Da revista Science, de 20 de novembro de 2022: https://www.science.org/content/article/reforestation-means-just-planting-trees?et_rid=35342707&et_cid=4500360 . O original é em inglês, e contém links para referências.
Reflorestamento significa mais do que apenas plantar árvores
Cientistas estão descobrindo as melhores estratégias para regenerar
florestas perdidas
Por Elizabeth Pennisi
Uma floresta cresceu sozinha em um antigo pasto no norte da Costa Rica
nas últimas 3 décadas. ROBIN CHAZDON
O mundo está pronto para ficar muito mais verde nos próximos 10 anos. As
Nações Unidas designaram 2021-30 como a Década de Restauração de Ecossistemas,
e muitos países, com a ajuda de doadores, têm lançado programas ambiciosos para
restaurar florestas em lugares onde foram derrubadas ou degradadas. Na
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas no Egito na semana
passada, a União Europeia e 26 nações prometeram US $ 16 bilhões em apoio às
florestas, apostando na capacidade das árvores de retardar a mudança climática
armazenando carbono. Uma parte significativa será gasta em reflorestamento.
"É um momento realmente emocionante", diz Susan Cook-Patton,
pesquisadora de restauração da Nature Conservancy. "Temos a oportunidade
de realmente restaurar florestas em escala, e isso é realmente
encorajador." Mas pouco se sabe sobre a melhor forma de conseguir isso.
Entre 2000 e 2020, a quantidade de floresta aumentou em 1,3 milhão de
quilômetros quadrados, uma área maior que a do Peru, de acordo com o World
Resources Institute, com a China e a Índia liderando o caminho. Mas cerca de
45% dessas novas florestas são plantações, agregações densas dominadas por uma
única espécie que são menos benéficas para a biodiversidade e o armazenamento
de carbono a longo prazo do que as florestas naturais.
Muitos projetos de reflorestamento concentram-se no número de árvores
plantadas, com menos atenção ao quão bem elas sobrevivem, quão diversas são as
florestas resultantes ou quanto carbono elas armazenam. "Ainda sabemos
relativamente pouco sobre o que está funcionando bem ou não, onde e por
quê", diz Laura Duncanson, da Universidade de Maryland, College Park, que
estuda o armazenamento de carbono nas florestas.
Uma edição temática do Philosophical Transactions of the Royal Society
publicada na semana passada oferece orientação, na forma de 20 artigos – tanto
pesquisas originais quanto resenhas. Um olhar aprofundado sobre os projetos de
reflorestamento no sul e sudeste da Ásia detalha o desafio. A coeditora Lindsay
Banin, ecologista florestal do Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido,
e seus colegas examinaram dados sobre o quão bem as árvores recém-plantadas
sobreviveram em 176 locais reflorestados que diferiam nas condições do solo e
ambientais, bem como no que foi plantado. Em alguns lugares, menos de uma em
cada cinco mudas sobreviveu e, em média, apenas 44% duraram mais de 5 anos.
O estudo ofereceu uma dica encorajadora: quando as mudas foram plantadas
perto de árvores maduras, uma média de 64% sobreviveu, possivelmente porque
essas manchas não estavam tão degradadas. Outra pesquisa mostrou que medidas
como cercar o gado e melhorar as condições do solo também podem aumentar as
chances de sobrevivência das mudas, mas podem ser caras.
Plantar um par de espécies que se estabelecem facilmente também pode
ajudar. Essas espécies pioneiras abrem caminho para que outras se estabeleçam
por conta própria – uma abordagem "mais ou menos a meio caminho entre a
regeneração natural da floresta e o plantio intensivo de árvores", diz
Duncanson. Um estudo realizado pelos ecologistas de plantas Stephen Elliott e
Pimonrat Tiansawat, da Universidade de Chiang Mai, concluiu que as primeiras
espécies devem ser nativas da área, prosperar em áreas expostas, crescer
rapidamente, inibir o crescimento de ervas daninhas e atrair animais
dispersores de sementes. Um kick-starter eficaz usado na Austrália é um arbusto
da floresta tropical chamado bleeding
heart (Homalanthus novoguineensis). Suas raízes soltam o solo e suas folhas
adicionam nutrientes, permitindo que outras espécies se estabeleçam, enquanto
seus frutos verdes carnudos atraem animais que podem espalhar sementes.
Escolher o lugar certo para plantar também é importante. Os ecologistas
Louis König e Catarina Jakovac, da Wageningen University & Research,
examinaram os esforços de reflorestamento nos terrenos baldios deixados para
trás por minas de estanho fechadas no Brasil nos últimos 25 anos. As árvores
têm dificuldade em crescer em pilhas de rejeitos, onde as camadas do solo são
interrompidas e tóxicas, relatam; as mudas plantadas se saem melhor em poços de
mineração e perto de florestas remanescentes.
Uma possível medida com custos menores é não replantar um local inteiro,
mas estabelecer cachos discretos de mudas, criando "ilhas de
regeneração" em torno das quais uma nova floresta crescerá por si. Uma
comparação de 13 locais experimentais na Costa Rica por Andy Kulikowski e Karen
Holl, da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, mostrou que essa abordagem,
chamada de "nucleação aplicada", pode ser tão boa ou melhor em
promover o crescimento de uma floresta diversificada do que plantar densamente
uma área inteira com uma ou apenas algumas espécies. A nucleação permite mais
espaço para as árvores, bem como para a luz, diz o ecologista florestal Robin
Chazdon, da Universidade da Sunshine Coast (USC), coeditor da edição especial:
"Árvores assim!" Mas as florestas podem até se recuperar sozinhas.
