaram o poder em
Kiev não representarem a população da Crimeia e do Donbass não precisa de ser
provado. E o apoio incondicional das capitais ocidentais às ações do regime
criminoso de Kiev não é mais do que uma violação do princípio da
autodeterminação na sequência de uma interferência grosseira nos assuntos
internos.
Na sequência do golpe de Estado durante o
reinado de Petr Poroshenko e depois de Vladimir Zelensky, a adoção de leis
racistas que proibiam tudo o que era russo – educação, meios de comunicação
social, cultura, destruição de livros e monumentos, proibição da Igreja
Ortodoxa Ucraniana e confiscação dos seus bens – constituiu uma violação
desafiadora do n.º 3 do artigo 1.º da Carta das Nações Unidas sobre o respeito
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos – sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião. Para não falar do facto de estas ações
contradizerem diretamente a Constituição da Ucrânia, que consagra a obrigação
do Estado de respeitar os direitos dos russos e de outras minorias nacionais.
Quando ouvimos apelos à aplicação da
"fórmula de paz" e ao regresso da Ucrânia às fronteiras de 1991,
coloca-se a questão: será que aqueles que apelam a esta medida estão
familiarizados com as declarações dos dirigentes ucranianos sobre o que vão
fazer com os habitantes dos respectivos territórios? Ameaças de extermínio
legal ou físico são-lhes repetidamente dirigidas publicamente, a nível oficial.
O Ocidente não só não reprime os seus protegidos em Kiev, como também encoraja
entusiasticamente as suas políticas racistas.
Aliás, de forma semelhante, os membros da UE e
da NATO têm vindo a encorajar, há décadas, as ações da Letónia e da Estónia
para derrotar os direitos de centenas de milhares de residentes de língua russa
que foram apelidados de "não cidadãos". Agora, estão a discutir
seriamente a introdução da responsabilidade penal pela utilização da língua
materna. Altos funcionários declaram oficialmente que a divulgação de
informação sobre a possibilidade de os estudantes locais passarem nos programas
de ensino à distância em russo deve ser considerada quase como uma ameaça à
segurança nacional e requer a atenção das autoridades policiais.
Voltando à Ucrânia. A conclusão dos acordos de
Minsk, em fevereiro de 2015, foi aprovada por uma resolução especial do
Conselho de Segurança - em total conformidade com o artigo 36º da Carta, que
apoia "qualquer procedimento de resolução de litígios que tenha sido
aceite pelas partes". Neste caso, Kiev, a DPR e a LPR. No entanto, no ano
passado, todos os signatários dos Acordos de Minsk, exceto Vladimir Putin
(Angela Merkel, François Hollande e Petr Poroshenko), admitiram publicamente e
até de bom grado que, quando assinaram este documento, não tinham qualquer
intenção de o cumprir. Apenas procuravam ganhar tempo para reforçar o potencial
militar da Ucrânia e enchê-la de armas contra a Rússia. Durante todos estes
anos, a UE e a NATO apoiaram diretamente a sabotagem dos acordos de Minsk,
pressionando o regime de Kiev a resolver o "problema do Donbass" pela
força. Isto foi feito em violação do artigo 25º da Carta, segundo o qual todos
os membros da ONU são obrigados a "obedecer às decisões do Conselho de
Segurança e a executá-las".
Recordo que, no pacote dos acordos de Minsk,
os líderes da Rússia, Alemanha, França e Ucrânia assinaram uma declaração em
que Berlim e Paris se comprometeram a fazer bastante, incluindo ajudar a
restaurar o sistema bancário no Donbass. Mas não mexeram um dedo. Acabámos de
ver como, contrariamente a todas estas obrigações, Pavel Poroshenko anunciou um
bloqueio comercial, económico e de transportes ao Donbass. Na mesma declaração,
Berlim e Paris comprometeram-se a promover o reforço da cooperação trilateral
no formato UE-Rússia-Ucrânia para uma solução prática para as preocupações
comerciais da Rússia, bem como a promover "a criação de um espaço
humanitário e económico comum do Atlântico ao Oceano Pacífico". Esta
declaração foi também aprovada pelo Conselho de Segurança e estava sujeita a
implementação de acordo com o já referido artigo 25º da Carta das Nações
Unidas. Mas este compromisso dos dirigentes da Alemanha e da França revelou-se
uma "farsa", mais uma violação dos princípios estatutários.
