Artigo de Vladimir Safatle, publicado no El Pais. Ele tem razão, entidades morrem, pessoas morrem.
As ideias de liberdade, emancipação, igualdade, por outro lado, não morrem. E aqui quero fazer um contraponto ao professor Safatle. É só a "esquerda" que está morta? Que dizer das ideias de nação, democracia no Brasil? As bases ideológicas do neoliberalismo, face aos repetidos fracassos de governos que o têm adotado, em todo o mundo? E da verdade, frente ao fogo de barragem permanente e continuado de fake news, ou mentiras, falsidades, teorias conspiratórias que sentaram praça nos novos instrumentos de disseminação de ideias e notícias, as redes sociais?
Viver é não só perigoso, como disse Guimarães Rosa, é complicado, muito complicado.
As ideias de liberdade, emancipação, igualdade, por outro lado, não morrem. E aqui quero fazer um contraponto ao professor Safatle. É só a "esquerda" que está morta? Que dizer das ideias de nação, democracia no Brasil? As bases ideológicas do neoliberalismo, face aos repetidos fracassos de governos que o têm adotado, em todo o mundo? E da verdade, frente ao fogo de barragem permanente e continuado de fake news, ou mentiras, falsidades, teorias conspiratórias que sentaram praça nos novos instrumentos de disseminação de ideias e notícias, as redes sociais?
Viver é não só perigoso, como disse Guimarães Rosa, é complicado, muito complicado.
Protesto na av. Paulista contra os cortes na Educação, em maio de 2019.NELSON ALMEIDA (AFP)
Para a esquerda, morrer é
só o começo
Em uma época em que até Armínio Fraga se diz de
esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la
Há duas semanas escrevi neste jornal um artigo
sobre o colapso da esquerda nacional (“Como a esquerda brasileira morreu”)
que foi objeto de vários comentários e críticas. Um dia após a publicação do
artigo, o mesmo EL PAÍS publicou uma pesquisa que mostrava como, caso a eleição
fosse hoje, Bolsonaro venceria em todos os
cenários. Creio que tal coincidência seja uma boa resposta para quem
procura desprezar a gravidade da situação.
De toda forma, gostaria inicialmente de agradecer
grande parte das críticas que recebi. Mesmo sendo as vezes duras, muitas
levantaram questões absolutamente relevantes que me levaram a considerar pontos
que não havia relevado. Há outra parte de críticas que se compraz em abusar de
certos estereótipos que apenas mostram mais sobre o espírito de quem fala do
que sobre o objeto analisado. Não há como responder a este grupo. Gostaria pois
de levar em conta algumas das críticas relevantes a fim de dar sequência a um
debate que creio ser necessário prosseguir.
Primeiro, alguns creem ser sintoma de melancolia e “desabafo”
falar em morte da esquerda nacional. Até mesmo ironias a respeito do
fato de eu ter anteriormente insistido no esgotamento de outros processos
históricos, como a Nova República e os acordos imanentes à democracia liberal
foram levantados como marcas de uma fixação necrofílica. Bem, não é de hoje que
se insiste haver em certos setores desse país uma espécie de déficit de
negatividade, ou seja, certa dificuldade estrutural de assumir a necessidade de afirmar esgotamentos,
recusas e términos (se alguém ainda está disposto a afirmar que a
Nova República vive, por exemplo, eu realmente gostaria de saber onde os
argumentos foram encontrados).
Lembraria que clinicamente “melancolia” é
exatamente a incapacidade de se liberar da fixação a objetos perdidos, não a
decisão de se recusar a carregar o que está morto. Por mais que alguns se
comprazem com as máscaras da euforia, há mais melancolia neste entusiasmo do
que poderia aparentar. É, na verdade, sintoma de melancolia não encarar as
derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de
compreender sua real extensão. Contra essa leitura, há de se lembrar que, em
uma vida, morre-se várias vezes. Um dos piores erros é acreditar que só se
morre no fim. Morre-se várias vezes e esta é, muitas vezes, a condição de
realmente continuar e se transformar.
Nesse sentido, afirmar que a esquerda nacional
morreu não é expressão alguma de prazer infantil de contenda. Antes, é fruto da
compreensão de que a sobrevivência da esquerda nacional depende do reconhecimento
de sua morte. Dizer claramente “nós morremos” é a primeira condição para nos
livrarmos do que nos matou. Quem se recusa a pensar dialeticamente nessas
circunstâncias desconhece a dinâmica de processos históricos. E nossa morte não
foi apenas um acidente externo, ela tem causas internas. O jogo do “estamos sendo atacados por fascistas, agora não é
hora de assumir nossa auto-crítica” é suicida, é o verdadeiro suicídio. Se o fascismo nacional voltou, se ele
teve força para voltar, foi porque ele foi o primeiro a sentir o cheiro de
nossa morte. De toda forma, em uma época em que até Armínio Fraga se diz de
esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la.