Desde 1997, Chazdon monitora uma antiga pastagem no norte da Costa Rica, onde
nenhuma árvore foi plantada. Surgiu uma floresta natural saudável.
Como o reflorestamento afeta a população local – e vice-versa – é um
fator importante no planejamento de um projeto. O reflorestamento pode reduzir a
terra disponível para a agricultura, mas as comunidades locais podem ser
compensadas – e a nova floresta pode fornecer madeira, oportunidades de caça à
vida selvagem e outras fontes de renda. "Precisamos garantir que a
restauração seja benéfica e desejada pelas comunidades locais", diz Banin.
Os cientistas de conservação da Universidade de York, Robin Loveridge e
Andrew Marshall, também da USC, estudaram o bem-estar das pessoas envolvidas em
projetos de reflorestamento no leste da Tanzânia. Eles compararam a satisfação
das pessoas que vendem madeira certificada como sustentável com a de
comunidades que não tinham um programa de sustentabilidade. Quanto melhor uma
floresta era manejada, mais felizes eram aqueles que faziam o manejo, descobriu
a equipe. "Não se trata apenas de acertar a dinâmica ecológica, mas também
da dinâmica social e econômica", diz Cook-Patton.
Muitas outras questões também precisam de atenção, diz Marshall, também
coeditor da edição temática. Eles vão desde o papel dos cipós e videiras – que
podem dificultar o reflorestamento dificultando a luz e ajudá-la, oferecendo
proteção contra tempestades – até como medir o sucesso e gerenciar os projetos.
As respostas dependerão das condições locais. "Você pode ter um trilhão de
dólares", diz Bill Laurance, ecologista florestal da Universidade James
Cook, em Cairns, "mas não há uma resposta simples que sirva para
todos".
O ecologista florestal Simon Lewis, da University College London, está
animado com o impulso por trás do reflorestamento, mas se preocupa com a
qualidade das novas florestas. "Há o risco de que, enquanto os países
tentam cumprir metas difíceis para conter o desmatamento, as florestas antigas
ainda sejam cortadas, mas substituídas em outros lugares", diz Lewis. Isso
significa que não há desmatamento líquido, "mas uma floresta de alto
carbono e alta biodiversidade é substituída por florestas de menor carbono e
menor diversidade".
Sobre a autora
Elizabeth Pennisi
Liz Pennisi é uma correspondente sênior que cobre muitos aspectos da
biologia para a Ciência.
Do A Terra é Redonda. Artigo comprido, mas tem mesmo é que se falar sobre verdades, fatos, mentiras, "narrativas", na tentativa de voltarmos a uma língua em comum para superar o fascismo.
A espiritualidade que nos congrega pode ser linda. O seu uso militar, político e comercial é uma desgraça
“The human race is always all ears for a fairy tale” [A humanidade sempre tem ouvidos abertos para um conto de fadas] (Lucretius, De rerum natura) “Fins moralistas justificam meios violentos” (Jonathan Haidt) “Insistence on a rooted notion regardless of contrary evidence is the source of the self-deception that characterizes folly”
[Insistir numa noção enraizada, qualquer que seja a prova em contrário,
é a fonte de auto-engano que caracteriza a insensatez] (Barbara
Tuchman).
A racionalidade ocupa sem dúvida um espaço importante no que temos chamado de homo sapiens, mas
temos dado insuficiente peso às nossas dimensões irracionais, ao que
podemos chamar simplesmente de crenças. Como bem explicita Jonathan
Haidt, gostamos de vestir as nossas crenças do manto da racionalidade,
e, portanto, de legitimidade. Mas não custa darmos um passo atrás, e
pensar racionalmente nas nossas dimensões irracionais.
A quantidade de crenças no mundo é impressionante. Temos centenas de
religiões, de mundos sobrenaturais, semeadas de imagens surrealistas,
mas cada comunidade de crentes afirma com convicção de que as suas
crenças são baseadas na realidade. Como conseguimos inventar tantas
histórias, e nelas acreditar, ainda que sejam absurdas? Há lendas,
naturalmente, e delas gostamos, como a dos Cavaleiros da Távola Redonda,
e fantasias assumidas como tais nos contos, por exemplo, de Chapeuzinho
Vermelho. Gostamos de contos de fada, mas sabemos que são contos de
fada.
Mas em outro nível, no universo da espiritualidade, os contos de fada
se tornam não só crenças assumidas, racionalmente assimiladas e
confirmadas, inclusive com tantos que morreram ou estão dispostas a
morrer por elas. Criou-se inclusive um conceito poderoso, a fé, como
ponte entre a fantasia, a racionalidade, e o nosso mundo emocional. A fé
realmente move montanhas, mas por definição, a fé é baseada em
acreditar sem provas, senão seria conhecimento, e não precisaria de ato
da fé. Os que acreditam que o mundo foi criado há pouco mais de cinco
mil anos atrás, justamente ‘acreditam’, e os que sabem que existe há
bilhões de anos simplesmente sabem, não precisam acreditar.