O lendário ministro dos Negócios Estrangeiros
da URSS, A.A. Gromyko, observou, com razão, mais do que uma vez: "dez anos
de negociações são melhores do que um dia de guerra". Seguindo este
preceito, negociámos durante muitos anos, procurámos acordos no domínio da
segurança europeia, aprovámos o Ato Fundador NATO-Rússia, adotámos as
declarações da OSCE sobre a indivisibilidade da segurança ao mais alto nível em
1999 e 2010 e, desde 2015, insistimos na aplicação incondicional dos acordos de
Minsk resultantes das negociações. Tudo isto está em plena conformidade com a
Carta das Nações Unidas, que exige "proporcionar condições para a justiça
e o respeito pelas obrigações decorrentes de tratados e outras fontes do
direito internacional". Os nossos colegas ocidentais espezinharam este
princípio quando assinaram todos estes documentos, sabendo de antemão que não
os iriam cumprir.
Falando de negociações. Continuamos a não as
abandonar. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou sobre isso muitas
vezes, inclusive muito recentemente. Gostaria de recordar ao ilustre secretário
de Estado que o Presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, assinou um decreto
que proíbe as negociações com o Governo de Vladimir Putin. Se os Estados Unidos
estão tão interessados nelas, penso que não será difícil "dar a
ordem" para que a ordem executiva de Vladimir Zelensky seja cancelada.
Atualmente, na retórica dos nossos
adversários, só ouvimos slogans: "invasão, agressão, anexação". Nem
uma palavra sobre as causas profundas do problema, sobre como durante muitos
anos alimentaram o regime abertamente nazi, reescrevendo abertamente os
resultados da Segunda Guerra Mundial e a história do seu próprio povo. O
Ocidente evita uma conversa substantiva baseada em factos e no respeito por
todos os requisitos da Carta das Nações Unidas. Aparentemente, não tem
argumentos para um diálogo honesto.
Há uma forte impressão de que os representantes
ocidentais têm medo de discussões profissionais que exponham a sua demagogia.
Proferindo encantamentos sobre a integridade territorial da Ucrânia, as antigas
metrópoles coloniais calam-se perante as decisões da ONU sobre a necessidade de
Paris devolver o Mayotte "francês" à União das Comores, e de Londres
abandonar o arquipélago de Chagos e iniciar negociações com Buenos Aires sobre
as ilhas Malvinas. Estes "campeões" da integridade territorial da
Ucrânia fingem agora que não se lembram do significado dos acordos de Minsk,
que consistiam na reunificação do Donbass com a Ucrânia, com garantias de
respeito pelos direitos humanos fundamentais, principalmente o direito à sua
língua materna. O Ocidente, que impediu a sua aplicação, é diretamente responsável
pelo colapso da Ucrânia e pelo incitamento à guerra civil no país.
Entre outros princípios da Carta das Nações
Unidas, cujo respeito poderia evitar uma crise de segurança na Europa e
contribuir para harmonizar as medidas de confiança baseadas num equilíbrio de
interesses, gostaria de referir o artigo 2º do capítulo VIII da Carta. Este
artigo consagra a necessidade de desenvolver a prática da resolução pacífica de
litígios com a ajuda de organizações regionais.
De acordo com este princípio, a Rússia,
juntamente com os seus aliados, tem defendido consistentemente o
estabelecimento de contactos entre a CSTO e a NATO, a
fim de facilitar a implementação prática das decisões acima mencionadas das
cimeiras da OSCE de 1999 e 2010 sobre a indivisibilidade da segurança, que
estipulam, em particular, que "a nenhum Estado, grupo de Estados ou
organização pode ser atribuída a responsabilidade primária pela manutenção da
paz e da estabilidade na área da OSCE ou considerar qualquer parte desta região
como sua esfera de influência". Todos sabem que era exatamente isto que a
NATO estava a fazer – a tentar criar a sua vantagem total na Europa e agora na
região da Ásia-Pacífico. No entanto, foram ignorados numerosos apelos dos mais
altos órgãos da CSTO à Aliança do Atlântico Norte. A razão para uma posição tão
arrogante dos Estados Unidos e dos seus aliados, como toda a gente pode ver hoje
em dia, é a falta de vontade de conduzir um diálogo igualitário com quem quer
que seja. Se a NATO não tivesse rejeitado as propostas de cooperação da CSTO,
talvez isso tivesse evitado muitos dos processos negativos que conduziram à
atual crise europeia, devido ao facto de a Rússia se ter recusado a ouvir ou
ter sido enganada durante décadas.
Hoje, quando estamos a discutir o
"multilateralismo efetivo" por sugestão da Presidência, não devemos
esquecer os numerosos factos da rejeição genética do Ocidente a qualquer forma
de cooperação igualitária. Que pérola a de Josep Borrell de que a Europa é
"um jardim florido rodeado de selva". Trata-se de um síndroma
puramente neocolonial que despreza a igualdade soberana dos Estados e as
tarefas de "reforço dos princípios da Carta das Nações Unidas através de
um multilateralismo efetivo" que estão hoje em dia em evidência no nosso
debate.