Diria ainda que há um fenômeno brasileiro aqui. Não
creio ser correto colocar a conta do colapso da esquerda nacional na conquista
do imaginário social pela indústria cultural, pela sociedade de consumo e suas
formas de regressão. Esse diagnóstico já existia desde os anos cinquenta pelas
mãos dos frankfurtianos e muita
coisa ocorreu depois. Por outro lado, sendo esse fenômeno algo mundial, seria
difícil explicar por que a esquerda reabre caminhos promissores
no Chile, mostra-se viva no Líbano e, pasmem, começa a levantar a cabeça nos EUA.
Mas poderíamos nos perguntar se estamos realmente
diante de uma morte, ao invés de uma simples derrota. Gostaria de insistir que
o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico
que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já
conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este.
Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram
na incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional
conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores
expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do
presente. Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a
uma retração cada vez maior (tema tratado inicialmente por Paulo Arantes),
ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta
“outra natureza” chama-se, infelizmente, “morte”.
Neste sentido, não é correto falar de precipitação,
como se afinal estivéssemos jogando a toalha depois de apenas um ano de Governo Bolsonaro. Primeiro, não se trata de
jogar toalha alguma, mas de saber qual o trabalho crítico necessário para não
nos satisfazermos com ações desprovidas de força efetiva. Segundo, não se trata
de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade da esquerda nacional
reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos
que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que
vemos no presente. Qual é a política econômica alternativa da esquerda
nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é
claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.
É sabido que muitos se insurgem contra o uso de
palavras no singular. Esses insistem que sempre houve “esquerdas”, que não faz
sentido algum em falar do destino de alguma entidade quase dotada de unidade
metafísica como a “esquerda”. No entanto, há um precisão necessária aqui. Ninguém
negaria que a história da esquerda nacional é múltipla e internamente
conflituosa. Mas isto não significa a inexistência de um modelo hegemônico que
não apenas incarna-se periodicamente em múltiplos atores distintos, mas que
organiza todos os outros a partir da relação a si, produzindo dois movimentos
possíveis: a aproximação articulada que reforça o campo hegemônico (como um
planeta que atrai corpos menores) ou o distanciamento que equivale a assunção
de uma posição radicalmente minoritária. A história da esquerda brasileira
realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios
ao populismo de esquerda. Este populismo não
conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido
pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou. A
tentativa de reeditar seus modelos heteróclitos de aliança não é astúcia de
governabilidade. É só a expressão de que o que faremos é o que já fizemos, que
nosso futuro é igual nosso passado.
É possível desconfiar desse diagnóstico vendo nele
apenas a milésima reedição do mantra uspiano contra o populismo. Algo que
expressaria o verdadeiro DNA anti-varguista do setor paulista da
intelectualidade nacional, setor no fundo impulsionado pela nostalgia da perda
da hegemonia paulista na política brasileira. No entanto, seria
intelectualmente mais honesto compreender esta longa luta contra o populismo
como o sintoma da consciência do sistema de paralisia que aprisiona as forças
transformadoras deste país há décadas, como o sintoma do movimento de repetição
histórica que nos subsume (mesmo que seja verdade que há impactos regionais
distintos da mesma política, como mostra Patricia Valim, e isto precisa ser
melhor pensado). Um sintoma que ganhou realidade mundial a partir do momento
que várias forças de transformação no mundo assumiram para si estratégias
populistas de esquerda. Eu mesmo acreditei, no passado, que elas poderiam ser
localmente úteis em casos como na Grécia (Syriza) e Espanha (Podemos). Há de se reconhecer atualmente
que os resultados foram decepcionantes. Ninguém precisa de uma versão hypster
do PSOE ou de uma esquerda que
finge fazer consultas populares para depois esquecê-las.
Isto não significa dizer que não há lutas, que as
lutas atuais não são decisivas e importantes. Todos nós estamos envolvidos em
várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas
são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais
entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em
constelação. Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da
educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de
lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo.
Um milhão de pessoas na rua transforma-se em uma resistência pontual. Seria o
caso de se perguntar a razão para tanto.