A fé, por definição, dispensa provas. E nesta medida, permite que as
pessoas se convençam, e até busquem defender racionalmente, as fantasias
mais absurdas, de que o sol é um deus, de que houve serpentes que
falam, de que há figuras humanas com asas e que voam, de que os pecados
se lavam no sangue fazendo sacrifícios de animais, ou até de humanos, de
que más safras são culpas de bruxas que é preciso queimar – não à toa
eram mulheres – ou ainda mais comodamente, de que matar pode ser
legítimo, uma ordem de Deus, porque estaríamos matando infiéis. A fé não
tem limites, dispensa racionalidade.
É impressionante que nesta nossa era científica o irracional ainda
tenha tanto peso. Lembremos que nos anos 1500 um Copérnico havia adiado
por décadas a publicação do que ele sabia ser a realidade – que o mundo
não gira em torno da terra – por medo das perseguições religiosas. Nos
anos 1600 Galileo tinhas de sussurrar eppur si muove¸ com medo
da morte. Em pleno século 21 grande parte dos americanos prefere
acreditar do que saber, e batalham para que nas escolas a teoria da
evolução seja ensinada ao lado do bereshit, da visão da criação do mundo que encontramos na Bíblia, com maçã, serpente e arcanjo, como teorias legítimas.
Não estamos aqui denunciando a irracionalidade, faz parte de nós como
seres humanos, mas buscando de onde vem tanta força nesse estranho
mundo irracional da espiritualidade. Não se trata de exercício apenas
teórico, tem grande importância, considerando como religiões podem
utilizar o irracional como justificativa de interesses muito reais. A
peça de teatro de José Saramago, In Nomine Dei, baseada nas
guerras de religião, com massacres e tudo, ajuda a entender como o
absurdo pode ser transformado em interesses organizados e racionalmente
defendidos, com ‘argumentos’. A peça é baseada nos anos 1500, mas hoje
vemos na televisão inúmeros programas que justificam qualquer coisa,
porque na Bíblia podemos encontrar frases que justifiquem praticamente
tudo – e o seu contrário. O raciocínio mágico se generaliza.
O sentimento de espiritualidade é respeitável, e o encontramos em
tantas épocas e civilizações. O seu uso, que levou e leva a tanta
barbárie, violência, oportunismo político, ganhos financeiros, o é muito
menos. Em 2022 Edir Macedo e família ostentam uma fortuna de 1,34
bilhão, falar em nome Deus pode ser muito lucrativo (Forbes, 2022,
fortuna 230). Nos Estados Unidos as fortunas com essa origem são muito
mais amplas.
Mark Twain ironiza sobre a sociedade “que tem guerras o tempo todo,
levanta exércitos, constrói armadas e luta pela aprovação de Deus por
qualquer meio disponível. E em qualquer lugar onde houvesse um país
selvagem que precisasse ser civilizado, iam lá e o tomavam, e o dividiam
entre vários monarcas esclarecidos, e o civilizavam – cada monarca a
seu jeito, mas geralmente com Bíblias e Balas e Impostos. E o jeito que
enalteciam a Moralidade, o Patriotismo, a Religião e a Irmandade dos
humanos era nobre de ser visto” ( p. 182).
Neste sentido, é essencial separar o sentimento religioso, a
espiritualidade, que encontramos em tantas civilizações, do seu uso
político no quadro de diferentes estruturas organizadas de poder, que se
apropriam de alguma forma do papel de representantes de divindades para
justificar tudo e qualquer coisa. Os governos atuais de Israel navegam
confortavelmente nas raízes emocionais poderosas que representa a
convicção de serem o “povo eleito”, portanto com direito a exercer a
justiça divina em cima de outros povos. Os nazistas levavam na sua
bandeira o Gott mitt uns, Deus está conosco. O Taliban pode se
permitir tudo em nome da fé, e o apelo a “Deus, Pátria, Família” é
encontrado nas bocas de todos os pequenos candidatos a ditadores do
planeta, Trump, Erdogan, Orban, Duda, Meloni, Bolsonaro, Kristersson,
Duterte, Netanyahu e tantos mais na fila de espera, navegando na
ingenuidade e frustração das populações.
A mensagem implícita é de que quem quer respirar livremente, com mais
democracia e igualdade, é contra os ideais sagrados, e, portanto, não
uma pessoa tolerante e de cabeça mais aberta, mas um inimigo. A
compreensão de que a espiritualidade faz parte de um conjunto de
aspirações, que queremos aqui elencar, e que podem ser compreendidas e
legitimadas, mas que o seu uso na indústria da comunicação, da política e
inclusive da exploração comercial consiste em abuso da intimidade das
pessoas, em atos de violência sem legitimidade, me parece essencial. A
apropriação de símbolos poderosos, como Deus, Pátria e Família, permite
justificar qualquer coisa, gera um empréstimo de respeitabilidade.
Não há como não lembrar da fala do bispo sul-africano Desmond Tutu: “Quando os missionários chegaram à África, eles tinham a Bíblia e nós tínhamos a terra. Disseram “Rezemos”. Nós fechamos os olhos. Quando os abrimos, nós tínhamos a Bíblia e eles tinham a terra”. O conceito de hipocrisia encontra aqui a sua representação mais perfeita.
