PRECONCEITO
Pré-conceito. Pode-se definir como um conhecimento sobre
alguma coisa ou alguém que um sujeito tem antes de entrar em ação com esse
objeto. Sob essa definição, trata-se de um instrumento poderoso nas relações
entre seres humanos, já que seria inviável primeiro conhecer completamente cada
pessoa antes de interagir com ela.
Os caçadores e coletores de que descendemos faziam
associações entre aspectos visuais, cheiros, sons, para comparar com algo
ensinado por alguém, ou aprendido por experiência própria. Essas associações
frequentemente falhavam em dar bons resultados. As que davam certo mais
frequentemente acabavam por se incorporar ao conhecimento coletivo.
Se eu avistar um homem sem uniforme portando uma arma, ou
com maneiras agressivas, será sensato considerar que ele seja uma ameaça em
potencial. Uma pessoa que fala com muitos erros pode ter dificuldade em
executar tarefas complexas. Pode ser. Há certa possibilidade de. Pessoas que
não sejam de meu grupo me entenderão menos, eu terei maior dificuldade de
entender.
Os preconceitos tornam o mundo mais simples, mais
inteligível. Tornam mais fácil concentrarmo-nos em nossas rotinas, defender
nossas mentes de novidades reais e de desafios a nossas percepções. Também nos
tornam mais tapados, menos capazes de perceber as verdadeiras ameaças e
oportunidades novas, caminhos novos para trilhar, capacidade de nos adaptarmos
a uma realidade que muda a cada momento.
Tudo isso a propósito de algumas lembranças que me vieram à
mente recentemente.
Estava eu em uma praça no centro de Salvador mais de vinte
anos atrás, e um homem discursava não me lembro do teor, mas mostrava um
talento notável de oratória. Um homem do povo entre os ouvintes, um negro (o
orador era branco) começou a comentar de aos outros que haviam parado para
escutar, que falar assim, só mesmo um branco, que negro não conseguia falar tão
bem. Fiquei um tanto chocado. Ele havia expressado seu entusiasmo pelo
desempenho do orador, mas de incluiu uma desvalorização de sua “raça” e de si
mesmo.
Invertendo o raciocínio desse negro, é reconfortante
pertencer a um grupo que em média é mais
bem sucedido na sociedade. Classificar os que se supõe ser uma ameaça seja ao
mundo de relações pré-estabelecidas seja como concorrentes econômicos como
inferiores prepara o caminho para ações de discriminação contra essas pessoas,
seja em conversas com amigos ou em ações mais contundentes. Principalmente se
esses diferentes já estiverem em posição de inferioridade política, social ou
econômica.
Na realidade, o mundo real é ininteligível para a maioria
das pessoas sem alguns filtros e preconceitos, e ao mesmo tempo, é impossível
estabelecer-se uma verdadeira cooperação em um grupo – de trabalho, local,
nacional, internacional, em que preconceitos tenham uma presença maior.
Democracia só é real se nenhuma parte dos cidadãos é vítima de preconceitos
importantes. Porque a cooperação exige um mínimo de confiança, que sai de cena
quando a visão de uns sobre outros tem muitos elementos que não podem ser
expostos ao grupo.
O preconceito positivo – nossos semelhantes são melhores do
que os outros - também prejudica a atuação do grupo, seja gerando uma
condescendência prejudicial, seja abrindo caminho para o estabelecimento de
privilégios. A parábola atribuída a Jesus reforça essa constatação do senso
comum.
O preconceito positivo – negativo coloca mal os brasileiros
frente aos povos dos países mais ricos – os do “primeiro mundo”. Reforça a
mentalidade de fortaleza, em que a elite se identifica com estadunidenses,
europeus e japoneses (outros asiáticos, ainda não) e se considera cercada por
um mar de pobres incompetentes e indignos. Isto reforça a tendência dos mais
ricos de se encerrarem em condomínios fechados, que por enquanto ficam mais ou
menos protegidos das consequências de uma balcanização crescente das cidades e
do campo onde reside “o resto”, com assaltos e guerras de quadrilhas.
De certa maneira preconceito tem uma grande proximidade com
a superstição. Aqui, chamo superstição toda crença não confirmada pela
experiência (e que não é aceita pela sabedoria corrente). Apenas, superstição
seria mais geral, já que preconceito se aplica a pessoas. Para mim, acreditar
que não existe aquecimento global e que o homem não é necessário por isso
(essas duas afirmações vêm uma seguindo a outra, como táticas ideológicas) é
uma superstição. Não é ainda para a sabedoria vigente, mas passará a ser quando
as evidências desabarem sobre todos.
A superstição e o preconceito procuram a confirmação na
realidade, de duas maneiras. Uma, de caráter observacional, é coletar
evidências no que acontece em torno. A coleta é seletiva (às vezes de forma não
deliberada) para os fatos que confirmam a hipótese, enquanto os que a negam
tendem a ser ignorados, relativizados ou desqualificados. Na observação do dia
a dia, destacam-se os aspectos negativos de uma determinada etnia ou cor,
enquanto se ignoram os positivos, que contrariariam o preconceito. Assim como
um dia de inverno mais frio ou a aparição de um climatologista de segunda linha
ou a soldo de alguma empresa de petróleo reforçam as convicções dos cépticos do
aquecimento global.
Outra maneira, mais contundente, vem na forma de profecias
confirmadas pela ação. As pessoas mais escuras são menos inteligentes, portanto
menos capazes de gerir suas vidas ou os recursos naturais que poderiam ser mais
bem aproveitados pelo sistema de produção vigente. Assim os políticos optam
frequentemente por negligenciar a proteção que é adequada para esses cidadãos,
e eles permanecem frágeis mais propensos a ceder o que têm inclusive sua força
de trabalho, ou podem tender a buscar formas informais de obtenção de renda
(trabalho precário, crime). E assim, a inferioridade tende a ser perenizada.