Marcelo Zero
Com todo esse imbróglio
envolvendo a Argentina e os fundos abutres, muita gente deve estar se
perguntando: como pode um juizinho de primeira instância do estado de Nova
Iorque colocar de joelhos um país soberano?
A resposta a essa pergunta é
enganadoramente simples: não foi o juiz Thomas Griesa que colocou a Argentina
de joelhos; foi a Argentina que se colocou de joelhos perante o juiz.
Esse ato vexatório de
genuflexão não foi cometido, no entanto, pelo governo Kirchner. Tudo começou na
ditadura militar, mais precisamente em 20 de abril de 1976, quando o governo
argentino sancionou a Ley 21.305.
Essa lei tinha um só artigo, que modificava o Código Procesal Civil e Comercial de la Nacíon, de modo a permitir
a retirada da competência da justiça argentina, em assuntos de natureza
patrimonial, “a favor de juízes e árbitros estrangeiros”.
Tratava-se, é claro, de uma
renúncia à soberania jurídica do país. A junta militar queria emitir papéis da
dívida para se financiar, mas estava encontrando dificuldades para atrair
investidores, que relutavam em comprar papéis submetidos à justiça argentina
tutelada pelos generais. A “solução” da junta militar foi dar “maior segurança
jurídica aos investidores”, permitindo-lhes submeter qualquer querela jurídica
a juízes estrangeiros.
Posteriormente, já no
governo Menem, a Argentina aprofundou ainda mais essa renúncia a sua soberania
jurídica, ao assinar 54 acordos bilaterais de promoção e proteção de
investimentos. Esses acordos permitem aos investidores estrangeiros na
Argentina submeter qualquer disputa jurídica a uma arbitragem internacional,
passando ao largo de tribunais nacionais. Diga-se de passagem, na época de FHC,
o Brasil também firmou 17 acordos desse tipo, que só não foram promulgados
porque a oposição os barrou no Congresso.
Mas o fato concreto é que,
desde aquelas jurássicas eras, a Argentina emite os seus papéis da dívida
soberana, ou boa parte deles, em Nova Iorque, submetendo-os, ipso facto, às leis e cortes
norte-americanas, federais e estaduais. O Banco encarregado de fazer esse
serviço é o Bank of New York Mellon.
É isso que permite que
Thomas Griesa decida monocraticamente sobre o destino da Argentina e, por
consequência, sobre o futuro de todas as, por vezes, imprescindíveis
reestruturações das dívidas soberanas, levando inquietação a todo o mercado
financeiro internacional.
É isso que permite também
aos fundos abutres traçar estratégias jurídicas audaciosas para ter lucros
extraordinários.
Num primeiro momento, tais
fundos, principalmente o NML de Paul Singer, situado muito apropriadamente nas
Ilhas Cayman, tentaram cobrar da Argentina pedindo o sequestro de bens no
exterior. Tentaram sequestrar o avião presidencial e mesmo depósitos da
Argentina no Federal Reserve em Nova
Iorque. Conseguiram até aprisionar, por 10 semanas, a fragata argentina
Libertad, que estava fazendo uma escala em Gana. Essa estratégia esbarrou, no
entanto, em leis internacionais que protegem ativos soberanos no exterior.
Desse modo, os fundos
abutres resolveram mudar de estratégia. Agora, a estratégia é embarrar a
própria reestruturação da dívida. Essa estratégia audaciosa vem dando certo
devido, em boa parte, a outro erro argentino. É que, nas renegociações feitas
em 2005 e 2010, a Argentina teve o cuidado de incluir a cláusula pari passu (que assegura tratamento
igual a todos os credores), mas não incluiu uma cláusula de ação coletiva
forçando a inclusão de todos os credores na renegociação.