Nas nossas emoções e no nosso imaginário cabem universos de
criatividade espiritual, que vão desde à reencarnação até o Olimpo ou o
purgatório, e a história das crenças religiosas mostra uma riqueza
espantosa. Da beleza da Cosmogonia de Hesíodo, às cosmogonias
do Egito, de Pan Ku na China, de Olorum africano, do Bereshit bíblico e
tantos outros, não há como não ver a busca de preencher o inexplicável,
ou inexplicado, com mitos. É legítimo? Sem dúvida, pois preencher o
vazio explicativo com um mito gera mais sentimento de segurança do que
um buraco negro desconhecido. E se nos pomos de acordo com a comunidade
em torno de nós, e aceitamos o mesmo mito, o nosso vazio mental entra em
sentido de repouso. Na falta de ciência, temos crença. E se os vizinhos
também acreditam, temos uma visão de mundo. Mas a facilidade com a qual
tantas pessoas se deixam levar, balançam a cabeça, obedecem, fazem um
Pix de contribuição para as corporações religiosas, nos alerta para as
nossas fragilidades emocionais e mentais, que merecem ser respeitadas e
não abusadas.
Já as codificações éticas colocam dilemas muito mais amplos, pois
permitem justificar comportamentos com empréstimos à legitimidade
sobrenatural, na falta de legitimidade terrena de não fazer o mal. O
fato de encontrarmos na Bíblia o comando divino “não deixarás
que as bruxas vivam” permitiu massacres, e multiplicaram-se as festas de
ver pessoas queimadas vivas, com a profunda satisfação das populações,
que se sentiam vingadas das suas frustrações.
A Bíblia, neste sentido, é fértil, e Mark Twain resume em um
parágrafo: “No Antigo Testamento os Seus atos expõem constantemente a
sua natureza vindicativa, injusta, impiedosa e vingativa. Está sempre
punindo – punindo delitos insignificantes com severidade milhares de
vezes maior; punindo crianças inocentes pelos malfeitos dos seus pais;
punindo populações pelos malfeitos dos seus governantes; até descendo ao
ponto de exercer vinganças sangrentas em cima de bezerros e cordeiros e
carneiros e bois inofensivos, como punição por transgressões cometidas
por seus proprietários. É talvez a biografia mais condenatória que
existe impressa em qualquer lugar” (p. 319).
A verdade é que encontramos em escrituras passagens para justificar
tudo e seu contrário. E não faltam pregadores com uma massa de citações
decoradas. Como escreve Haidt, “O raciocínio pode levá-lo para qualquer
lugar onde você queira ir” (p. 122). Haidt usa os conceitos de
“pensamento confirmativo” (confirmatory thinking), “raciocínio motivado” (motivated reasoning), ou “cérebro partidário” (partisan brain): “Como ratos que não conseguem parar de apertar um botão, partidários (partisans)
podem ser simplesmente incapazes de parar de acreditar em coisas
aberrantes. O cérebro partidário foi reforçado tantas vezes para
realizar contorções mentais que o liberem de crenças indesejáveis. O
partidarismo extremo pode ser literalmente viciante” (p. 88).
Estamos aqui na fronteira mental, onde a força da crença – do que se
quer acreditar – se sobrepõe ao racional, e dele se empodera para
reforçar a própria crença. No limite, explicar que a terra é redonda e
tem 4,5 bilhões de anos torna-se inviável. Na cabeça da pessoa, em
certas áreas de raciocínio, foi instalado como se fosse um filtro – em
inglês prefiro usar o conceito de frame – que simplesmente não deixa passar nada que não corresponda ao formato predeterminado. O brainwashing (lavagem
cerebral) é muito mais generalizado no nosso cotidiano do que
gostaríamos de admitir. Barbara Tuchman usa os conceitos de self-hypnosis (p. 269) e de self-righteousness
(p. 271), buscando caracterizar o congelamento de visões que se vestem
de racionalidade, mas são impermeáveis a argumentos: “Os psicólogos
chamam o processo de exclusão de informação discordante de ‘dissonância
cognitiva’, um disfarce acadêmico para ‘Não me confunda com fatos’” (p.
322).
Não há como deixar de ver que a crença, neste sentido, gera uma área
de conforto: não preciso mais pensar no assunto, está resolvido pela
simples rejeição mental de qualquer argumento que venha a incomodar o
cérebro. Pá de cal, assunto resolvido. No limite, conforme a crença
adotada, temos o raciocínio simplório que leva facilmente ao fanatismo,
particularmente se é confirmado com uma comunidade de crentes. Desde
Constantino no ano 325 da nossa era, os políticos entenderam a força do
empréstimo de autoridade divina para os embates humanos. Uma coisa é o
conhecimento racional, baseado na ciência; outra é a crença, baseada na
fé, no que se quer acreditar; e outra ainda a ética, os valores
emprestados para justificar o que fazemos, área na qual borrar as
fronteiras entre ciência e crença tornou-se generalizado. Adotamos as
crenças necessárias para justificar o que supomos saber.
Estamos aqui muito além das igrejas, com a centralidade do processo
na política, nos interesses comerciais, gerando o controle da atenção
bem descrito por Tim Wu no The Attention Merchants, e denunciado por Noam Chomsky no documentário Chomsky & Cia. Hoje,
com a conectividade global, a atenção humana presa em telinhas várias
horas por dia, desde a infância mais tenra, e em particular a indústria
que colhe informações privadas sobre cada um de nós, nas mais diversas
dimensões, criam-se novas arquiteturas mentais, ou nova mobília na nossa
cabeça. Os mercadores da atenção chamam de ‘bolhas’, com ‘internautas’
que só encontram confirmações do que acreditam.