Numa tentativa de impedir a democratização das
relações interestatais, os Estados Unidos e os seus aliados privatizam cada vez
mais, de forma aberta e sem cerimónias, os secretariados das organizações
internacionais, contornando os procedimentos estabelecidos para as decisões
sobre a criação de mecanismos subordinados com mandatos não consensuais, mas
com a pretensão de se arrogarem o direito de culpar aqueles que, por qualquer
razão, não agradam a Washington.
A este respeito, gostaria de vos recordar a
necessidade de uma aplicação rigorosa da Carta das Nações Unidas, não só pelos
Estados membros, mas também pelo Secretariado da nossa organização. Nos termos
do artigo 100º da Carta, o Secretariado deve atuar com imparcialidade e não
deve receber instruções de nenhum governo.
Já falámos do artigo 2º da Carta. Gostaria de
chamar a atenção para o seu ponto-chave 1: "A Organização baseia-se no
princípio da igualdade soberana dos Estados de todos os seus membros".
Desenvolvendo este princípio, a Assembleia Geral da ONU, na Declaração de 24 de
outubro de 1970 que mencionei, reafirmou "o direito inalienável de cada
Estado de escolher o seu próprio sistema político, económico, social e cultural
sem interferência de qualquer parte". A este respeito, temos sérias
dúvidas quanto às declarações do Secretário-Geral António Guterres, de 29 de
março, segundo as quais "o regime autocrático não garante a estabilidade,
é um catalisador do caos e do conflito", mas "as sociedades
democráticas fortes são capazes de se auto-corrigir e de se auto-aperfeiçoar.
Podem estimular mudanças, mesmo radicais, sem derramamento de sangue ou
violência". Involuntariamente, lembramo-nos das "mudanças"
provocadas pelas aventuras agressivas das "democracias fortes" na
Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e em muitos outros
países.
Mais adiante, o estimado António Guterres
afirmou que: "Elas (as democracias) são centros de ampla cooperação
enraizados nos princípios da igualdade, da participação e da
solidariedade". É digno de nota que todos estes discursos foram proferidos
na "cimeira para a democracia" convocada pelo Presidente Joe Biden
fora da ONU, cujos participantes foram selecionados pela administração dos EUA
com base na lealdade – e não tanto a Washington como ao Partido Democrata no
poder nos Estados Unidos. As tentativas de utilizar esses fóruns de encontro
para discutir questões de natureza global contradizem diretamente o nº 4 do
artigo 1º da Carta das Nações Unidas, que afirma a necessidade de
"assegurar o papel da Organização como centro de coordenação de ações para
atingir objetivos comuns".
Contrariamente a este princípio, há alguns
anos, a França e a Alemanha proclamaram uma "aliança de
multilateralistas", para a qual também convidaram apenas os obedientes, o
que, por si só, reafirma a inevitabilidade da mentalidade colonial e a atitude
dos iniciadores em relação ao princípio do "multilateralismo efetivo",
hoje na ordem do dia. Ao mesmo tempo, foi implantada uma "narrativa"
sobre a União Europeia como o ideal desse mesmo "multilateralismo".
Bruxelas apela agora a que se alargue o mais rapidamente possível o número de
membros da UE, incluindo, em particular, os países dos Balcãs. Mas o pathos
principal não é o da Sérvia, nem o da Turquia, que há décadas conduz
negociações de adesão sem esperança, mas o da Ucrânia. Afirmando-se como o
ideólogo da integração europeia, Josep Borrell não hesitou recentemente em
pronunciar-se no sentido de que o regime de Kiev deveria ser admitido na União
Europeia tão logo quanto possível. Digamos que, se não fosse por causa da
guerra, teria demorado anos, e desse modo– é possível e necessário sem
quaisquer critérios. A Sérvia, a Turquia e outros ficarão à espera. Mas os
nazis são aceites nas fileiras da UE sem entrar na fila.
Aliás, na mesma "cimeira para a
democracia", o Secretário-Geral proclamou: "A democracia tem origem
na Carta das Nações Unidas. As primeiras palavras da Carta – "Nós, os
povos" – refletem uma fonte fundamental de legitimidade: o consentimento
dos governados. É útil correlacionar esta tese com o "historial" do
regime de Kiev, que desencadeou uma guerra contra uma grande parte do seu
próprio povo – contra os milhões de pessoas que não aceitaram serem controladas
pelos neonazis e russófobos que tomaram ilegalmente o poder no país e
enterraram os acordos de Minsk aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU,
minando assim a integridade territorial da Ucrânia.
Aqueles que, contrariamente à Carta das Nações
Unidas, dividem a humanidade em "democracias" e "autocracias",
fariam bem em responder à pergunta: a que categoria atribuem o regime
ucraniano? Não estou à espera de uma resposta.