Agora, o juiz Griesa diz que
a Argentina, que se comprometeu a tratar todos os credores com igualdade, tem
de pagar a todos os credores, mesmo aqueles que não aderiram à renegociação. Ou
paga a todos ou não paga a nenhum. Fica decretada, assim, a morte jurídica da
reestruturação da dívida. A Argentina está em default não porque não possa ou
não queira pagar. Está em default porque a justiça norte-americana não a deixa
pagar a dívida renegociada.
Paradoxalmente, é justamente
o êxito da reestruturação que torna a estratégia abutre viável. Com essa
reestruturação, a Argentina reduziu a sua dívida externa de 150% do PIB, em
2002, pra 8,3% do PIB, em 2013, e conseguiu se recuperar economicamente A
grande maioria dos credores, que aceitaram a reestruturação (93%), também se
beneficiou. Com a recuperação do país, houve um boom de papéis argentinos, que
tiveram seu valor de face multiplicado por quatro. Além disso, a Argentina vem
pagando religiosamente os dividendos e os juros aos credores que aceitaram a
reestruturação. Assim, os credores que aceitaram a renegociação perderam no
curto prazo para ganhar mais no longo prazo. Isso cria uma pressão enorme para
que a Argentina continue a pagar seus compromissos com essa grande maioria de
credores.
A estratégia jurídica dos
abutres conduziu ao arriscado dilema do tudo ou nada. Se a Argentina pagar aos
abutres o que eles querem, o valor de face original dos papéis, sem o desconto
da renegociação, mais todos os juros e dividendos, os outros 93% dos credores
provavelmente vão exigir, com base na cláusula de tratamento igualitário, a
mesma coisa do governo argentino, o que poderá gerar ações da ordem de US$ 20
bilhões dólares. Por outro lado, se a Argentina não pagar os abutres, não
poderá pagar também os outros credores, o que complicará sua situação no
mercado financeiro internacional, justamente no momento em que começa a ter
grande necessidade de captar dinheiro no exterior.
Pode-se argumentar, é claro,
que essa é uma estratégia arriscada também para os fundos abutres, pois o
default técnico-jurídico pode jogar por terra o valor atual dos bônus
argentinos, como aconteceu em 2002. É verdade. Mas, por trás dessa arriscada
estratégia jurídica, há também um frio cálculo político. Os fundos abutres
estão apostando alto na derrota de Kirchner nas próximas eleições e em sua
substituição por um governo mais “sensível aos interesses dos investidores”,
que se disporia a pagar os lucros estratosféricos pretendidos.
O esquema é conhecido:
cria-se uma crise para prejudicar um governo pouco receptivo aos interesses dos
especuladores, para depois lucrar muito com um governo “amigo das
finanças”. A renúncia da soberania
jurídica funciona melhor quando há um comprometimento da soberania política.
O Task Force Argentina, grupo de lobby que defende os interesses dos
abutres, gasta mais de US$ 7 milhões por ano somente para apoiar políticos
comprometidos com sua agenda. Financia também organizações não governamentais e
a produção de artigos, “análises” e “estudos”. A bem da verdade, é um
investimento baixo para o lucro almejado. Se tiverem êxito, os abutres poderão
vender ativos comprados por US$ 49 milhões por 1,3 bilhão. Tudo isso, é óbvio, a
expensas do bem-estar da população argentina, que teria de pagar pelo “ajuste”
econômico necessário para financiar a farra dos especuladores.
Porém, não são somente os
abutres que fazem política. Toda a banca faz. Os especuladores de todas as
plumagens sempre arranjam uma maneira de lucrar muito com as crises, reais ou
fabricadas.
Há inúmeras task forces por aí, ameaçando a
soberania jurídica e política de muitos países, inclusive o Brasil. Trata-se de
algo ameaçador e muito ruim para os interesses nacionais.
O pior, contudo, é que muita
gente por aqui continua a achar que as “análises” do Santander, do Empirucus, et caterva, são “técnicas” e muito
apropriadas.
Bom, se é assim, melhor
fazer como dizia Manuel Bandeira: cantar um tango argentino.
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