Conhecimento racional, crenças e convicções morais se confundem no novo universo planetário que Shoshana Zuboff chamou de The Age of Surveillance Society:
“Um texto eletrônico inteiramente renovado agora se estende muito além
dos limites da fábrica ou do escritório. Graças aos nossos computadores,
cartões de crédito, e telefones, e as câmeras e sensores que proliferam
em espaços públicos e privados, quase tudo o que hoje fazemos é mediado
por computadores que registram e codificam cada detalhe das nossas
vidas cotidianas numa escala que teria sido inimaginável apenas alguns
anos atrás” (p. 182).
A ideia do Jesus Christ Super-Star deixa de ser uma ideia. A
igreja eletrônica veio para ficar. O Bispo Edir Macedo é dono da TV
Record, e navega em citações de textos de dois mil anos atrás. Aqui se
mistura ciência, crença e ética. Recomendaram votar em Bolsonaro, em
nome de Jesus. Com a mudança dos ventos políticos, recomenda apoiar
Lula.
Mas é interessante a que ponto nesta era de avanços científicos e de
compreensão dos mistérios da vida, a espiritualidade aliada ao
pertencimento a organizações religiosas continua poderosa no mundo.
Entendemos que o trovão não ocorre porque Zeus está irritado, e que,
portanto, teríamos de ver quem o irritou: olhamos as previsões de tempo
no celular. Mas esse imenso mundo das divindades permanece forte no
cotidiano de três quartos da população mundial, e a consulta a “textos”
de tantos séculos atrás serve de misteriosa justificativa para os nossos
absurdos da era dos algoritmos. Podemos elencar alguns mecanismos, se é
que podemos chamá-los assim, que presidem a esta persistência, ou até
renovação. E têm raízes profundas.
O medo da morte sem dúvida joga um papel importante. Nas mais
variadas mitologias, imaginamos que a morte é apenas uma passagem para
outra vida, seja na reencarnação, ou na subida da alma aos céus – sempre
é para cima, como se o céu fosse um lugar – nas diversas modalidades do
Éden. Conseguimos assim escapar do óbvio: somos um mamífero que passa
pela vida em ritmo relativamente lento, mas inevitável, e depois não se
ouvirá mais dele. O ressuscitar é um sonho, mas o fim é o fim, e apesar
de Lázaro, e a agitação no palco da vida. Não há como não lembrar do
realismo de Shakespeare, sobre esse ser humano, “a poor player, that
struts and frets his hour’ upon the stage, and then is heard no more.”[i] É uma motivação poderosa, não à toa muitos se ‘convertem’ na hora extrema.
Igualmente poderoso é o sentimento de vazio que nos dá quando
pensamos que estas poucas décadas que temos para aparecer no mundo
terminam, depois de tantas brigas e turbulências, e afinal é só isso. “Ma é questo la vita?”,
pensa o mortal, chegando à morte. Ou seja, além do medo da morte, e do
vazio que segue, temos que enfrentar o próprio sentido do que fazemos.
Wim Wenders resumiu o sentimento de forma simples: “Humanity is craving for meaning”,
a humanidade anseia por sentido. Pertencer a um desenho maior, ter um
Deus que nos observa e julga – como se não tivesse outra coisa para
fazer –, precisarmos nos submeter a regras ditadas por um ser superior,
ser filho de Deus enfim, é poderoso.
Meu pai, que era muito católico, se indignava de que as pessoas
“preferiam descender de primatas do que serem criaturas de Deus”, como
se saber ou crer fosse uma opção. Era engenheiro, com muita leitura,
inclusive de filosofia, mas aqui não se trata de racionalidade, e sim do
imenso vazio que nos invade quando pensamos que somos uma criatura
frágil, briguenta e passageira, perdida num planeta perdido no universo.
Na mesma linha, Lee Kuan Yew menciona que “há uma busca para algumas
explanações mais elevadas quanto aos propósitos do homem, quanto a
porque estamos aqui. Isso é associado com períodos de grande estresse”
(In: Huntington, p. 97).
A liberdade pode ser muito angustiante. Ter regras na vida, nesta
turbulenta confusão de valores, pode ajudar muito. Não à toa demos tanto
peso aos Dez Mandamentos, proibições e obrigações, pontos de
referência que nos permitem guiar os nossos comportamentos. São diversos
segundo as religiões, no hinduísmo encontramos a proibição de matar
animais e outras formas de vida. O cristianismo nunca impediu os
cristãos de matar, mas sempre “em guerra justa”, e contra pagãos, ou
bárbaros, ou seja, gente que precisamente não seguia as nossas regras,
não eram “nós”.
Só o fato de precisamos justificar, explicar porque violamos os
mandamentos, mostra a importância não só da ética, mas de um conjunto de
códigos aceitos por determinado segmento da sociedade. As religiões
desempenham um papel importante na tranquilidade pessoal. Estou seguindo
as regras. Dante traz com força a angústia de não saber o caminho: “mi ritrovai per uma selva oscura, che la diritta via era smarrita”,
caminhos retos perdidos, é precisamente a entrada do Inferno. A
religião ajuda “nas necessidades psicológicas, emocionais e sociais de
pessoas presas nos traumas da modernização” (Huntington, p. 99). Quem
não se sente perdido no caos planetário que vivemos?