Isso nada tem a ver com alguma contraposição entre
luta de classe e lutas por reconhecimento (que alguns infelizmente insistem em
chamar de “lutas identitárias”). É
verdade que há os que, de forma equivocada, insistem na pretensa morte da
“velha” esquerda ligada à centralidade do trabalho e da luta global contra o
capitalismo. Mas temo que, em um momento histórico no qual assistimos a
intensificação dos regimes de trabalho e o achatamento geral dos salários,
falar que o trabalho perdeu sua centralidade e relevância só pode ser fruto de
um delírio acadêmico que alguns compram como a última moda.
Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile
mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas são um desdobramento necessário e
decisivo da luta de classe. Elas são
figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho
macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas
sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa,
por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é,
imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um
dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles
que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de
concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na
flexibilização dos direitos trabalhistas são
derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de
forma violenta o significado de tal “flexibilização”. O que o Chile nos mostrou
é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela
expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói.
Ou seja, o fato de que a multiplicidade das lutas
no Brasil não consigam convergir em um campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo
fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto
ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de
reconhecimento de forma compensatória. Como ela não tem nenhum horizonte
concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que
é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de
refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar
estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não
consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que “não são como nós”,
a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no
qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas
sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas
lutas.
Isso não significa estar fixado em um paradigma de
ação revolucionária que seria, ao mesmo tempo, inefetivo e perigoso. De toda
forma, é realmente engraçado como vivemos em uma era de sinais trocados. A extrema-direita no mundo inteiro não teme em
dizer que estão a lutar por uma “revolução” que possa dar ao povo a voz que
eles nunca tiveram. E, com esta revolução conservadora, eles ganham eleições
que constroem adesão popular real. Só certos setores hegemônicos da esquerda
acreditam que isto é uma conversa de centro acadêmico ou que a verdadeira
revolução é esta de novas subjetividades que estaria pretensamente a ocorrer
enquanto a espoliação é cada vez mais brutal e o horizonte anti-capitalista encontra-se, em larga medida,
recalcado e vergonhosamente intocado.
Por fim, seria o caso de levar em conta as
acusações de que intervenções públicas desta natureza são contraproducentes
porque não indicam caminhos concretos a serem seguidos, por se contentarem com
chamados abstratos a “rupturas”. É difícil ouvir tais colocações sem lembrar de
dois fenômenos. Primeiro, essa luta contra as “ideias abstratas” era, na
verdade, um tema conservador. Lembrem, por exemplo, de Edmund Burke a discursar
contra as “ideias abstratas” de igualdade vindas da cabeça de filósofos ociosos
que acabaram por criar caos revolucionário no mundo do final do século XVIII e
começo do XIX. Ou seja, a história demonstra, e isto os conservadores sabem
muito bem, que “abstrações” tem muito mais força do que alguns estão dispostos
a acreditar. Seria melhor que os setores progressistas da sociedade brasileira
parassem de mimetizar o anti-intelectualismo dos
conservadores.
Segundo, peço licença para lembrar do que aconteceu
um dia com Sigmund Freud. Diante de uma paciente histérica,
que passou a história com o nome de Dora, Freud não teve ideia melhor do que
dizer a ela o que ela realmente desejava, esperando que isso a levasse a
suspender sua forma de destruir seu próprio desejo. O resultado não poderia ser
outro que um fracasso. Dora não precisava de alguém para dizer o que fazer ou
para enunciar seu próprio desejo. Ela precisava de alguém que pudesse ajudá-la
a produzir um processo que lhe permitisse alcançar por si mesma a enunciação de
seu desejo. Ao falar em seu nome, Freud destruiu toda possibilidade de
experiência para Dora. Lembro disso apenas para insistir que não há sentido
algum em enunciar “propostas” em artigos de jornal. Não é de propostas que
necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a
implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de
governo. É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas
transversalidades.
A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para
um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo
“fascismo” não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em
curso que paulatinamente ganha forma. Um processo dessa natureza só pode ser
parado de duas formas: através de uma catástrofe (como uma guerra) ou através
da consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa
contrapor à revolução conservadora uma revolução real. Mas, para tanto, essa
força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela
precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de
esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais
vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela
sociedade brasileira como sujeitos. Mas ela precisa também destruir o modelo
econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto
garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes
vistos na história deste país. Os mesmos grupos, bancos e empresas que
atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência
e a destruição próprias a esse Governo são aquelas que há quarenta anos atrás
forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a
humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. Ou seja, não é exato dizer que
eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que
necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela,
a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus
operadores.
Mas essa força que usa a organização compacta e a
imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas
para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá
se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora.
Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP
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