Falando dos princípios da Carta, coloca-se a
questão da relação entre o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral. O
"coletivo ocidental" tem promovido agressivamente e há muito tempo o
tópico do "abuso do direito de veto" e conseguiu – através de uma
pressão não muito correta sobre outros membros da ONU –uma decisão de
considerar o tópico relevante na Assembleia Geral após cada aplicação deste
direito, o qual o Ocidente está a provocar cada vez mais deliberadamente. Isto
não é um problema para nós. As abordagens da Rússia a todas as questões da
ordem do dia são abertas, não temos nada a esconder e não é difícil voltar a
afirmar esta posição. Além disso, o recurso ao veto é um instrumento
absolutamente legítimo, previsto na Carta, para evitar a adoção de decisões que
poderiam provocar uma cisão na Organização. Mas, uma vez que o procedimento
para discutir o uso do veto na Assembleia Geral foi aprovado, por que não
pensar nas resoluções do Conselho de Segurança que não foram vetadas, que foram
adotadas, inclusive há muitos anos, mas que não foram implementadas, apesar das
disposições do artigo 25º da Carta. Porque é que a Assembleia Geral não
considera as razões para este estado de coisas – por exemplo, no que diz
respeito às resoluções do Conselho de Segurança sobre a Palestina e sobre toda
a gama de problemas do Médio Oriente e Norte da África, sobre o JCPOA, bem como
a Resolução 2202, que aprovou os acordos de Minsk sobre a Ucrânia.
O problema associado aos regimes de sanções
também requer atenção. Já se tornou a norma: o Conselho de Segurança, após
longas negociações – em estrita conformidade com a Carta – aprova sanções
contra um país específico e, em seguida, os Estados Unidos e os seus aliados
impõem restrições unilaterais "adicionais" contra o mesmo Estado que
não foram aprovadas pelo Conselho de Segurança e não estão incluídas na sua
resolução como parte do "pacote" acordado. Na mesma série, outro
exemplo flagrante é a decisão que Berlim, Paris e Londres acabam de tomar,
através das suas legislações nacionais, de "prorrogar" as restrições
ao Irão que expiram em outubro e que estão sujeitas a um termo legal, de acordo
com a Resolução 2231 do Conselho de
Segurança da ONU. Ou seja, os países europeus e o Reino
Unido declaram que a decisão do Conselho de Segurança expirou, mas não se
preocupam com isso, têm as suas próprias "regras".
Tudo isto torna ainda mais urgente considerar
a questão de que, após a adoção pelo Conselho de qualquer resolução de sanções,
nenhum dos membros da ONU teria o direito de a desvalorizar, impondo as suas
próprias restrições ilegítimas contra o mesmo país.
É igualmente importante que todos os regimes
de sanções do Conselho de Segurança sejam limitados no tempo, uma vez que o seu
carácter indefinido priva o Conselho de flexibilidade em termos de influência
sobre as políticas dos "governos sancionados".
O tema dos "limites humanitários das
sanções" também requer atenção. Seria correto que quaisquer sanções a
submeter ao Conselho de Segurança fossem acompanhadas de avaliações das suas
consequências para os cidadãos através das agências humanitárias da ONU, em vez
de exortações demagógicas dos nossos colegas ocidentais [a dizerem] que
"as pessoas comuns não sofrerão".
Caros colegas,
Os factos falam da mais profunda crise nas relações internacionais e da falta
de desejo e vontade por parte do Ocidente para ultrapassar esta crise.
Espero que ainda exista e seja encontrada uma
saída para esta situação. Para começar, todos têm de assumir a responsabilidade
pelo destino da nossa Organização e do mundo – num contexto histórico, e não do
ponto de vista de alinhamentos eleitorais oportunistas e momentâneos nas
próximas eleições nacionais de um Estado-Membro. Permitam-me que vos recorde
mais uma vez: há quase 80 anos, ao assinarem a Carta das Nações Unidas, os
líderes mundiais concordaram em respeitar a igualdade soberana de todos os
Estados – grandes e pequenos, ricos e pobres, monarquias e repúblicas. Por
outras palavras, já nessa altura, a humanidade reconhecia a necessidade de uma
ordem mundial igualitária e policêntrica como garantia da estabilidade e da
segurança do seu desenvolvimento.
Por isso, hoje não se trata de nos submetermos
a uma qualquer "ordem mundial baseada em regras", mas sim de
cumprirmos com todas as obrigações assumidas quando da assinatura e
ratificação da Carta na sua totalidade e interligação.
21/Setembro/2023
[*] Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Federação Russa.
Ver também:
· https://mid.ru/pt/