Mas no limite, ter regras também pode ser opressivo. Numa sociedade
religiosa, o ódio e a violência contra as pessoas que não se submetem às
mesmas regras levaram, nas mais variadas sociedades, a comportamentos
de uma violência impressionante. É que o sentimento de conhecer “o bem”,
a certeza do caminho reto, parece justificar a perseguição dos todos os
desvios. Quem não leu o Malleus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras,
dos inquisidores Heinrich Kramer e Jacob Spenger, está perdendo uma
visão de como as regras, apropriadas pelos “justos”, podem levar a
violências pavorosas. Isso data de há poucos séculos na Europa, e o
livro, em nome de Deus, ensina como torturar mulheres, de preferência
nuas, bem como a importância de quem interroga não lhes ver o rosto,
pois o sofrimento nele expresso poderia comovê-los, e tirá-los da sua
severa retidão.
Os massacres na Índia, no conflito entre hinduísmo e islamismo são de
ontem, e perduram os ódios. A morte de uma jovem no Irã, porque não
cobria a cabeça e o rosto de maneira adequada aos mandamentos religiosos
leva hoje a um levante, mas o essencial aqui é que enquanto uma
sociedade se apropriar de regras ajuda na coesão social, a sua rigidez
se torna ao mesmo tempo opressiva. Entre o conforto de regras superiores
e a barbárie, a fronteira é pequena. E não precisamos necessariamente
de divindades para termos regras do jogo, comportamento moral,
referências.
Buddha era um pensador, Siddhartha Gautama no seu nome completo,
fundador do budismo. Confúcio, Kong Fuzi, da mesma época, cinco séculos
antes de Cristo, também era um filósofo, hoje uma poderosa referência
para as regras da vida na Ásia. Precisamos de guias, não necessariamente
divinos. E cada vez mais se coloca o dilema das pessoas não físicas,
mas jurídicas, que se consideram absolvidas de qualquer dimensão ética,
bastando a legalidade. Greed is Good, ou The business of business is business, clamam as corporações, e geram desastres, mas como ficam as pessoas que nelas trabalham? Estão apenas seguindo instruções?
A noção de culpa, e de culpabilidade, desempenha um papel essencial
no sentimento religioso, e em particular no poder das hierarquias
religiosas. No cristianismo e no judaísmo, somos todos culpados pelo
pecado original, como se Adão ter comido a maçã tivesse qualquer
importância no meu cotidiano em 2022. Cristo veio nos redimir deste
pecado, que como em tantas crenças, tem de ser lavado no sangue, no
sofrimento. Os crucifixos, instrumento de tortura, continuam a nos
ameaçar.
Temos todos os universos do submundo do inferno – sempre em baixo,
por misteriosa razão, mas a palavra em latim significa precisamente “em
baixo” – o lugar onde os malvados serão punidos, sofrerão até o infinito
fim dos tempos. O imaginário sobre os tipos de tortura, que vemos em
tantas representações artísticas, mas também na Epopeia de Gilgamesh, no shoel judaico, ou no reino de Hades na mitologia grega. Aliás, chamamos de mitologia as versões anteriores das crenças atuais.
Associada à culpa, como força poderosa de controle social, em
particular da mulher, está a sexualidade. Associar a atração sexual a
algo sujo, “libidinoso”, quando se trata da fonte maior da nossa pouca
felicidade, na riqueza das suas manifestações, continua a ser o
combustível para ódios e perseguições. O que faria Freud sem essa
repressão sexual permanente, a sua associação ao pecado, às proibições
bíblicas? Controlar a sexualidade da mulher, nos seus mínimos detalhes,
por parte de doutores da lei divina, é objetivo que encontramos em
tantos textos religiosos.
A excisão (corte dos lábios da vagina feminina) ainda é praticada
hoje em meninas, em nome de obediência às regras, e aos mandamentos
religiosos, para que a futura mulher não tenha o vergonhoso prazer
sexual. Todo o conceito da “Imaculada Conceição” está ligado ao
sentimento (mais do que pensamento) de que o ato sexual seria uma
“mácula”.
Marie-France Baslez, que pesquisa a origem do cristianismo, no seu estudo Comment notre monde est devenu chrétien, apresenta
o detalhe dos debates, desde o século II da nossa era, sobre a
virgindade de Maria. Mas o essencial para nós, é a ideia de pecado, de
culpa ligada à sexualidade, e que permitiu, durante séculos e até hoje,
que se proíba uma mulher de entrar na igreja com braços descobertos,
para falar de um detalhe que parece inocente, mas que em outras culturas
resulta na burka.
A questão do direito às decisões sobre o seu próprio corpo, por parte
da mulher, continua tão presente como em outros séculos. Ser
controlador da sexualidade dos outros é uma ferramenta de poder que hoje
vemos manipulada nas igrejas eletrônicas, e cujo conteúdo mudou pouco.
Basta ver os debates da Corte Suprema nos EUA, a luta pelo direito ao
aborto, ao direito da eutanásia, dispor da própria vida. Apoiada no
controle da sexualidade, a religiosidade prospera. “Pode beijar a
noiva”, ouve o casal, que hoje provavelmente não esperou a autorização.
Outro eixo poderoso que nos leva para as religiões é a busca de
pertencimento, sentimento essencial da nossa vida social. A própria
palavra “religião” nos traz na sua origem a ideia de se religar aos
outros, de pertencer, religio em latim. A volta à religião,
mais do que ao território, pode ser importante nessa fase de êxodo rural
e de busca de identidade: “As pessoas mudam do campo para a cidade,
ficam separadas das suas raízes, com novos empregos ou desemprego.
Interagem com um grande número de pessoas estranhas, e são expostas a
novos padrões de relacionamento. Precisam de fontes de identidade, de
novas formas de comunidade estável, e de novos conjuntos de preceitos
morais para assegurar-lhes um sentimento de sentido e de propósito… Para
pessoas que enfrentam a necessidade de determinar quem sou eu? a que eu
pertenço? a religião providencia respostas atraentes, e grupos
religiosos providenciam pequenas comunidades religiosas que permitam
substituir aquelas que perderam com a urbanização” (Huntington, p. 97).
Aqui também os lados negativos abundam: “Qualquer que sejam os
objetivos universalistas que tenham, as religiões dão às pessoas uma
identidade ao fixar uma distinção básica entre crentes (believers) e não crentes (nonbelievers),
entre um grupo ‘interno’ superior e diferente e uma grupo ‘externo’
inferior ” (p. 97). Nada como um inimigo externo para reforçar os laços
internos, e as religiões organizadas utilizaram essa necessidade de
pertencimento de forma generalizada. Os que estão fora do grupo são
pagãos, seguidores de “seitas”, “ateus” e tantos outros qualificativos
que permitem o sentimento confortável de estar numa comunidade, de estar
“juntos”, de ter um inimigo comum.
O uso político é igualmente generalizado, e à medida que o embate se
agrava, a crença migra para o fanatismo fundamentalista, que hoje
podemos observar em várias culturas políticas e religiosas. A política
migra da racionalidade para as emoções, do cérebro para o fígado.
“Amai-vos uns aos outros” serve de justificativa para o ódio e a
violência. Não são israelenses que estão matando palestinos, é “a ira de
Deus que se abate sobre eles”. Com reciprocidades, naturalmente. Deus
pode ser uma gazua política. Baslez usa o conceito de “identificação
coletiva”, ao comentar a excitação popular nos jogos de circo romanos,
quando os “outros” eram cristãos (p. 150). Homo sapiens?
Outra motivação que nos leva para o sobrenatural, é que, na hora do
desespero, precisamos apelar para alguém. Os valentes guerreiros de
todas as “civilizações” partiam para a guerra pedindo a proteção de
deuses, e muitos animais foram destripados para que se lesse nas
vísceras o que se podia ler sobre o destino das batalhas. Deus me ajudou
diz qualquer jovem depois de marcar um gol, e o mesmo dirá o goleiro ao
impedi-lo. Eu diria que o comando de não invocar o nome do Senhor em
vão poderia ser aplicado.
Mas o essencial, é que nessa nossa vida insegura, nos agarramos a
qualquer esperança. Minha mãe, polonesa, era como se deve: católica
apostólica romana. Mas quando eu estava preso no Brasil, e ameaçado de
morte, ela na Polônia rezou por mim na igreja, e por via das dúvidas foi
procurar também os ritos pagãos que ainda sobrevivem da antiga Polônia
pré-cristã. No desespero, todos os santos ajudam. O fato é que
sobrevivi. Graças a Deus, sem dúvida, mas também graças a Dom Paulo
Evaristo Arns, que conseguiu divulgar a minha prisão, até então
clandestina.
E não há como não ver o imenso potencial civilizatório que as
religiões podem desempenhar, ao promover a solidariedade humana,
organizar comunidades, restaurar a sociabilidade tão necessária e tão
diluída nos universos urbanos. Acompanhei muito os aportes da Pastoral
da Criança, que não só obteve imensos sucessos em termos das suas
políticas sociais, como gerou um impacto organizacional de solidariedade
que envolveu centenas de milhares de mulheres. A visão do Papa
Francisco, de uma outra economia, permite o reencontro entre os
interesses econômicos, os objetivos sociais, a proteção ambiental e o
respeito humano. Trata-se aqui, claramente, de uma outra economia, mas
que envolve uma outra cultura, no sentido mais amplo.
A expansão do Islã tampouco pode ser simplificada. De um lado,
enquanto as elites adotavam uma vida luxuosa com a venda de petróleo, as
redes islâmicas de solidariedade asseguravam serviços de saúde, de
educação, de um conjunto de atividades básicas que o Estado não
providencia, bem como densas organizações comunitárias. E em termos de
imensas regiões colonizadas e humilhadas, no Oriente Médio e no norte da
África, mas sobretudo na Ásia, “a reafirmação do Islã, qualquer que
seja a sua forma sectária específica, implica no repúdio da influência
política e moral européia ou americana sobre a sociedade local” (William
McNeill, in: Huntington, p. 101). Estamos falando de 1,6 bilhão de
pessoas, de dezenas de países. Uma vez mais, cruzam-se as necessidades
da população em adotar referências religiosas, de defender a sua
identidade, enquanto o seu uso político gera barbárie, inclusive por
parte dos que as combatem.
Neste sobrevôo das motivações religiosas, por parte de um
não-especialista no tema, mas sensível à imensa hipocrisia com que que
os discursos religiosos invadem inclusive a economia, não podia deixar
de trazer o imenso aporte cultural e artístico, que nos legou a Santa
Sofia em Istanbul, a Catedral de Paris, maravilhas artísticas na Ásia,
as miniaturas da Pérsia, os monumentos da américa pré-colombiana, tantas
sinfonias, cantos, cerimônias religiosas complexas, da missa cristã aos
ritos africanos, uma teatralidade e musicalidade que nos encantam e sem
dúvida atraem. Neste grande e frequentemente duro teatro da vida, a
religião está muito presente, precisamente no sentido artístico e
teatral. Benvindas as artes, mas não justifiquem a barbárie, e não usem o
nome do Senhor em vão.
É interessante pensar que os aborígenes australianos tinham Uluru, a rocha sagrada; os celtas tinham Belenus, um deus solar; o Popol Vuh conta
a mitologia dos maias, os astecas olhavam para o céu, Tlalocan; na
mitologia chinesa, Pan Ku separou a terra do céu; na mitologia japonesa,
Izanagi criou os deuses Amaterasu e Susanoo, respectivamente o Sol e as
Tempestades; o Livro dos Mortos nos ensina sobre Atum e Rá e
os mitos egípcios; a mitologia greco-romana nos legou as belíssimas
histórias de Zeus-Júpiter, Afrodite-Vênus e tantos outros; a mitologia
hindu nos legou Brama (o criador), Vishnu (o mantenedor) e Shiva (o
destruidor); a mitologia judaico-cristã nos legou Adão e Eva, Jesus e
Maria, e combatentes de monstros como São Jorge; a mitologia
mesopotâmica nos legou o deus Apsu (água doce) e a deusa Tiamat (água
salgada) que criaram o resto, e como tantos deuses, brigaram à vontade;
na mitologia nativo-americana, em que nos faltam textos escritos, temos
em todo caso um Pai Celeste e uma Mãe Terra, além de deuses malandros
como o Corvo e o Coiote; na mitologia nórdica, temos Odin que vivia em
Valhala, e também um juízo final, Ragnarok.
A Mitologia, de Christopher Dell, de onde extraio essa
pequena lista, é um documento de extrema riqueza, que ao apresentar as
várias formas como civilizações diferentes e em diversas épocas criaram
explicações para o inexplicável, afirmando com determinação e
frequentemente muita violência a sua realidade, nos chama para um pouco
de bom senso e tolerância. Somos o que somos, e é o mundo que temos. Os
cristãos rezam ajoelhados, os islâmicos de cócoras, os judeus se
balançam de pé, os hindus de pernas cruzadas, os africanos dançam.
Convenhamos, há espaço para todos. A questão não está nas crenças,
mas no seu uso político e comercial que hoje predomina. Apropriar-se da
intimidade das pessoas, e inclusive se possível do seu imaginário,
transformou-se numa indústria. No centro dessa indústria, cada vez mais,
estão os gigantes corporativos. Os governos acompanham, discutem o
óbvio em Davos, e se submetem.
Haverá sem dúvida outros universos motivacionais, nesta difícil
separação do que é ciência e razão, do que é crença e emoção, do que é
julgamento e ética. A atitude interessante me parece ser o exercício de
dar um passo para trás, e olhar com tolerância e compreensão para a tão
difícil busca de caminhos do pobre ser humano, suficientemente dotado de
inteligência para compreender os limites da razão. E também tão
impotente frente a tantas manifestações da bestialidade coletiva da
humanidade. Neste momento em que escrevo, cerca de 180 milhões de
crianças estão passando fome no mundo, enquanto produzimos alimento
suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas. São crianças, mas os
“mercados” são mais sagrados. Não olhem para cima.
Traçar essas notas, por parte de um economista como eu, pode parecer
estranho. Mas é que os desafios da própria economia não cabem mais na
estreiteza dos conceitos que a delimitaram. Conceitos como o de cultura,
de civilização, de solidariedade humana, emergem por toda parte, e nos
obrigam a ampliar a visão. Congratular-se com um PIB que aumenta ao
destruir a natureza e ao gerar injustiças e sofrimentos gritantes é
simplesmente grotesco. Que me seja permitido trazer à tona o óbvio
econômico: o mundo de 2022 alcançou o equivalente a 100 trilhões de
dólares de bens e serviços produzidos no ano. Isso, dividido por 8
bilhões de habitantes, representa o equivalente a 4,2 mil dólares por
mês por família de quatro pessoas. Dá para viver? O mundo de hoje não é
pobre, é mal administrado.
O Brasil produz, só de grãos, 3,7 quilos por pessoa por dia, e temos
milhões passando fome. Os gigantes corporativos murmuram ESG, cosmética
que se refere à sua preocupação com o ambiental, o social e a
governança, mas é com o biquinho dos lábios. Os políticos apontam para o
céu quando os nossos problemas estão aqui em baixo. Usam-se as crenças
para justificar o injustificável. O Quo Vadis? da humanidade
hoje tornou-se um dilema universal. Não se trata mais de uma luta
econômica, trata-se de uma luta pelo resgate do bom senso e da dignidade
humana.
*Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de A era do capital improdutivo (Autonomia Literária).
Referências
Barbara Tuchman – The March of Folly: from Troy to Vietnam – Random House, New